Direito Civil Atual

Qual é a natureza dos créditos de carbono segundo o Direito Civil?

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8 de maio de 2023, 11h32

A crescente demanda pela compensação das emissões de dióxido de carbono (CO2) e outros gases do efeito estufa (GEE), em complemento ao movimento pela descarbonização da economia, tem atraído cada vez mais atenção para o potencial pouco explorado das florestas brasileiras.

Uma das principais causas desse fenômeno é a edição de leis contendo metas climáticas vinculantes de redução das emissões e prazos para se alcançar a neutralidade. Na Europa, o Parlamento Europeu aprovou a "Lei Europeia do Clima" (Regulamento 2021/1119), prevendo redução vinculativa das emissões do bloco em, pelo menos, 55% até 2030, e a obrigatoriedade de se alcançar a neutralidade até 2050[1].

No Brasil, a Lei 12.187/09 (Política Nacional Sobre Mudança do Clima – PNMC) estabelecia o compromisso voluntário de reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas até 2020. Já por meio de Contribuição Nacionalmente Determinada no Acordo do Clima de Paris, o Brasil se propôs a reduzir as emissões em 37,5% até 2025 e 43% até 2030. O Congresso discute, atualmente, transformar essas metas voluntárias em obrigatórias (PL 3.250/15, aprovado na CCJ do Senado), na esteira do que já ocorre na Europa.

Diante desse contexto, empresas e indústrias serão compelidas a zerar ou reduzir suas emissões no médio a longo prazo, sob pena de virem a ser responsabilizadas pelo descumprimento das leis climáticas.

Para fazer isso, elas podem 1) descarbonizar suas atividades (alternando fontes de energia, investindo em tecnologias menos poluentes, etc.) ou, na impossibilidade diante do tipo da atividade ou sendo a redução alcançada insuficiente, 2) compensar suas emissões através de créditos de carbono verificados e validamente emitidos (carbon offsetting).

Créditos de carbono podem ser definidos como a representação de 1  tonelada de CO2 ou equivalente[2] reduzido, evitado ou sequestrado da atmosfera. Os créditos são emitidos após um processo de mensuração, verificação e certificação, conferindo ao seu titular — em tese — o direito de emitir GEE nas mesmas proporções do que foi evitado ou de compensar suas emissões acima do legalmente permitido.

Apesar das tentativas de regulamentação do setor, ainda há insegurança a respeito da natureza jurídica dos créditos de carbono. Não só no Brasil, mas também a nível global: há quem os trate como ativo financeiro, ativo intangível, conjunto de direitos, serviço e até como commodities[3].

No Brasil, a já citada Lei 12.187/09 é econômica ao dispor, em seu art. 9º, que "a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitadas certificadas" ocorrerá em bolsa de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado autorizadas pela CVM, potencialmente conduzindo à identificação dos créditos de carbono com valores mobiliários, o que poderia limitar o mercado aos títulos bursáteis.

A Lei 12.651/12 (Código Florestal), em seu artigo 3º, conceitua crédito de carbono como "título de direito sobre bem intangível e incorpóreo transacionável", expressão que poderia levar o intérprete a equiparar — equivocadamente — créditos de carbono com títulos de crédito. Embora existam semelhanças, tal qual a noção de cartularidade – a incorporação do crédito a um documento de certificação — e a representatividade de um valor econômico expressável em dinheiro[4], um documento apenas pode ser considerado título de crédito se a lei lhe conferir essa característica[5], o que não ocorre no caso dos créditos de carbono.

ConJur
O recente Decreto 11.075/2022, ao endereçar a PNMC, define crédito de carbono como "ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado", enquadramento como ativo financeiro que pouco auxilia na compreensão de sua natureza jurídica.

Nessa conjuntura, o recurso às normas gerais de Direito Civil pode contribuir para as discussões sobre a configuração dos créditos de carbono. No âmbito da natureza jurídica há de se analisar o enquadramento dos créditos certificados sob a ótica da tradicional classificação dos bens do Código Civil (artigos 79 a 103).

Partindo da concepção clássica, tem-se por bens tudo aquilo que pode proporcionar alguma utilidade às pessoas, que tenha valor e utilidade econômica, que seja suscetível de apropriação. Nessa linha, o crédito de carbono certificado pode ser tomado — sem maiores problemas — como um bem móvel (tal qual o crédito, que pode circular), de natureza incorpórea (não possui existência material, eis que não pode ser apreendido fisicamente), em tese fungível[6] (pode ser substituído por outro de mesma qualidade, quantidade e espécie), indivisível (por convenção, o crédito de carbono equivale a 1 tonelada de CO2 equivalente[7] reduzido, evitado ou sequestrado da atmosfera, não podendo ser fracionado) e individual (embora reunidos, não necessariamente integram uma universalidade).

