Ambiente Jurídico

Tombamento constitucional dos sítios e documentos quilombolas

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

9 de dezembro de 2023, 8h00

A Constituição de 1988 dedicou especial atenção em relação à preservação da cultura das comunidades originárias de quilombos, também chamadas de quilombolas, mormente em razão da conjuntura histórico-social vivenciada na época do seu advento (celebrava-se o centenário da abolição da escravidão e o movimento de resgate de nossas dívidas seculares com o povo de origem africana dava seus primeiros passos).

Desta forma, a Constituição assegurou às comunidades remanescentes de quilombos o direito à propriedade de suas terras, de acordo com o disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, bem como declarou tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (artigo 216, § 5°).

A palavra quilombo é originária do quimbundo, quicongo e do umbundo lumbu, com o significado de “muro”, “paliçada”, donde kilumbu, “recinto murado”, “campo de guerra”, “povoação”, ou do umbundo kilombo, “associação guerreira”.

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Em nosso país, significa esconderijo, aldeia, cidade ou conjunto de povoações em que se abrigavam e resistiam escravos fugidos. Desta forma, o patrimônio quilombola deve guardar pertinência com locais específicos de resistência à opressão, não sendo mero sinônimo de patrimônio de matriz africana, pois este último é muito mais abrangente e não está expressamente tombado pelo texto constitucional.

De tal sorte, somente os bens que, comprovadamente, forem detentores de reminiscências com relação direta ao quilombismo (a exemplo dos quilombos de Palmares (AL), do Ambrósio (MG), do Indaiá (MG), entre outros) se sujeitam à proteção constitucional.

O patrimônio quilombola pode compreender tanto bens materiais (vestígios de estruturas de proteção, artefatos bélicos ou utilitários), quanto imateriais (saberes, rituais e formas de fazer originários de quilombolas).

Segundo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a partir da previsão constitucional do tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, foram abertos onze processos de tombamento no âmbito federal, assim nominados: “Quilombo Vão do Moleque”, “Quilombo Flexal”, “Quilombos de Oriximiná”, “Área conhecida como Jamary dos Pretos ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Área conhecida como Mocambo ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Áreas conhecidas como Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Área conhecida como Castainho ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Área conhecida como Porto Coris ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Quilombo em Ivaporunduva”, “Área ocupada por comunidade remanescente de Quilombo conhecida como Campinho da Independência” e “Remanescentes do antigo Quilombo do Ambrósio”. Desses processos, apenas o último resultou no tombamento. [1]

Objetivando dar maior celeridade e  concretude ao mandamento constitucional, em 20 de novembro de 2023 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional publicou a Portaria nº 135/2023, que dispõe sobre a regulamentação do procedimento para a declaração do tombamento de documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, conforme o previsto no artigo 216, §5º da Constituição, criando o Livro de Tombo dos Sítios Detentores de Reminiscências Históricas de Antigos Quilombos.

De acordo com a portaria, ela busca ressaltar o protagonismo da população afro-brasileira na reivindicação do direito à liberdade no Brasil, por meio dos fenômenos do quilombismo e do aquilombamento, pautando-se por princípios antirracistas nas ações patrimoniais, e objetiva reconhecer, nos bens culturais brasileiros, a resistência quilombola ao processo de escravização, à discriminação e à violação de direitos sofrida pelo povo negro nos períodos subsequentes.

Ainda segundo o ato, consideram-se documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos: sítios ocupados por remanescentes das comunidades de quilombos detentores de referências culturais materiais ou imateriais, nos quais se produzem e reproduzem práticas culturais vigentes; sítios não ocupados por remanescentes das comunidades de quilombos que são detentores de vestígios materiais referentes à sua memória; e documentos detentores de referências à memória de comunidades de quilombos.

Segundo o texto, consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, certificados pela Fundação Cultural Palmares, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Entende-se por documento todo e qualquer registro ou suporte de informações que podem ser usadas com efeito comprobatório ou como referência, bem como análises ou estudos adicionais, contemplando gêneros escritos ou textuais, cartográficos, iconográficos, filmográficos, sonoros ou fonográficos, micrográficos, informáticos e tridimensionais.

