A eficácia paralisante da coisa julgada inconstitucional
12 de dezembro de 2023, 19h31
Logo após o julgamento, em fevereiro de 2023, li com surpresa o impacto negativo gerado pelo acórdão do Supremo Tribunal Federal que decidiu os Temas 881 e 885 de repercussão geral, assunto que desbordou o meio jurídico e alcançou a grande mídia [1]. Vindas de parcela significativa da comunidade jurídica, as críticas dirigidas à decisão da corte me pareceram, desde o início, infundadas sob a ótica processual.
Sem o mesmo alarde na imprensa, mas com igual importância jurídica, o STF definiu, no último dia 9 de novembro, o Tema 100 de Repercussão Geral, consolidando a tese da eficácia paralisante da coisa julgada inconstitucional anteriormente firmada nos Temas 881 e 885. Nos termos utilizados no Tema 100, passou a ser inexigível o título executivo judicial fundado em interpretação incompatível com a Constituição, assim entendida pelo Plenário do STF, seja no controle difuso ou concentrado, posterior ou anterior ao trânsito em julgado.
Em que pese a reafirmação da tese, houve, porém, duas novidades especialmente relevantes no Tema 100 que ampliaram o seu espectro de incidência: o caso concreto que deu origem ao referido Tema tratava de relação previdenciária entre segurada e autarquia [2], não mais uma relação tributária, e tramitou sob o procedimento sumaríssimo dos juizados especiais.
Em razão de tais peculiaridades, é possível concluir que a tese vinculante, comum aos três Temas de repercussão geral, se aplica a toda e qualquer relação jurídica de trato continuado, bem como a todo e qualquer procedimento, seja ordinário, especial ou sumaríssimo.
Mesmo após a paradigmática decisão do STF, me chamou atenção, na 3ª Jornada de Direito Processual Civil ocorrida em setembro de 2023, a rejeição de proposta de enunciado que pregava justamente o que havia decidido o STF nos Temas 881 e 885: a dispensa do ajuizamento de ação rescisória para fazer cessar os efeitos de sentença inconstitucional transitada em julgado nas relações de trato continuado.
A rejeição do enunciado causou espécie porque a tese vinculante fixada nos mencionados Temas é velha conhecida dos processualistas: tratando-se de relações jurídicas continuativas (aquelas que se protraem no tempo), a sentença transitada em julgado que as acoberta é rebus sic stantibus [3]. Traduzindo: a obrigação extraída da sentença definitiva só produz efeitos enquanto estiverem presentes os mesmos elementos de fato e de direito que serviram de base para o julgamento da demanda. São as chamadas sentenças determinativas.
Assim, ao se debruçar sobre determinado caso concreto, o Poder Judiciário o faz sob as balizas fáticas e jurídicas delimitadas pelas próprias partes no processo. Caso, posteriormente, se alterem as circunstâncias fáticas relevantes ou as normas jurídicas que serviram de substrato para o julgamento de uma relação de trato continuado, tem-se, a rigor, um novo caso concreto que ainda não foi analisado pelo Poder Judiciário. Por isso é que não se pode falar, tecnicamente, que a interrupção dos efeitos prospectivos de sentença definitiva viola a coisa julgada. O que ocorre, nesse caso, é a substituição, a partir de um determinado marco temporal em diante, do substrato jurídico que fundamentava a sentença definitiva que decidiu uma relação de trato continuado.
Nessa linha de raciocínio, se o STF entendeu que suas decisões, proferidas em regime de repercussão geral, interrompem automaticamente os efeitos prospectivos de sentença transitada em julgado contrária, significa que é dispensável o ajuizamento de ação rescisória para tornar inexigível a obrigação de trato continuado reconhecida na sentença a partir da publicação da decisão da Suprema Corte.
O entendimento vinculante não representou, propriamente, uma mudança de orientação no âmbito do STF. No bojo do RE 596.663/RJ, em 2014, o saudoso ministro Teori Zavascki, redator do acórdão, deixou assentado que “a força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial”.
O ministro Teori Zavascki também se perguntou, no acórdão, “se essa superveniente perda de eficácia da sentença dependeria de ação rescisória”, concluindo no sentido de que “quanto à rescisória, a resposta é certamente negativa, até porque a questão posta não se situa no plano da validade da sentença ou da sua imutabilidade, mas, sim, unicamente, no plano da sua eficácia temporal”.
Portanto, a fixação da tese nos Temas 100, 881 e 885 não deveria causar surpresa ou inquietação nos juristas. Permitir que uma sentença transitada em julgado, cujo fundamento veio a se modificar, continue produzindo efeitos é tão desrespeitoso quanto deixar de aplicar uma sentença transitada em julgado a uma relação de trato continuado inalterada.
A posição do STF também encontra respaldo legal nos artigos 525, §12 e 535, §5º do CPC/2015, que acolheram a tese doutrinária da coisa julgada inconstitucional. O CPC/2015 permite, sob esse viés, ao executado impugnar, no bojo da fase de execução, independentemente de rescisória, a inexequibilidade do título ou a inexigibilidade da obrigação contida no título judicial definitivo.
Para tranquilizar os irresignados, é preciso repisar que todos os efeitos jurídicos já consumados sob a proteção da coisa julgada inconstitucional, isto é, ocorridos anteriormente à decisão do STF, continuam protegidos pela imutabilidade da coisa julgada que acobertou a sentença. Pretendendo a revisão de fatos pretéritos é que caberá, nesta específica hipótese, a ação rescisória, desde que preenchidos todos os seus requisitos legais.
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[1] Vide, por exemplo, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/02/quebra-de-decisao-tributaria-pelo-stf-gera-inseguranca-juridica-dizem-especialistas.shtml.
[2] Discutiu-se a revisão de pensão por morte em favor de segurada e a posterior declaração de inconstitucionalidade pelo STF da interpretação em que se baseou a sentença definitiva favorável à segurada.
[3] O professor Antonio do Passo Cabral prefere a expressão “ceteris paribus” por se mostrar mais abrangente que “rebus sic stantibus”, a qual, na origem, se limitava a representar a superveniência de novos fatos, e não de novo regramento jurídico.
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