Limite penal

Em defesa das prerrogativas de todos os advogados e advogadas

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

2 de setembro de 2022, 9h19

Está na Constituição, artigo 133: "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Mas basta uma rápida passada pelos canais de notícias nas últimas semanas para constatar, com lamentável facilidade, que a realidade das salas de audiência Brasil afora ainda desafia o reconhecimento da advocacia como condição necessária ao funcionamento da Justiça e, neste passo, resiste a assumi-la como fundamental ao próprio Estado democrático de Direito. É disso que se trata, nada menos que isso. A Limite Penal de hoje será dedicada à defesa das prerrogativas da advocacia a partir da análise de alguns episódios que nos deram a pensar. Em curto intervalo de tempo, em multiplicidade de formas e diversidade de agentes, o exercício da advocacia sofreu fortes ataques. E esses episódios nos levaram recordar a outros. Vejamos.

Spacca

A memória nos ajuda a trazer o caso mais recente primeiro. Na última terça-feira (30/8), um Júri que se realizava no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi palco de ofensas graves realizadas pelo promotor de justiça Eugênio Paes Amorim contra um dos advogados da defesa. A velocidade das redes sociais não poupou a comunidade jurídica, e, quase em tempo real, assistimos as imagens do promotor xingando o advogado de "palhaço", "bobalhão" e "defensor de bandido". Ato seguido, a descompostura do promotor passou aos meios de comunicação e, talvez em vista das grandes proporções que a história foi tomando, aquele que, apenas há algumas horas, tinha atacado os advogados com tanta desenvoltura, resolveu prestar uma declaração sobre o ocorrido, em tom de "esclarecimento".

Boa tarde, pessoal. Saindo de um julgamento agora. Fato grave, um psicopata mata cinco pessoas — duas crianças, um bebê que ele não aceitava que era filho dele — e os advogados do vizinho estado de Santa Catarina se fazem presentes de forma belicosa desde o começo da sessão, sendo inclusive grosseiro o advogado principal com a magistrada, que é uma mulher.

Ele prossegue, argumentando que era um desrespeito que o advogado caminhasse perto dele e dos jurados e, ao pedido que gentilmente fez ao representante do réu, teria sido recebido com o dedo em riste e, só por isso, dito o que disse.

Eu fui recebido de modo grosseiro, o advogado apontou o dedo pro meu rosto, de dedo em riste, só então eu me utilizei de palavras fortes, que talvez não precisasse utilizar, mas foi o momento logo após ele levantar o dedo e colocar o dedo em riste no meu rosto… 

Os trechos da fala do promotor evidenciam a sua tentativa de sensibilizar os críticos, afinal, quem nunca passou do limite ao revidar a uma injustiça? A riqueza de detalhes com os quais resolve iniciar seu vídeo são claro esforço para que voltemos a vê-lo com humanidade — o monstro não é ele, mas o psicopata sentado no banco dos réus. Longe de parecer efetivamente estar disposto a rever o seu comportamento, o promotor em realidade deu subsídios para que a opinião pública pudesse escolher ficar do lado dele, isto é, para que cada um que assistisse seu desabafo pudesse concluir que os representantes do réu são mesmo "advogados de bandido", que, por isso, merecem mesmo menos respeito que ele; exatamente como esbravejou no plenário do Júri suspenso naquela tarde.

Mas não acaba por aí: a falta de limites que dessa vez o promotor dirigiu ao advogado, também já foi desferida contra magistrados, inclusive contra a juíza que, coincidentemente, presidia a fatídica audiência dessa semana. Em 2018, Cristiane Busatto Zardo foi desrespeitada por Eugênio Amorim em audiência e só aceitou voltar a trabalhar com ele depois da publicação, em uma rede social, de sua retratação (exigência constante do acordo judicial que fizeram). Portanto, é mais do que oportuno tomar com cautela o argumento de que as ofensas contra o advogado seriam alguma espécie de defesa da magistrada, que seriam devidas ao calor do momento e à crueldade do fato. Até porque, se o júri é procedimento previsto para crimes dolosos contra a vida, aquiescer ao comportamento desbordado pelos motivos elencados pelo promotor seria equivalente a esvaziar de vez a obrigação de respeito aos advogados.

 A preocupação com o zelo às prerrogativas da advocacia nos leva a constatar as diferentes formas por meio das quais as ofensas são praticadas. Há gritos e xingamentos e há também frases aparentemente polidas, que igualmente agridem. Na segunda-feira da semana passada (22/08), a advogada Malu Borges foi publicamente repreendida pelo desembargador Elci Simões, durante a sessão virtual do Tribunal de Justiça do Amazonas, quando o então presidente do feito deu-se conta da presença do seu bebê. Diante de todos, a advogada teve que ouvir reclamações sobre os ruídos discretos que a criança de seis meses fazia, e, como se não bastasse, ainda teve a sua ética profissional questionada:

São barulhos que tiram a nossa concentração. A senhora precisa ver a ética da advogada.

Malu havia pedido alteração na ordem da pauta justamente porque estava com seu bebê, mas seu requerimento foi negado em afronta direta ao art. 7O-A, III, do Estatuto da Ordem, que diz: "São direitos da advogada: gestante, lactante, adotante ou que der à luz, preferência na ordem das sustentações orais e das audiências a serem realizadas a cada dia, mediante comprovação de sua condição".

