Opinião

"Ninguém fica para trás": as diretrizes da campanha de Bolsonaro

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29 de setembro de 2022, 12h02

O artigo de ontem indicou de que forma a chapa Lula-Alckmin promoverá, caso eleita, os direitos de crianças e adolescentes. Dando continuidade ao escrutínio das propostas dos principais presidenciáveis, o de hoje analisa as diretrizes da campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro para a pauta da infância e juventude.

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Jair Bolsonaro e empresário Luciano Hang
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A carta do atual presidente apresenta, para determinados setores da vida nacional, um nível de detalhamento que o distingue abissalmente das diretrizes da campanha Lula-Alckmin. No tocante à infância e juventude, tal impressão não é diferente. Enquanto a campanha petista se refere vagamente à infância e juventude, a campanha de Bolsonaro aparenta ser mais atenta às necessidades da população juvenil.

A estratégia do plano de governo Bolsonaro se funda no binômio família-liberdade. Segundo a carta, a reeleição de Bolsonaro consolidará "reformas estruturantes de longo prazo" nos setores social e econômico a fim de "manter o País viável [para as] gerações futuras". Sobretudo na pessoa de suas mulheres e crianças, as quais terão "atenção especial [dadas suas] condições mais vulneráveis à violência", a "liberdade e prosperidade individual e social" se alcançam com "políticas direcionadas às famílias, em especial àquelas em situação de pobreza". Ao colocar a família no centro em torno do qual devem orbitar suas políticas, é natural esperar de sua campanha um destaque maior a crianças e adolescentes. Todavia, embora enfática na defesa deste público, a carta perde paulatinamente a consistência com a realidade à medida em que se navega por suas diretrizes.

Seguindo o que julgamos ser mais relevante para a infância e juventude dentro da campanha de Bolsonaro, serão tratados os temas da segurança e educação. A propósito da educação, a carta afirma ser ela "vértice importante no plano de governo", pois a produção de conhecimento aumenta a "produtividade na indústria e serviços", alçando o país à condição de "produtor de conhecimento de ponta e [tecnologia de] valor agregado". Tais metas serão alcançadas com a "formação e valorização" de educadores e investimentos "no ensino superior e técnico".

Não obstante seu esforço argumentativo, as propostas da campanha estão descoladas da realidade que marca seu primeiro mandato. A começar pelo que a carta denomina "sinergia entre mercado e ensino", são dois os principais motivos para desconfiar da seriedade da proposta de investimento no ensino para garantir a empregabilidade de jovens egressos do sistema público de ensino.

Primeiramente, foram várias as tentativas de desmonte da educação no país. Embora reconheça, em carta, não ser possível "um ensino de qualidade sem professores motivados", a gestão Bolsonaro será lembrada pelo atraso no pagamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), destinada a auxiliar estudantes de licenciaturas no desenvolvimento de atividades pedagógicas no sistema público de ensino.

O deficit orçamentário do Ministério da Educação alcançou R$ 2,5 bilhões em 2021, prejudicando, entre outros projetos, o programa Residência Pedagógica, destinado à formação de professores da educação básica nos cursos de licenciatura, e o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, voltado ao aprimoramento da educação básica a partir de investimentos na formação do magistério em nível superior.

A estes desfalques se somam os cortes das universidades federais, cujas dotações orçamentárias minguaram para R$ 4,9 bilhões em 2022. Em contraposição aos tempos em que o investimento alcançava R$ 12 bilhões, hoje as instituições nem sequer garantem o pagamento de despesas correntes, tendo de optar entre quitá-las ou pagar bolsas de ensino.

Em 2019, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, bloqueou verbas destinadas a certas universidades federais por supostamente praticarem "balbúrdias". Tal medida não apenas foi mantida como ampliada às demais instituições federais, somando R$ 1,7 bilhão em bloqueios.

Em segundo lugar, tornou-se notório o descaso federal com a democratização do ensino para a população carente. Quem defende hoje o "acesso ao maior número de crianças e jovens [ao] conteúdo educacional" se esquece das declarações que macularam a gestão da Educação sob Bolsonaro. A pasta ficou marcada por várias polêmicas, tais como a retirada da gratuidade na inscrição do Enem e a recusa no adiamento da prova.

Segundo reivindicado à época, a manutenção das datas prejudicaria alunos de baixa renda, que enfrentavam maiores dificuldades para substituir o ensino presencial pelo remoto e, com isso, superar a interrupção escolar causada pela pandemia. Apesar da exitosa campanha de adiamento, o Enem teve baixa adesão, o que nos faz indagar quantos jovens que buscavam ingressar nas universidades não foram prejudicados pela desastrosa gestão da pasta.

Tais medidas vêm a reboque de outros comportamentos discriminatórios protagonizados por ministros do governo Bolsonaro. Paulo Guedes, por exemplo, chamou de "desastre" o Fundo de Financiamento Estudantil por supostamente beneficar "todo mundo" sem qualquer critério.

