Opinião

Sistemática dos Juizados Especiais facilita demandas predatórias

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30 de abril de 2023, 13h09

A advocacia predatória consubstancia-se em prática antiética e ilegal, que envolve a captação e exploração dos clientes nas denominadas aventuras jurídicas. Tal prática é considerada abusiva e desrespeita os deveres éticos, morais e normativos dos causídicos advogados que as patrocinam.

Os profissionais que praticam a advocacia predatória interessam-se mais pelos lucros e benefícios financeiros próprios, que eventual procedência na demanda acarretará, do que litigar em prol dos interesses dos seus clientes. Não raras vezes há emprego de táticas manipulativas e enganosas, com vistas ao locupletamento ilícito, tanto às expensas do cliente, quanto da parte contrária.

A pandemia de Covid-19 obrigou o Poder Judiciário a implementar novas tecnologias e práticas céleres para evitar a paralisação das atividades forenses e a sobrecarga dos Juizados Especiais. Apesar dos esforços, houve aumento na distribuição de ações predatórias razão da prospecção irregular de clientes. Esse fenômeno não é novo nos Tribunais de Justiça Brasil afora. 

O uso do Procedimento Sumaríssimo aliado à captação irregular de clientes e à criação de demandas predatórias possibilita a implementação de atuações criminosas no sistema judicial, movimentando muito dinheiro e causando prejuízos às partes envolvidas. Essas atividades predatórias evoluíram ao longo dos anos, subdividindo-se em vertentes com o objetivo de fraudar e se valer da má-fé processual para enriquecimento indevido com técnicas ilegais, imorais, abusivas e desonestas.

Aproveita-se, portanto, da sistemática dos Juizados Especiais pela sua simplicidade e por proporcionar o acesso à Justiça de uma forma facilitada, em regra gratuita e por vezes impunível.

Trata-se de uma estratégia processual que busca obter vantagens incompatíveis, atrasar ou confundir o andamento do processo, ou mesmo causar prejuízos financeiros ou morais ao adversário sem uma causa legítima ou justificável.

A industrialização das demandas, combinada com o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9099/95, que na maioria das vezes deixam as empresas "escravas do rito", contribuem maciçamente para a consecução da prática predatória.

O êxito nas ações fabricadas alastra-se em comarcas do mesmo Tribunal de Justiça ou de Tribunais de Justiça distintos, por intermédio das técnicas de superação de precedentes, ocasionando às empresas um impasse decisivo na gerência das suas demandas.

Dessa feita, ante a probabilidade de decisão judicial desfavorável, buscam a resolução rápida das demandas muitas vezes com o remédio de acordos para a mitigação dessas "entradas", o que, por sua vez, traduz em autocomposição compelida, sem nenhuma plausabilidade ou possibilidade do direito perseguido pela parte autora, apenas pelo receio de futuras condenações em valores superiores àqueles transacionados.

Por outro lado, a mantença do processo por todo o caminho procedimental, ainda que sobrevenha a improcedência do pleito autoral, prolonga o feito e aumenta efetivamente os custos da operação com honorários advocatícios e elevadas custa judiciais.

Ainda, por vezes, faz constar a impressão reversa de que a evidenciação da demanda predatória se mostra ataque direto à honra e afronta aos direitos do advogado, criando-se severa ruptura relacional para com os órgãos jurisdicionais, quando, em verdade, com vistas à efetivação do princípio da cooperação, busca-se colaborar com o Poder Judiciário para a mitigação de impulsionamento e propositura de novas demandas que se revelariam meras aventuras jurídicas.

TJ-MG
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Recente reportagem publicada no portal Migalhas informava que o juiz da Vara Única da Comarca de Saloá (PE) promoveu a extinção de impressionantes 1.476 processos considerados predatórios. Essas demandas tinham sido distribuídas por quatro advogados com inscrição originária na OAB do Tocantins, mas com inscrições suplementares em outras unidades federativas do Brasil.

As sentenças que extinguiram os processos em comento foram prolatadas pelo juiz de Direito Rômulo Macedo Bastos, que nas decisões levou em consideração os "diversos indícios de ajuizamento irregular de processos em massa na comarca e de má-fé processual, através de petições padronizadas e sem documentação suficiente; argumentos nada verossímeis, artificiais e recheados de teses genéricas; ilegalidade na captação de clientela; utilização indevida dos serviços judiciais; abuso da gratuidade da justiça e do direito de litigar; irregularidades na confecção de procuração e demais documentos; inexistência de litígio real entre as partes e vestígios de apropriação indébita de valores pelo advogado".

De acordo com o magistrado Paulo Luciano Maia Marques, do TJ-RN, advogados de outros estados usam causas idênticas de grande volume para captação ilícita de clientela — composta, em grande parte, da população hipossuficiente e desempregada. Não apenas; os honorários contratuais costumam ser abusivos, de 50% ou mais sobre o valor da indenização, congestionando o Judiciário e atuando como obstáculos para o alcance da celeridade processual.

