Opinião

"Priorizando crianças e infâncias": as diretrizes da campanha Lula-Alckmin

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28 de setembro de 2022, 12h06

Na reta final da corrida eleitoral para a ocupação do assento presidencial, voltam-se os holofotes aos programas propostos pelos presidenciáveis para os inúmeros setores da vida social, cultural e econômica do país. Embora menos frequente nas mesas de debate, nas quais se veem sobressair temas como corrupção e democracia, não menos importante é a temática da infância e juventude. A fim de reavivar a sua relevância nos debates que ocupam atualmente a vida política nacional, proponho aqui a dissecar as propostas de campanha dos dois principais candidatos à Presidência da República (Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro) no tocante à salvaguarda e à melhoria dos direitos de crianças e adolescentes.

Começo hoje com a análise das principais propostas da chapa Lula-Alckmin para a infância e juventude, ao que se segue, amanhã, o escrutínio das propostas de Jair Bolsonaro para o tema.

Ricardo Stuckert
Lula e o influenciador digital Felipe Neto
Ricardo Stuckert

Apresentada no ato de registro da candidatura no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a carta-programa da chapa Lula-Alckmin alterna menções vagas à temática da infância e juventude com programas mais detalhados voltados a esse grupo social específico, o qual reúne aproximadamente 54 milhões de brasileiros (segundo último censo realizado pelo IBGE). 

A começar por suas referências implícitas, salta aos olhos a superficialidade com que a carta-programa aborda a pauta da saúde e moradia. Em que pese sua elevada importância na conjuntura social atual, as propostas para os setores de saúde e habitação estão aquém da profundidade exigida pela sua envergadura constitucional. No tocante à moradia, por exemplo, a carta afirma ser imprescindível retomar as políticas de investimento em infraestrutura habitacional que marcaram os governos federais anteriores ao mandato Bolsonaro (2019-2022).

Segundo destaca laconicamente seu texto, o Brasil voltará "a ter um amplo programa de acesso à moradia". Não obstante seja verdade que a "moradia digna […] é um direito de todos e todas e um requisito para um Brasil desenvolvido", a vagueza e brevidade com que se aborda o tema denota certo distanciamento da campanha do tema da habitação.

Embora não haja dados oficiais sobre a população em situação de rua no país, estima-se haver um número elevado de pessoas nessa condição nas cidades brasileiras, marcada pela tônica de violência, insalubridade e violação contínua a direitos básicos como acesso a fontes seguras de água e alimentação. Segundo dados do Observatório de Remoções, organizado por universidades estaduais e federais, somente no Estado de São Paulo foram 223.767 famílias ameaçadas de remoção no período 2017-2021 e 37.278 efetivamente removidas de suas moradias e forçadas a procurar assentamentos informais para viver. Com números dessa ordem, limitar-se a defender o acesso à moradia constitui premissa básica (e ainda insuficiente) de qualquer campanha presidencial. Espera-se maior compromisso da parte dos candidatos no combate intransigente a tal estado de coisas inconstitucional que sujeita tantos brasileiros, entre eles muitas crianças e adolescentes, a condições de vida degradantes e desumanas.

Para tanto, faz-se necessário dedicar mais espaço nas diretrizes programáticas para o detalhamento das medidas necessárias para reversão de tal situação (tal como o número de famílias a serem beneficiadas por programas habitacionais, a indicação estimada da quantidade de infraestruturas habitacionais a serem construídas e a dotação orçamentária destinada a seu financiamento). Já que tal engajamento não veio por escrito, resta aguardar que seu compromisso seja tomado pela chapa Lula-Alckmin ao longo de sua campanha.

No que diz respeito à área de assistência social, o tema é relegado às margens de seu programa de governo. Sobretudo no contexto pós-pandêmico em que os impactos da Covid-19 não se limitaram ao setor da saúde propriamente dito, mas antes atingiram outros temas sociais sensíveis, as políticas públicas pretendidas para o setor deveriam estampar, em grande minúcia, as primeiras páginas da carta-programa. É o caso, por exemplo, da crescente quantidade de crianças órfãs de um ou ambos cuidadores primários por causas relacionadas à Covid-19.

Em que pese a constatação feita pela carta do aumento de crianças órfãs no país, a tal referência não se segue qualquer iniciativa concreta para remediar os nefastos efeitos sociais e econômicos causados pelo problema. Pelo contrário, seu texto se limita a afirmar que "terão atenção especial as milhares de crianças e adolescentes em situação de orfandade decorrentes da Covid-19", sem esclarecer no que consistiria referida "atenção"Novamente, afirmações genéricas do tipo são insuficientes para proteger uma geração inteira marcada por centenas de milhares de crianças que perderam seus cuidadores primários durante a pandemia.