Segundo sugerido pelo ministro da Economia, determinados segmentos da sociedade não deveriam acessar o programa, tal como o filho de seu porteiro, o qual insinuou não ter "capacidade, não sab[er] ler [nem] escrever". Lembre-se que o fundo constitui o principal sistema de financiamento universitário do país, através do qual jovens de baixa renda conseguem cursar o ensino superior privado.

O mesmo ministro fez outras inferências depreciativas às classes menos abastadas. Ao propor, por exemplo, a taxação de livros, Guedes argumentou que o fim da isenção tributária não impactaria seu consumo no País, pois famílias de renda inferior à "dois salários mínimos não consomem livros não didáticos". Relembre-se, também, a polêmica protagonizada por Ricardo Vélez, segundo a qual crianças deveriam ter sua inclinação à criminalidade revertida na escola, sob pena de perpetuar a cultura "canibal" brasileira de achar que pode roubar tudo quando viaja, inclusive "assentos salva-vidas de avião".

Há quem atribua a culpa por tais polêmicas aos próprios ministros de Estado. Todavia, a responsabilidade por tais acontencimentos deve ser partilhada com o chefe de governo, sob a batuta de quem seus nomeados desempenham suas tarefas ministeriais. A este respeito, calha lembrar a alta rotatividade no MEC, também imputável à improficiência presidencial. Contabilizando quatro ministros em quatro anos, cada qual acumulou polêmicas incompatíveis com a idoneidade que se espera de quem ocupa o assento ministerial.

O ex-ministro Milton Ribeiro é investigado por desvios no FNDE (Fundo de Desenvolvimento Nacional da Educação) para favorecimento de pastores. Exonerado em 2022, foi substituído por Victor Godoy Veiga, o qual permanece interinamente no cargo. Antecedendo Ribeiro, Carlos Decotelli foi exonerado em cinco dias após suspeitas de adulteração de seu currículo. Por sua vez, Weintraub espantou a todos com intromissões em temas alheios às tarefas que lhe competiam por força de seu cargo. Sem propostas sérias e com exagerado gosto por polêmicas, logo se juntou ao grupo de desligados da pasta.

Por fim, Ricardo Vélez não poupou o ensino público de suas pautas ideológicas. Além de falas classistas, encabeçou propostas risíveis, como o revisionismo da ditadura nas escolas e a campanha para que crianças fossem filmadas reproduzindo o slogan do governo. Com passagem rápida pela pasta, nada agregou à educação no país. Sua postura ideológica, embora não censurada por Bolsonaro, hoje está na contramão do que a carta propõe para a reeleição.

Embora defenda "incrementar ações [para] permitir que alunos possam exercer um pensamento crítico sem conotações ideológicas", foram várias as tentativas do governo de impôr seu pensamento político-ideológico no conteúdo lecionado nas escolas. Colocando-se em sentido oposto ao que prega atualmente, Bolsonaro e seus nomeados nunca esconderam suas predileções ideológicas. Limitando-nos ao campo da experiência do Enem, por exemplo, o governo foi acusado de interferir no Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) para alterar determinadas questões da prova.

A carta encerra o tema da educação prometendo recuperar o "ensino das crianças e jovens prejudicados com o fechamento das escolas durante a pandemia". Ainda que se concretize em caso de reeleição, a ampliação da "autonomia financeira das famílias em situação de vulnerabilidade" não basta para recompor a falta de credibilidade que marcou o governo Bolsonaro. O descompasso existente entre seu primeiro mandato e suas propostas para reeleição põe em questão seu verdadeiro compromisso com a educação. Tomando emprestada a colocação de Marisa Midori, feita após o anúncio da taxação de livros, políticas de qualidade, assim como a indústria editorial, representam "fermentos importantes no processo de […] desenvolvimento da educação, da cultura e da ciência". Todavia, a oposição de obstáculos para tal desenvolvimento, tal como o desmonte das universidades federais e a ideologização do ensino, não revelam senão o descompromisso do Estado "em relação ao futuro do país".

Dando sequência às incongruências da carta, voltam-se os olhos para a segurança pública. Entre 2009 e 2019, o país reduziu em 15,8% o índice de homicídios por arma de fogo. Segundo o Ipea, concorreram para tanto a execução de ações qualificadas em segurança e as medidas do Estatuto do Desarmamento. Contudo, tais conquistas estão sendo ameaçadas pela pauta armamentista promovida no plano federal.

Fiel ao discurso que marcou sua corrida presidencial em 2018, Bolsonaro pretende continuar facilitando o acesso de cidadãos a armas de fogo. Em evidente contraste com as políticas de educação, tratadas com desmazelo e intransigência, sua carta promete avançar a bandeira armamentista com propostas cada vez mais flexíveis e desmedidas. O contraste que marca as diferentes posturas adotadas pelo governo para cada setor pode ser ilustrado pelo exemplo da lógica de tributação bolsonarista. Enquanto seu ministro da Economia propunha tributar livros, Bolsonaro decretava o fim do imposto sobre a importação de revólveres e facilitava sua aquisição por parte da população civil.

