Escritos de Mulher

(Des)necessidade do novo crime de fraude com ativos virtuais e hipercriminalização penal

Autor

  • Juliana França David

    é advocacia criminal no França David e Barreto Advogados mestranda em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) secretária da Comissão de Crimes Digitais da OAB-RJ e certificada em Forensic Accounting and Fraud Examination pela West Virginia University.

13 de dezembro de 2023, 8h00

O fenômeno dos criptoativos é relativamente recente. A criptomoeda mais antiga, o bitcoin, surgiu em 2008, criada por um indivíduo (ou por um grupo de indivíduos) sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto [1]. À época, o manifesto em torno do bitcoin era a descentralização do controle sobre o fluxo financeiro, retirando-o do Estado e dos bancos, e  pondo-o nas mãos dos indivíduos. A mecânica peer-to-peer (ou “de pessoa para pessoa”, em tradução livre) permite que, em uma operação financeira, cada um, com sua carteira de criptomoeda, efetue a transferência dos valores sem a intervenção de qualquer instituição bancária, havendo o registro da operação somente no blockchain. A única informação necessária para uma transferência é o endereço da carteira virtual do destinatário.

Por muitos anos, a tecnologia permaneceu como um conhecimento underground, restrito aos círculos de anarquismo libertário e interessados na deep web. O bitcoin, inclusive, era visto principalmente como uma ferramenta para a prática de crimes, visto que os pagamentos de drogas e outros produtos ou serviços ilícitos na deep web costumeiramente se dava mediante o uso da criptomoeda, dada a sua (ainda que não absoluta) anonimidade.

Todavia, gradualmente, o bitcoin foi perdendo sua natureza de moeda, ganhando notoriedade enquanto um ativo para negociação de alto risco, devido à volatilidade do seu preço. A partir de 2010, com o advento das grandes corretoras de cripto, como a Mt Gox [2], a negociação do bitcoin e de outras criptomoedas como a litecoin se tornou mais ampla e popular. No Brasil, inclusive, isso se deu com a fundação do Mercado Bitcoin em 2013.

Agora, para utilizar a moeda virtual, não era mais necessária a sua mineração ou sua aquisição por meios difíceis. Bastava abrir uma conta em uma destas corretoras, comprar a moeda com fiat currency, como o dólar ou o real, e transferir da carteira vinculada à própria conta na corretora para onde se quisesse. Não era mais necessário, também, instalar uma carteira “fria” no próprio computador e aguardar o download muitas vezes demorado de blocos de informação — o tempo para começar a utilizar sua carteira seria apenas o de liberação para operações pela própria corretora. Esse fenômeno contribuiu para a popularização e valorização do bitcoin e fez surgir diversas novas moedas, como o ethereum, ripple, dogecoin, etc.

O problema, todavia, começou após a entrada definitiva dos criptoativos na cultura mainstream a partir de 2016. Com a promessa de altos ganhos, e a falta de informações adequadas para a população, por se tratar de uma tecnologia ainda muito nova, surgiram inúmeros esquemas criminosos que prometiam rendimentos elevados a investidores mal orientados [3].

Diante deste cenário, após diversos casos emblemáticos de fraudes contra investidores envolvendo o uso de criptoativos, é que foi editada a Lei nº 14.478 de 21 de dezembro de 2022, hoje conhecida como Marco Legal dos Criptoativos. Dentre outras disposições, como a regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, houve a criação de um novo tipo penal, previsto no artigo 171-A do Código Penal, que assim dispõe:

Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

O que nos importa perguntar é o seguinte: havia de fato a necessidade de criação de um novo tipo penal para lidar criminalmente com as ocorrências recentes?

Explicamos.

Considerando apenas o Código Penal brasileiro, há mais de 300 condutas tipificadas em território nacional. Se contarmos com toda a legislação extravagante que também trata da matéria, chegaremos à casa das várias centenas de delitos previstos no país. Esse fenômeno tem nome: hipercriminalização, e já é tópico de atenção acadêmica na área das ciências penais.