O tema já encontra um olhar crítico nos tribunais superiores. A exemplo, tem-se o recurso especial de relatoria da ministra Nancy Andrighi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que direcionou a atenção para a necessidade de se conter o exercício abusivo do direito de ação, "em ações ou incidentes temerários, que veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à Justiça". Adentrando nas singularidades dessas ações, entende-se, conforme dito, pela predileção ao Sistema dos Juizados Especiais.

A gratuidade na propositura da demanda, combinada com a facilidade, simplicidade, celeridade e o fato de que o procedimento eletrônico vem sistematicamente mitigando a realização das audiências, contribuem para que essa prática seja altamente disseminada no Judiciário.

Outro ponto de destaque é o baixo risco que o referido sistema oferece. Não só pelos já expostos motivos, mas também pela facilidade em desistir do processo, evitando-se uma condenação por má-fé ou uma simples improcedência. As demandas predatórias trazem reflexos extremamente nocivos não somente ao Judiciário, mas também para as relações sociais, comerciais e civis.

Diante desses óbices, é imperiosa a necessidade de identificar e tratar de forma preliminar demandas predatórias propostas por advogados suspeitos. Isso pode ser feito por meio de treinamento específico para servidores e operadores cartorários, assim como e pela criação de regulamentações e comissões para apurar práticas criminais e punições aos envolvidos. A utilização das normas já existentes no ordenamento jurídico pode ser suficiente para coibir essa prática.

Nesta senda, a título de exemplificação, o artigo 80 do CPC/2015, prevê o reconhecimento da litigância de má-fé com a consequente aplicação de multa. O artigo 55 da Lei 9099/95 prevê o pagamento de custas e honorários advocatícios em havendo reconhecimento de litigância de má-fé. Já o Enunciado 136 do Fonaje prevê que "o reconhecimento da litigância de má-fé poderá implicar em condenação ao pagamento de custas, honorários de advogado, multa e indenização nos termos dos artigos 55, caput, da lei 9.099/95 e 18 do Código de Processo Civil".

O Enunciado 136 possui extrema importância no combate às práticas predatórias, pois, nas salas temáticas, nos grupos de trabalhos e nas Assembleias, a troca de informações, experiência e práticas preventivas no combate às demandas são ferramentas eficientes para mitigar a propositura de novas demandas dessa natureza.

A tecnologia revela-se ferramenta extremamente eficiente no combate às ações predatórias:  um robô sistêmico pode indicar prevenção (que também auxilia no enfrentamento de decisões conflitantes), a indicação pelo nome, CPF/MF e patrocínio repetitivo daquela pessoa que ingressa com várias demandas, impedindo de forma eficiente o acúmulo de demandas repetitivas e idênticas nos Juizados Especiais.

O processo eletrônico, combinado com a efetivação dos atos processuais também realizados de forma digital, possui duas vias que precisam de um olhar sensível.

A primeira via deve se relacionar à efetividade, celeridade e simplicidade na tramitação dos processos nos Juizados. A segunda, quanto à dispensa da realização das audiências, que facilita e propicia a distribuição das demandas predatórias.

A realização da Audiência de Conciliação ou Mediação, Instrução e Julgamento ou Una, nos Juizados Especiais, produze efeitos e consequências processuais relevantes na tramitação do procedimento judicial.

Desta forma, a audiência revela-se um ato processual inafastável, não apenas por acarretar extinção ou aplicação dos efeitos da revelia, mas, na hipótese, convolaria no momento de inquirição da parte autora para, ao menos, consubstanciar os fatos narrados e o instrumento procuratório anexado à exordial, elementos mínimos para se estabelecer a relação jurídico-processual.

A designação de audiência em todos os casos acabaria com o problema? Não. Essa regra traria maior morosidade na tramitação dos processos? De certa forma, sim.

Em um mundo ideal de relações sociais honestas e animadas na boa-fé, a repetição de ações não seria considerada predatória. Nesses casos, a produção de documentos seria suficiente para que o juiz chegasse a uma conclusão.

Como infelizmente não atingiu esse grau evolutivo social, práticas coibitivas devem ser adotadas para prevenir o ajuizamento de ações predatórias, tal qual, e a título de sugestão, o comparecimento da parte autora em cartório para ratificar os termos do mandato procuratório, sob pena de extinção sem exame de mérito.

Fato é que este comportamento induz um olhar atento não apenas ao Judiciário e aos exercitores do direito e todas as pessoas que compõem a relação processual triangular, mas antropologicamente há que estudar — e condenar — o comportamento social e o latente anseio de aferir vantagem indevidamente que acomete parcela da população, punindo-o de acordo com a reprovabilidade da sua conduta e o dano causado a outrem.

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