De forma similar, a carta-programa se furta de esclarecer quais seriam os programas a serem implementados para endereçar a epidemia de abuso infantil existente hoje nas moradias brasileiras. Por exemplo, se, por um lado as diretrizes se comprometem a combater a violência doméstica contra mulheres, por outro, parecem ignorar o elevado número de crianças que também foram vítimas de abuso durante a pandemia. Conforme discutido no 8º Seminário Internacional do Marco Legal da 1ª Infância, sediado na Câmara dos Deputados, a suspensão das atividades dos estabelecimentos públicos voltados à infância (tais como creches e escolas) privou grande parcela do público infantil das redes públicas de proteção. Condenando muitas crianças ao convívio mais frequente e próximo com seus agressores no ambiente familiar, a pandemia não fez senão aumentar os episódios de abuso doméstico no país.

Embora a retomada dos serviços públicos já tenha se normalizado, os traumas físicos e psicológicos causados por atos de violência doméstica ocorridos durante a pandemia persistem e precisam ser endereçados com a seriedade e urgência devidas. Dentre as medidas cabíveis, figura não apenas o maior engajamento do aparato público de segurança para prevenção e combate de novos episódios de abuso infantil mas também a criação de programas de atendimento médico e psicológico especializado a crianças vítimas desse tipo particular de violência. Tais temáticas, todavia, foram solenemente desconsideradas pelo programa da campanha petista, criando um vácuo na proposta política para o setor da assistência social.

Uma leitura mais atenta da carta-programa permite identificar outra zona cinzenta nas diretrizes programáticas da chapa Lula-Alckmin, dessa vez para a resolução do problema da evasão escolar. Durante a pandemia, o Brasil assistiu passivamente ao aumento no número de crianças e adolescentes abandonando seus estudos. Segundo dados da ONG Todos pela Educação, mais de 244 mil crianças de 6 a 14 anos evadiram-se do ambiente escolar em 2021, contra 90 mil em 2019. Tais dados devem ser entendidos em um contexto multifatorial, que conjuga suspensão de aulas presenciais, gravidez na adolescência e desestímulo causado por reprovações, além da falta de vagas em instituições públicas de ensino.

De uma forma ou de outra, é fato público e notório que a evasão escolar tem se consolidado como uma triste realidade nacional que não dá mostras de arrefecer. Conforme defende a Unicef, o Brasil necessita de políticas específicas que rompam os ciclos viciosos que afastam cada vez mais as populações escolares mais vulneráveis da Educação Básica. Contudo, não é isso que prega, pelo menos expressamente, o programa petista/pessebista. Pelo contrário, com exceção ao tema do trabalho infantil, a carta-programa não aborda de que forma sua proposta de "recuperação do déficit de aprendizagem escolar" superará os entraves causados pelos diversos indutores da evasão escolar intensificados durante a pandemia.

Portanto, ao invés de se apresentar como uma janela de oportunidades para transformação social, a falta de formulação concreta para o tema do atendimento escolar por parte da campanha petista acaba revelando a fragilidade de suas diretrizes programáticas para a educação. Para um candidato que não perde a oportunidade de divulgar os feitos de sua gestão na área da educação, causa estranhamento o fato de tais conjunturas não terem sido abordadas com a atenção devida em seu programa de governo.

Há, contudo, que se fazer justiça à importante proposta de renovação do programa de cotas raciais e socioeconômicas para ingresso de adolescentes pertencentes a minorias étnicas ao ensino superior. Iniciado no próprio governo petista com a promulgação da Lei Federal nº 12.711/2012, o programa universitário de cotas completa dez anos com resultados positivos. Segundo dados reunidos por Marciano Godoi e Maria Angélica dos Santos, o ingresso de estudantes de escolas públicas nas ins­tituições federais de ensino superior cresceu 39% em quatro anos. Neste mesmo intervalo de tempo, os graduandos negros e pardos de instituições federais atingiram 51,2%, excedendo em aproximadamente 8% a quantidade de brancos (43,3%). Contudo, os pesquisadores destacam que a expansão acelerada por ações afirmativas ocorrida na última década é ainda insuficiente para reduzir o abismo histórico que persiste em separar "brancos e negros em termos de níveis educacionais e acesso ao ensino superior".

Evidência disso é, por exemplo, o fato de a meta de taxa líquida de matrícula da população branca no ensino superior ser de 36,1%, contra parcos 18,3% da população negra, a qual, na realidade, deveria estar próxima de 33% (conforme meta estipulada pelo Plano Nacional de Educação). Portanto, para que o programa de cotas continue a render frutos, corrigindo as distorções históricas que teimam em desviar jovens de baixa renda de suas trajetórias acadêmicas, a renovação da política de reserva de vagas universitárias às populações brasileiras carentes é medida que se impõe. A este respeito, portanto, a proposição da campanha petista é louvável e merece ser incentivada.