Mais tormentosa é sua classificação sob o viés dos bens reciprocamente considerados. Importa definir se é um bem principal, cuja existência depende de si, abstrata e concretamente, ou acessório, cuja existência supõe a do bem principal. A resposta a essa questão parece depender da origem da redução, evitação ou sequestro das emissões.

Considere-se, por exemplo, um projeto de REDD+[8] pela manutenção da floresta em pé: é possível chegar ao número de toneladas de CO2 reduzidas, evitadas ou sequestradas em determinada área num determinado período, gerando certas unidades de crédito de carbono verificadas. Parece claro, nesse caso, que o crédito é acessório do principal (a floresta). Mas seria ele um fruto ou um produto? Frutos são bens acessórios que têm sua origem no bem principal, mas não lhe diminuem a substância ou quantidade. Produtos, por sua vez, são extraídos do bem principal, mas afetam-lhe a substância e a quantidade.

A discussão importa porque qualificações jurídicas diferentes aportam efeitos jurídicos distintos. E, neste caso, podem ter repercussões sobre a titularidade dos créditos. Pense-se numa comunidade extrativista atuante em uma unidade de conservação de uso sustentável. O Poder Público concede a essa comunidade, através de contrato (CCDRU), o direito real de uso da terra para que a explore segundo a sua destinação específica. A propriedade formal, todavia, ainda é do Estado.

Num tal arranjo, se o crédito de carbono fosse conceituado como produto – o que, acredita-se, é equivocado — sua titularidade seria do Estado, titular da terra. Com efeito, visualizando-o como um fruto, que mantém íntegro o bem principal e se renova periodicamente, o crédito seria titularizado pela comunidade, que já desfruta do direito de usar e fruir da terra de modo sustentável.

Além disso, não necessariamente o crédito de carbono terá sua existência atrelada a outro bem. Pode estar associado, também, à prestação de um serviço ambiental (fazer), assim considerados aqueles definidos na Lei 14.119/21. Nessa hipótese, o crédito, aparentemente, possuiria existência autônoma, e não acessória.

O desenvolvimento de uma padronização — nacional e internacional — a respeito da natureza e do regime jurídico dos créditos de carbono é fundamental para a consolidação desse mercado e para a realização do enorme potencial econômico das florestas brasileiras. Uma próxima coluna terá como escopo a titularidade dos créditos de carbono de REDD+ em territórios de comunidades tradicionais, consideradas mundialmente como principais protetoras dos sumidouros de carbono.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Redução das emissões de carbono: objetivos e políticas da União Europeia. Parlamento Europeu,  Bruxelas, 08 mar. 2023. Disponível aqui. Acesso em 06.mar.2023.

[2] A denominação carbono equivalente deve-se ao fato de que outros gases também são responsáveis pelo efeito estufa, como o metano ou o óxido nitroso, mas a padronização é feita com base no carbono, por isso carbono equivalente. Uma tonelada de metano, por exemplo, corresponde a 21 toneladas de CO2.

[3] INTERNATIONAL SWAPS AND DERIVATIVES ASSOCIATION. Legal Implications of Voluntary Carbon Credits. [s.l], dez. 2021. Disponível em: https://www.isda.org/a/38ngE/Legal-Implications-of-Voluntary-Carbon-Credits.pdf. Acesso em 05 mai. 2023.

[4] NEVES, Maria Beatriz Correa; CHIANG, Gabriel Oura. Qual é a qualificação correta dos créditos de carbono para tributação? Jota, 05 mai. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/qual-e-a-qualificacao-correta-dos-creditos-de-carbono-para-tributacao-05052023. Acesso em 07 mai. 2023.

[5] RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[6] Quanto à fungibilidade dos créditos de carbono as discussões ainda não chegaram a uma conclusão definitiva por conta da diversidade de tratamentos jurídicos internos, o que impede a reunião de mercados regulados, por exemplo.

[7] A denominação carbono equivalente deve-se ao fato de que outros gases também são responsáveis pelo efeito estufa, como o metano ou o óxido nitroso, mas a padronização é feita com base no carbono, por isso carbono equivalente. Uma tonelada de metano, por exemplo, corresponde a 21 toneladas de CO2.

[8] REDD+ é a sigla para Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal, aliado ao + que designa a conservação de estoques de carbono florestal, o manejo florestal e o aumento dos estoques de carbono florestal.

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