Tal como recordaram Clarissa Höfling, Luisa Moraes Abreu Ferreira e Maíra Beauchamp Salomi em artigo publicado na ConJur há alguns dias, a alteração no Estatuto da OAB para incluir esse direito deveu-se a um triste episódio de 2013, em que a advogada Daniela Teixeira teve que enfrentar o nascimento prematuro de sua filha Julia como desfecho do dia em que seu pedido por preferência em audiência no CNJ foi negado. Depois de passar um dia aguardando para realizar a sua sustentação, a advogada foi direto para o hospital. Aquele que deveria ser o dia mais tranquilo e harmônico possível deu lugar a um parto complicado, seguido de seis paradas respiratórias da bebê naquele mesmo dia e de mais 61 dias de UTI. Mas embora a Lei Julia Matos (13.363) seja de 2016, o avançar dos anos de lá pra cá não parece ter-nos trazido os avanços necessários.

A maternidade, ao que tudo indica, continua a não ser bem-vinda, sendo constantemente negada à advogada a sua condição de mãe. Aqui, mais uma vez, as diferenças de tratamento a homens e mulheres são impactantes. No dia 18/08, poucos dias antes do desrespeito à advogada lactante, a segunda turma do STJ recebeu de braços abertos o advogado Felipe Cavallazzi e Lorenzo, seu filho de 1 ano e 10 meses. O mininstro Mauro Cambell Marques disse:

Senhores ministros, eu vou rogar vênia da vossa excelência e invocar o Estatuto da Criança e do Adolescente e também a Constituição Federal, porque esta Turma está sendo honrada pela presença do Lorenzo, que já está aqui desde o início da sessão muito bem comportado.

Ao consultar aos demais juízes, se poderia antecipar o processo do pai de Lorenzo, a resposta foi um unânime sim. É evidente que é descabida qualquer crítica aos ministros do STJ, ou ao advogado, mas não há como se deixar de ver a escancarada forma a partir da qual os estereótipos de gênero fazem com que o comportamento do pai que leva o filho ao trabalho seja considerado digno de prêmio, enquanto o comportamento da mãe que faz o mesmo é merecedor de reprimenda. É que a sociedade patriarcal e machista não perde a oportunidade de recordá-las o lugar a que supostamente pertencem; que devem dedicar-se ao lar e à família, e não às realizações profissionais. A partir dessa mesma lógica, o homem que faz mais do que é esperado dele, isto é, que além de levar o sustento da família "ajuda" com as crianças, merece "estrelinha". Analisando os episódios à luz das opressões naturalizadas em nossa sociedade, Flavia Guth, em artigo recente, também se pergunta:

Por que a sociedade enaltece a paternidade, mesmo quando exercitada em seu nível mínimo, mas repulsa a maternidade, mesmo diante de um esforço descomunal pela conciliação entre todas as funções que sobrecarregam o cotidiano feminino?

É preciso romper com essa lógica e, para isso, há que se reeducar juízes, promotores, defensores e advogados para não reproduzirem as opressões tradicionalmente naturalizadas, nem serem coniventes quando elas sejam praticadas.

Por último, mas não menos importante, gostaríamos de recordar o episódio que envolveu a advogada Valeria dos Santos, em 2018. E trazemos de volta este caso justamente porque ele é representativo de um outro fator, além do gênero, que contribui ao tensionamento e ao desrespeito às prerrogativas da advocacia: o fator raça. Em 10/09 daquele ano, Valeria dos Santos, uma advogada negra, foi algemada durante uma audiência no Juizado Especial Cível de Duque de Caxias. Como advogada, Valeria resistia ao encerramento da audiência com razão, já que a juíza leiga negava-lhe acesso à contestação apresentada pela contraparte. Ela então insiste em esperar o delegado da OAB-RJ e acaba no chão, algemada, diante de todos.

Eu estou trabalhando! Eu estou trabalhando! É meu direito como mulher, como negra, eu quero trabalhar!

Valeria teve seus direitos profissionais desconsiderados e, em procedimento instaurado para apurar a conduta da juíza leiga, o que se entendeu foi que não houve qualquer desvio funcional. Mas será mesmo que se fosse uma advogada ou advogado branco o desfecho teria sido idêntico? Ou será que a juíza não teria aceitado aguardar o delegado da OAB? Ou será, ainda, que a juíza não teria diretamente exibido o documento que a advogada queria ver?

Os casos aqui trazidos são ilustrativos das dificuldades que os advogados e advogadas  enfrentam diuturnamente e também servem a visibilizar as camadas graduais dessas dificuldades, a depender de fatores como raça, gênero, classe social, etc. Os estereótipos que oprimem e naturalizam as diferenças de tratamento precisam ser evitados, as capacitações são oportuno caminho para isso. Mas antes das capacitações é fundamental realizar séria autocrítica, com a honestidade intelectual que é necessária à construção de uma advocacia verdadeiramente inclusiva e que, ademais, conte com o respeito de todas as outras instituições. Trata-se de esforço indispensável à administração da justiça que a democracia brasileira está urgentemente a precisar.

Autores

  • é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

  • é professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado), professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade Damas (Recife), professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel), especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR), mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza"), presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória, advogado e membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

  • é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • é juiz de Direito, professor universitário (Univali-UFSC) e doutor em Direito (UFPR).

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