Enquanto as diretrizes governamentais para a infância e juventude deixam a desejar nos setores da educação e saúde, o eixo programático para a economia apresenta medidas mais concretas. Reconhecendo-se a alta taxa de desemprego da juventude brasileira, a campanha petista pretende aumentar a perspectiva ocupacional deste setor da população a partir da qualificação e criação de novas oportunidades profissionais. Conforme dispõem suas diretrizes programáticas, o "desemprego" e a "subutilização da força de trabalho" seriam combatidos com o fomento ao desenvolvimento industrial e produção tecnológica.

O fomento ao acúmulo de valor agregado à produção industrial brasileira não apenas viabilizaria o que a Carta-programa chama de "novas e mais oportunidades para a juventude" nos setores de produção de conhecimento científico e tecnológico. Também combateria a precarização da força de trabalho e o aumento da criminalidade nos centros urbanos. Isto porque, quanto maior a qualificação profissional de jovens, maior a sua perspectiva de inserção no mercado formal de trabalho e, consequentemente, menor seu recurso aos meios alternativos de produção de renda (oferecida pela criminalidade e pelo próprio mercado informal).

Fomentando-se, portanto, o maior equilíbrio entre capital e trabalho a partir da inovação científica e tecnológica, alcança-se, a um só tempo, a geração de conhecimento, o robustecimento da economia e o gradativo atingimento da justiça social.

Por fim, com relação ao tema do combate ao trabalho infantil, é consabido que inúmeras crianças e adolescentes de baixa renda são forçadas a abandonar seus estudos para ingressar no mercado informal e complementar os depauperados proventos de suas famílias. As medidas voltadas para remediar este indutor da evasão escolar não constam expressamente na carta-programa, mas antes são identificadas nas entrelinhas de suas diretrizes programáticas. A fim de reverter os impactos negativos que as necessidades financeiras das famílias de baixa renda geram ao atendimento escolar de crianças e adolescentes, um dos eixos econômicos da campanha Lula-Alckmin se volta justamente à complementação da renda familiar. São quatro as políticas principais voltadas ao reforço financeiro dos núcleos familiares menos favorecidos: renegociação das dívidas das famílias, ampliação do Bolsa Família, valorização do salário-mínimo e o estímulo à geração de emprego, sobretudo com apoio ao cooperativismo e microempreendedorismo e a retomada de investimentos nos setores industrial e agrícola.

Lideradas pelo sistema universal de renda básica, tais políticas estruturantes têm o condão, segundo propõe a carta, de gerar "mais renda para os mais pobres", garantindo sua "inclusão previdenciária" e seu acesso efetivo à "segurança alimentar e nutricional".

Atrelada ao tema da segurança alimentar, está também a questão da defesa do meio ambiente saudável de crianças e adolescentes, a qual ocupa considerável espaço no programa de governo petista. Dentre suas diversas promessas de campanha, a chapa Lula-Alckmin propõe criar uma política que priorize a indústria de produção orgânica e agroecológica, por meio da qual será possível alcançar o abastecimento autossuficiente e sustentável de alimentos e aumentar a segurança alimentar das atuais e futuras gerações.

A propósito do tema ambiental, cumpre ressaltar a igualmente importante questão do desmatamento. No corrente cenário de devastação de todos os biomas brasileiros, tornou-se bandeira da campanha petista reverter as taxas de degradação ambiental atualmente incentivadas pelos arroubos autoritários da gestão federal atual.

Conforme garante a carta-programa, enfrentar o desmatamento como parte dos esforços para reverter os efeitos das mudanças climáticas é passo fundamental para garantir o desenvolvimento sustentável para a infância e a juventude brasileiras.

O alinhamento dos eixos social, cultural e econômico transmite a impressão de que as diretrizes programáticas da chapa Lula-Alckmin abarcam, de maneira completa e exitosa, todos os setores da infância e juventude necessários para a promoção e defesa de seus direitos. Segundo consta em sua carta-programa, o novo governo petista combaterá a fome, a exploração do trabalho e todas as formas de abuso às quais estão sujeitas crianças e adolescentes em razão de sua juventude, fragilidade e inexperiência.

Chegado ao fim de sua carta programática, porém, fixa-se na memória do leitor uma simples frase de efeito constante em sua carta-programa: a gestão petista, caso eleita, compromete-se a "priorizar crianças e suas [várias] infâncias". A tal afirmação segue-se um questionamento que propomos, de cunho igualmente simples: as promessas de campanha são firmes em seu propósito de avançar a pauta de salvaguarda e promoção dos direitos das crianças e adolescentes ou, pelo contrário, constituem promessas insuficientes dispostas apenas com o objetivo eleitoreiro de angariar a simpatia de seus eleitores? Neste artigo, busquei evidenciar a existência de lacunas nas diretrizes propostas pela campanha petista, as quais possuem evidente espaço para melhorias. Ainda que possua aspectos positivos, a campanha Lula-Alckmin deve investir na melhoria das políticas voltadas às crianças e adolescentes, posto que a priorização da infância e juventude abrange e exige muito mais do que a carta-programa se propõe a vagamente endereçar.

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