Opinião

ADPF nº 828/DF: novo rito não se aplica a todas as desocupações

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8 de novembro de 2022, 9h17

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828/DF foi proposta em 14/4/2021 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no contexto da pandemia de Covid-19. Nela, pugnou-se, cautelarmente, em síntese, a interrupção dos despejos, desocupações ou remoções forçadas, judiciais ou administrativas, de ocupações objeto de disputa judiciais ou não, medida parcialmente deferida em 3/6/2021, com o propósito de proteção à moradia naquele período.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Recentemente, no dia 31/10/2022, o ministro Luís Roberto Barroso, atendendo a pedido do PSOL e dos amici curiae na ADPF 828/DF, proferiu decisão monocrática, definindo uma série de condições para efetivação de reintegrações de posse, desocupações, entre outros. Posteriormente, a decisão monocrática foi levada ao plenário do Supremo Tribunal Federal, tendo este, em 2/11/2022, referendado o posicionamento ministro Roberto Barroso.

Notadamente, pelo sensível tema tratado, tais decisões geraram uma grande celeuma no país, uma vez que, a priori, considerou-se que funcionariam como um verdadeiro óbice ao cumprimento de centenas  ou milhares  de ações relativas à posse e ao despejo por falta de pagamento de aluguéis ou arrendamentos, o que poderia se traduzir em uma grave violação ao direito de propriedade.

Assim, passa-se a esclarecer o real alcance das decisões proferidas na ADPF nº 828.

O real alcance da decisão
Primeiramente, em 03/06/2022, foi concedida parcialmente pelo ministro relator a medida cautelar pleiteada pelo PSOL.

Naquela decisão, o ministro Barroso afirmou que rejeitava "o pedido de suspensão de ‘todos os processos, procedimentos ou qualquer outro meio’ que visem à remoção, desocupação, reintegrações de posse ou despejos enquanto durar a crise sanitária". O ministro deixou claro que o objetivo da ação seria "tutelar o direito à moradia (…)" e suspendeu por seis meses as desocupações.

Registre-se, no trecho acima, o destaque conferido pelo ministro relator ao fato de que o objetivo da ação, e seu deferimento parcial, referiam-se especificamente ao direito à moradia no contexto pandêmico. Contudo, ao lavrar o dispositivo da decisão, nota-se a ampliação do espectro, para alcançar os imóveis que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis.

Assim, aquela primeira decisão determinou, 1) nos casos de ocupação anteriores à pandemia (20/4/2020), a suspensão pelo prazo de seis meses de medidas administrativas ou judiciais que resultassem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que servissem de moradia ou que representassem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis; 2) nos casos de ocupações instauradas após o início da pandemia que servissem de moradia para populações vulneráveis, o poder público poderia atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas fossem levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegurasse a elas moradia adequada.

Além disso, aquela mesma decisão 3) suspendeu pelo prazo de seis meses a possibilidade de concessão do despejo liminar em contratos de locação residencial em que o locatário fosse pessoa vulnerável (artigo 59, §1º, da Lei nº 8.425/1991). Essa mesma decisão manteve a possibilidade da ação de despejo por falta de pagamento, com observância do rito normal e contraditório.

Cabe registrar que, após essa decisão, foi editada a Lei nº 14.216/2021, que estabeleceu medidas excepcionais para suspender o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resultasse em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, e a concessão de liminar em ação de despejo de que trata a Lei nº 8.245/1991. Saliente-se que a nova lei se referiu, expressamente, a imóveis urbanos [1] e a desocupações coletivas.

Posteriormente à publicação da Lei supra, sobreveio nos autos da ADPF nº 828/DF pedido de tutela provisória incidental, que foi parcialmente deferido, determinando a extensão para as áreas rurais da suspensão de desocupações e despejos, de acordo com os critérios previstos na Lei nº 14.216/2021, até o prazo de 31/04/2022.

Ressalte-se, nessa decisão, o caráter de ampliação do espectro legal verificado do artigo 1º da Lei, isto é, estendeu-se o alcance da lei, também, para imóveis rurais. Além disso, registre-se a "vinculação" da suspensão aos termos da nova Lei. Neste ponto, esclarece-se que a lei especificou em seu artigo terceiro [2] o que seriam desocupações ou remoções forçadas coletivas.

Provocado novamente por um segundo pedido de tutela provisória incidental, o ministro Barroso proferiu, em 30/04/2022, sua segunda decisão incidental cautelar. Nesta, manteve-se a extensão, para as áreas rurais, da suspensão de desocupações e despejos, conforme critérios da Lei nº 14.216/2021, estendendo-se o prazo para até 30/06/2022.

