Opinião

A eficácia paralisante da coisa julgada inconstitucional

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12 de dezembro de 2023, 19h31

Logo após o julgamento, em fevereiro de 2023, li com surpresa o impacto negativo gerado pelo acórdão do Supremo Tribunal Federal que decidiu os Temas 881 e 885 de repercussão geral, assunto que desbordou o meio jurídico e alcançou a grande mídia [1]. Vindas de parcela significativa da comunidade jurídica, as críticas dirigidas à decisão da corte me pareceram, desde o início, infundadas sob a ótica processual.

Fixou-se nos referidos temas uma tese vinculante única: a decisão proferida pelo STF em repercussão geral ou em controle concentrado interrompe automaticamente (isto é, sem necessidade de rescisória) os efeitos prospectivos das decisões transitadas em julgado nas relações tributárias de trato continuado. É a chamada eficácia paralisante da coisa julgada inconstitucional. Embora o julgamento esteja suspenso desde 16 de novembro de 2023, em razão de pedido de vista do ministro Dias Toffoli em sede de embargos de declaração, já se formou maioria na corte pela rejeição do recurso e, portanto, pela manutenção da tese vinculante.

Sem o mesmo alarde na imprensa, mas com igual importância jurídica, o STF definiu, no último dia 9 de novembro, o Tema 100 de Repercussão Geral, consolidando a tese da eficácia paralisante da coisa julgada inconstitucional anteriormente firmada nos Temas 881 e 885. Nos termos utilizados no Tema 100, passou a ser inexigível o título executivo judicial fundado em interpretação incompatível com a Constituição, assim entendida pelo Plenário do STF, seja no controle difuso ou concentrado, posterior ou anterior ao trânsito em julgado.

Em que pese a reafirmação da tese, houve, porém, duas novidades especialmente relevantes no Tema 100 que ampliaram o seu espectro de incidência: o caso concreto que deu origem ao referido Tema tratava de relação previdenciária entre segurada e autarquia [2], não mais uma relação tributária, e tramitou sob o procedimento sumaríssimo dos juizados especiais.

Em razão de tais peculiaridades, é possível concluir que a tese vinculante, comum aos três Temas de repercussão geral, se aplica a toda e qualquer relação jurídica de trato continuado, bem como a todo e qualquer procedimento, seja ordinário, especial ou sumaríssimo.

Mesmo após a paradigmática decisão do STF, me chamou atenção, na 3ª Jornada de Direito Processual Civil ocorrida em setembro de 2023, a rejeição de proposta de enunciado que pregava justamente o que havia decidido o STF nos Temas 881 e 885: a dispensa do ajuizamento de ação rescisória para fazer cessar os efeitos de sentença inconstitucional transitada em julgado nas relações de trato continuado.

A rejeição do enunciado causou espécie porque a tese vinculante fixada nos mencionados Temas é velha conhecida dos processualistas: tratando-se de relações jurídicas continuativas (aquelas que se protraem no tempo), a sentença transitada em julgado que as acoberta é rebus sic stantibus [3]. Traduzindo: a obrigação extraída da sentença definitiva só produz efeitos enquanto estiverem presentes os mesmos elementos de fato e de direito que serviram de base para o julgamento da demanda. São as chamadas sentenças determinativas.

Assim, ao se debruçar sobre determinado caso concreto, o Poder Judiciário o faz sob as balizas fáticas e jurídicas delimitadas pelas próprias partes no processo. Caso, posteriormente, se alterem as circunstâncias fáticas relevantes ou as normas jurídicas que serviram de substrato para o julgamento de uma relação de trato continuado, tem-se, a rigor, um novo caso concreto que ainda não foi analisado pelo Poder Judiciário. Por isso é que não se pode falar, tecnicamente, que a interrupção dos efeitos prospectivos de sentença definitiva viola a coisa julgada. O que ocorre, nesse caso, é a substituição, a partir de um determinado marco temporal em diante, do substrato jurídico que fundamentava a sentença definitiva que decidiu uma relação de trato continuado.

Nessa linha de raciocínio, se o STF entendeu que suas decisões, proferidas em regime de repercussão geral, interrompem automaticamente os efeitos prospectivos de sentença transitada em julgado contrária, significa que é dispensável o ajuizamento de ação rescisória para tornar inexigível a obrigação de trato continuado reconhecida na sentença a partir da publicação da decisão da Suprema Corte.

O entendimento vinculante não representou, propriamente, uma mudança de orientação no âmbito do STF. No bojo do RE 596.663/RJ, em 2014, o saudoso ministro Teori Zavascki, redator do acórdão, deixou assentado que “a força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial”.

O ministro Teori Zavascki também se perguntou, no acórdão, “se essa superveniente perda de eficácia da sentença dependeria de ação rescisória”, concluindo no sentido de que “quanto à rescisória, a resposta é certamente negativa, até porque a questão posta não se situa no plano da validade da sentença ou da sua imutabilidade, mas, sim, unicamente, no plano da sua eficácia temporal”.

Portanto, a fixação da tese nos Temas 100, 881 e 885 não deveria causar surpresa ou inquietação nos juristas. Permitir que uma sentença transitada em julgado, cujo fundamento veio a se modificar, continue produzindo efeitos é tão desrespeitoso quanto deixar de aplicar uma sentença transitada em julgado a uma relação de trato continuado inalterada.

A posição do STF também encontra respaldo legal nos artigos 525, §12 e 535, §5º do CPC/2015, que acolheram a tese doutrinária da coisa julgada inconstitucional. O CPC/2015 permite, sob esse viés, ao executado impugnar, no bojo da fase de execução, independentemente de rescisória, a inexequibilidade do título ou a inexigibilidade da obrigação contida no título judicial definitivo.

Para tranquilizar os irresignados, é preciso repisar que todos os efeitos jurídicos já consumados sob a proteção da coisa julgada inconstitucional, isto é, ocorridos anteriormente à decisão do STF, continuam protegidos pela imutabilidade da coisa julgada que acobertou a sentença. Pretendendo a revisão de fatos pretéritos é que caberá, nesta específica hipótese, a ação rescisória, desde que preenchidos todos os seus requisitos legais.

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[1] Vide, por exemplo, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/02/quebra-de-decisao-tributaria-pelo-stf-gera-inseguranca-juridica-dizem-especialistas.shtml.

[2] Discutiu-se a revisão de pensão por morte em favor de segurada e a posterior declaração de inconstitucionalidade pelo STF da interpretação em que se baseou a sentença definitiva favorável à segurada.

[3] O professor Antonio do Passo Cabral prefere a expressão “ceteris paribus” por se mostrar mais abrangente que “rebus sic stantibus”, a qual, na origem, se limitava a representar a superveniência de novos fatos, e não de novo regramento jurídico.

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