Entende-se por referências culturais, os sentidos e valores, de importância diferenciada, atribuídos aos diversos domínios e práticas da vida social (festas, saberes, modos de fazer, ofícios, lugares, formas de expressão, artes, narrativas orais, paisagens, elementos da natureza, edificações, objetos etc.) e que, por isso mesmo, constituem-se em marcos de identidade e memória para determinados grupos sociais.

O tombamento previsto na referida Portaria, ao contrário do tombamento administrativo tradicional previsto no Decreto-Lei nº 25/37 tem efeitos meramente declaratórios, uma vez que o efeito constitutivo exsurge diretamente do texto constitucional e a iniciativa da instauração do processo poderá ocorrer de ofício ou mediante pedido formulado por qualquer pessoa física ou jurídica.

A declaração do tombamento, conforme regulamentada na Portaria, será registrada no Livro Tombo de Documentos e Sítios Detentores de Reminiscências Históricas de Antigos Quilombos, criado pelo art. 21,  e não impedirá a abertura de processos referentes a outras formas de acautelamento de bens, como o tombamento administrativo, previsto no Decreto-Lei nº 25, de 1937, registro, previsto no Decreto nº 3.551, de 2000, cadastro de sítios arqueológicos, previsto na Lei nº 3.924, de 1961, e outros instrumentos.

De acordo com o texto da Portaria, eventuais restrições em relação à utilização do sítio que surgirem a partir da declaração do tombamento restringem-se aos aspectos culturais identificados no processo de tombamento e decorrerão da pactuação com a comunidade, respeitando-se o princípio da consulta e do consentimento prévio, livre e informado, nos termos da Convenção 169 da OIT.

Conquanto não prevista na Portaria, entendemos que o processo de tombamento dos sítios quilombolas deva sempre delimitar também a sua área de entorno, a fim de proteger a ambiência do bem.

Pecou por omissão o texto regulamentar ao não prever mecanismos de integração que permitam aos responsáveis pela gestão de arquivos públicos e privados dar ciência ao Iphan de todos os documentos que guardem referência aos antigos quilombos, pois as fontes documentais são essenciais para a validação da proteção aos sítios quilombolas, evitando a utilização indevida do instrumento para alcançar bens que não se colocam sob a tutela do artigo 216, § 4º da Constituição.

Uma análise detalhada da Portaria, em especial do artigo 6º, nos faz concluir que, para fins do reconhecimento do tombamento constitucional, o Iphan atribuiu excessivo valor à Certidão de Autodefinição como Remanescentes dos Quilombos emitida pela Fundação Cultural Palmares e a simples declaração unilateral de representante da comunidade, manifestando que seus documentos ou sítio são detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. 

Tais documentos, conquanto importantes para os fins do artigo 68 do ADCT, não bastam para o reconhecimento do tombamento constitucional, que exige estudos técnicos formais, à cargo do próprio Iphan, que demonstrem efetivamente a existência  de sítios (locais, bens materiais) detentores de reminiscências históricas  dos antigos quilombos (ou seja, vínculo com movimentos específicos de resistência à opressão) sob pena de banalização e uso abusivo do instrumento previsto no artigo 216, § 5° da Constituição da República.

Em arremate, afigura-nos como ilegal (por violação à Lei 378/37 e ao Decreto 11.670/2023) a previsão do artigo 18 da Portaria Iphan nº 135/2023, que exclui da deliberação do Conselho Consultivo do Iphan os processos de tombamento dos  documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, medida que, ademais, afasta o controle técnico e social que sempre deve estar presente na tomada de decisões envolvendo supostos bens culturais.

Enfim, o processo de seleção de bens culturais deve sempre buscar a criteriosa e adequada fundamentação técnica prévia, a legitimação da escolha com o necessário respaldo social e a formalização protetiva obedecidos os trâmites legais, tudo primando pelo equilíbrio e pela razoabilidade, a fim de se evitar, de um lado, a inadmissível omissão ou o descaso; e, de outro, a banalização  ou o excesso. [2]


[1] VAZ, Beatriz Accioly. Quilombos. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4

[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza Miranda. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte. 2021. 3i. p. 89-90.

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