A hipercriminalização pode ser conceituada como a criação de um inflado número de tipos penais, ou recrudescimento daqueles já existentes, para tutelar os conflitos sociais prioritariamente pelo direito penal — o que, sem sombra de dúvidas, é um sério problema. É evidente que boa parte do fenômeno pode ser creditada à mídia do pânico, e a resposta legislativa que ela gera[4]. Segundo Spellmeier e Puhl, essa hipercriminalização está “diretamente correlacionada à influência exercida pela mídia em geral, a qual teria o poder de induzir os parlamentares a criarem projetos de leis de proteção estatal de certo interesse sem, contudo, apresentarem comprovações empíricas para o fim a que se destinam”.[5]

Decerto, essa tendência de comportamento parlamentar fere de morte o princípio da intervenção mínima. É uma expansão injustificada da esfera da intervenção penal, e ignora a obrigação estatal de atuar como redutor dos riscos sociais — segundo Roberta Brandão, “o Estado não vem administrado corretamente o seu papel de redutor dos riscos sociais, então, diante da situação de insegurança, o Direito Penal acaba sendo transformado no meio para supostamente evitar crimes” [6].

Da verificação do artigo 171, do Código Penal, ao menos inicialmente, era possível depreender que os chamados “golpes do bitcoin adequavam-se ao tipo. Por isso, impende perguntar se era verdadeiramente necessária a criminalização específica da conduta de que trata o artigo 171-A do mesmo diploma legal, ou se estamos diante de mais uma hipertrofia legislativa que trata o Direito Penal como panaceia para solução de todos os conflitos sociais.

Alguns poderiam argumentar que sim, trata-se de evidente caso de hipercriminalização de condutas, na medida em que já existia um tipo penal capaz de abarcar a conduta alvo desta nova criminalização. Por outro lado, não é a posição aqui adotada — ao menos não completamente.

A hiperinflação do Direito Penal e a atribuição que muitas vezes ocorre para que ele cuide de todos os conflitos sociais é, sim, sem sombra de dúvida, um problema. Entretanto, o tipo servirá definitivamente como esclarecimento para a acusação, impedindo o excesso de imputação, mediante concurso formal, ou imputações completamente díspares para as mesmas condutas típicas em diferentes casos. Em outras palavras, o tipo descrito no artigo 170-A veio para preencher importante lacuna acerca da subsunção típica destes fatos.

O surgimento dessa criminalidade específica pode ser atribuída ao aparecimento de novos riscos, na chamada “sociedade de risco”. Nas palavras de Jesús-María Silva Sánchez [7]:

O progresso técnico dá lugar, no âmbito da delinquência dolosa tradicional (a cometida com dolo direto ou de primeiro grau), a adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos; assim mesmo, surgem modalidades delitivas dolosas de novo cunho que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. A criminalidade, associada aos meios informáticos e à internet (a chamada ciberdelinquência), é, seguramente, o maior exemplo de tal evolução. Nessa medida, acresce-se inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os estados).

Todavia, isso não o exime de problemas. Isso porque o tipo veio abarcado no bojo de uma lei que trouxe em seu corpo importantes disposições de natureza cível e administrativa acerca das prestadoras de serviços de ativos virtuais. Nos parece, ao menos inicialmente, que era possível — e considerando o Direito Penal enquanto ultima ratio, era o que deveria ter sido feito — trazer primeiro as disposições de ordem cível e regulatória para tratar desta nova espécie de conflito social, para, na impossibilidade de resolução por outros meios, permitir que o Poder Público lançasse mão do Direito Penal, criminalizando com especialidade a conduta prevista no artigo 170-A do Código Penal.

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[1] INFOMONEY. Guia sobre bitcoin: conheça a origem da primeira criptomoeda do mundo. https://www.infomoney.com.br/guias/o-que-e-bitcoin/

[2] KIMMELL, Mathew. Mt. Gox. https://www.coindesk.com/company/mt-gox/

[3] CRYSTAL BLOCKCHAIN. Crypto & DeFi Security Breaches, Fraud & Scams Report ​https://crystalblockchain.com/security-breaches-and-fraud-involving-crypto/

[4] Spellmeier, E. K., & Puhl, E. (2021). A hipercriminalização e o combate à criminalidade. Academia De Direito, 3, 789–805. https://doi.org/10.24302/acaddir.v3.3263 p. 792

[5] Ibid.

[6] Brandão, Roberta Barros Correia. A Hipertrofia Legislativa Decorrente da Inobservância do Princípio da Intervenção Mínima em Sede de Direito Penal. Revista Âmbito Jurídico. Pub. 03/12/2019.

[7] SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da Política Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. 3.ª ed., rev. e atual. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2013, p. 36.

Autores

  • é advogada criminalista sócia do escritório França David e Barreto Advogados, mestranda em Direito Processual pela Uerj e em Raciocínio Probatório pela Universitat de Girona, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes e secretária da Comissão de Crimes Digitais da OAB-RJ.

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