Recentemente, o STF suspendeu os efeitos do Decreto nº 9.685/2019, argumentando que a facilitação da circulação de armas de fogo na sociedade "atinge o núcleo essencial do direito à vida" ao fulminar a capacidade do Estado de "controlar os riscos gerados por agentes privados à segurança" da população, em especial seus segmentos mais vulneráveis. Para a Corte, não existe "um direito irrestrito ao acesso às armas, ainda que sob o manto de um direito à legítima defesa", dada a limitação imposta pelo dever de proteção da vida encampados pelo Estado.

Tal entendimento é contrário ao posicionamento da Campanha Bolsonaro, o qual prega a autodefesa do cidadão mediante o uso privado da violência. Ao exaltar a "preservação do exercício da legítima defesa", a Carta promete dar sequência ao armamento da população, ainda que isso sugira a incapacidade do aparato público de segurança de reduzir conflitos no interior da sociedade. Além de atestar a incompetência das instituições em proteger o cidadão, a política armamentista fomenta o uso da violência para resolução de disputas, com efeitos nefastos à população.

É evidente que os índices de homicídio no país estão ligados ao acesso facilitado a armas de fogo. Aumentando o risco de crimes passionais, armas de fogo foram usadas em 67,7% dos homicídios ocorridos no país em 2019. Enquanto o homicídio de mulheres fora das residências reduziu 20,6% entre 2009 e 2019, homicídios dentro do lar aumentaram 10,6% no período. Os efeitos da violência doméstica contra mulheres também reverberam nas crianças que com ela partilham o lar, seja por testemunharem agressões ou por serem, elas próprias, suas vítimas. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, a cada 60 minutos, uma criança morre por disparo de arma de fogo no país.

Recentemente em São Paulo, um homem beneficiado pelas medidas armamentistas foi preso após assassinar sua ex-esposa e filho de dois anos. Em caso similar, um homem armado foi detido após fazer sua ex-mulher e filho reféns em Minas Gerais.

A violência permanece a principal causa mortis de jovens no país. Embora acompanhe a queda no número geral de homicídios, mortes por violência letal continuam altas entre jovens de 15 e 19 anos. Contudo, o risco de vitimização não é uniforme para todos, variando de maneira desigual entre seus diferentes segmentos conforme a intersecção de diferentes fatores, tais como etnia e classe econômica. Portanto, ao se distribuírem de maneira não uniforme na sociedade, as mortes por violência letal atingem, dentre os jovens, proporcionalmente mais os negros de classe baixa. Por exemplo, dados do Atlas da Violência indicam que a redução dos homicídios no País se concentrou mais na população não negra. Entre 2009 e 2019, a taxa de homicídio entre não negros diminuiu 33%, enquanto a taxa para a população negra aumentou 1,6%. Dentre as razões para tal discrepância está a associação entre estereótipos raciais e socioeconômicos, a qual reproduz preconceitos contra certos estratos sociais ao mesmo tempo em que limita seu acesso a melhores condições de vida.

A incidência de tais fatores, associada com os dados acima descritos, comprova que o acirramento do cenário de violência no país deve ser combatido com medidas que dificultem o acesso a armas, e não que ofereçam tais instrumentos letais ao cidadão, conforme defende a carta. Além de uma política centrada no desarmamento, a diminuição de homicídios entre jovens também pode ser alcançada com programas educativos. É o caso da política de ensino integral. Segundo o Centro de Evidências da Educação Integral, investir em escolas integrais ajuda a reduzir pela metade as taxas de homicídio entre jovens. Isto porque, além de afastá-los de situações cotidianas que ameacem sua integridade física, o acréscimo na carga horária escolar aumenta a formação educacional e consequente qualificação para o mercado de trabalho. Assim, o modelo de ensino reduz a probabilidade de recurso ao crime, o qual vem empurrando crianças cada vez mais contra as grades do sistema de justiça.

Logo, as ações propostas pela carta para proteção de "grupos mais vulneráveis à violência, como mulheres [e] crianças" não subsistem quando contrapostas às medidas federais. Ao defender o uso privado da violência e subestimar a formação de jovens, as políticas da campanha Bolsonaro possuem grande potencial para agravar a violência no país, guiando-o a passos largos para um abissal déficit social de difícil resolução.

Em suma, segundo a carta, as políticas de educação e segurança darão continuidade aos "compromissos de governo 2019-2022", pavimentando um Estado no qual "ninguém fica para trás". Este artigo esmiuçou algumas de suas orientações para a reeleição de Bolsonaro, indicando que suas propostas destoam da prática que marcou seu mandato. À luz das comparações acima, nada indica que este cenário se alterará em caso de reeleição. Se esta impressão se concretizar e as iniciativas da Campanha Bolsonaro para a educação e segurança seguirem o exemplo do quanto feito até o momento, os jovens pobres de minorias étnicas correm o risco de enfrentar mais um mandato de marginalização.

Diferentemente do que prega a carta, ficarão para trás, pois o aspirante à reeleição tem se esmerado em excluir sua presença nas políticas federais.

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