Ato contínuo, mais uma vez provocado, foi proferida uma terceira decisão concessiva de tutela incidental. Nesta, determinou-se a manutenção da suspensão temporária de desocupações e despejos, inclusive para as áreas rurais, de acordo com os critérios previstos na Lei nº 14.216/2021, estendendo-se o prazo para até 31/10/2022.

Em face do iminente esgotamento do prazo e da alegação de graves consequências do cessar dos efeitos das cautelares anteriormente deferidas, a parte autora requereu, em 20/10/2022, mais uma tutela incidental. Tal tutela, em 31/10/2022, foi parcialmente concedida, sendo referendado pelo Plenário do STF em 02/11/2022.

A mais recente decisão  já referendada  considerou a significativa melhora no cenário epidemiológico no Brasil e aduziu que os motivos que fundamentaram a concessão da medida cautelar não mais perduram em sua integralidade, de modo que não se justifica a prorrogação da suspensão pleiteada pela parte autora. Assim, determinou o STF a instauração de um regime de transição, que deve ser adotado a partir de agora, para a retomada de imóveis objeto de conflitos coletivos e cuja execução da retomada estava suspensa pela APDF nº 828/DF.

Nessa toada, decidiu o Supremo Tribunal Federal que tal regime transitório se dará amparado em três pilares. O primeiro, consiste na determinação de que "os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais instalem, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que possam servir de apoio operacional aos juízes e, principalmente nesse primeiro momento, elaborar a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada".

O segundo, consiste na determinação de que "a realização de inspeções judiciais e de audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários, como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva, inclusive em relação àquelas cujos mandados já tenham sido expedidos. As audiências devem contar com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos locais em que esta estiver estruturada, bem como, quando for o caso, dos órgãos responsáveis pela política agrária e urbana da União, Estados, Distrito Federal e Municípios onde se situe a área do litígio, nos termos do artigo 565 do Código de Processo Civil e do artigo 2º, §4º, da Lei nº 14.216/2021".

O terceiro impõe obrigações ao Estado quando este promover operações administrativas de remoção coletiva de pessoas vulneráveis que estavam paralisadas em decorrência das decisões da ADPF nº 828/DF. Assim, quando, por exemplo, o poder público promover uma operação para retirar uma invasão de pessoas vulneráveis em área pública, deve 1) dar ciência prévia e ouvir os representantes das comunidades afetadas; 2) fixar prazo razoável para a desocupação voluntária; 3) encaminhar as pessoas vulneráveis para abrigos públicos ou para outro local que assegure o exercício do direito à moradia.

Conclusão
Ante o exposto, considerando todo o percurso jurídico da ADPF nº 828/DF, notadamente dos efeitos da quarta decisão de tutela incidental proferida  decisão já referendada pelo Plenário do STF  faz-se essencial destacar os seguintes pontos.

Em primeiro lugar, quanto à determinada  desde a decisão do dia 03/06/2021  impossibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem audiência da parte contrária (Lei nº 8.245/1991, artigo 59, §1º, I, II, V, VII, VIII e IX), verifica-se que a decisão mais recente autorizou a retomada do regime legal para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo.

Em segundo lugar, entende-se que a recente decisão do STF não impõe quaisquer requisitos para a efetivação de despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse em processos de caráter individual, em ocupações para fins comerciais ou que não estavam suspensos pelas decisões anteriores da ADPF nº 828. A decisão do dia 31/10/2022 impõe requisitos adicionais apenas para desocupações que já estavam suspensas e que são de natureza coletiva (destinada a moradia ou de produção pelo trabalho individual ou familiar).

Tal conclusão deriva a) do expresso comando da última decisão, que aduz: "defiro (…) para determinar a adoção de um regime de transição para a retomada da execução de decisões suspensas na presente ação (…)"; b) do destaque expresso do relator constante da primeira decisão (03/06/2021) de que a cautelar concedida, e sucessivamente renovada,  referia-se exclusivamente à litígios coletivos; e c) do fato de que a segunda decisão (1/12/2021), que amparou-se na Lei nº 14.216/2021 (e ampliou o seu alcance para imóveis rurais), também fulmina qualquer dúvida acerca da incidência da suspensão ser restrita à ações coletivas, uma vez considerada a letra expressa da referida lei (artigo 1º, artigo 2º, artigo 3º da Lei nº 14.216/2021).

Assim, o novo rito imposto pelo STF, que dificultaria a efetivação das desocupações, remoções forçadas, reintegrações de posse, entre outros, não atinge os processos possessórios, ações de despejo ou outros processos de caráter individual que envolvem desocupações. O procedimento imposto na decisão somente se aplica aos casos que, cumulativamente: 1) foram alcançados por suspensões decorrentes da ADPF nº 828, 2) ocupações de caráter coletivo e 3) de imóveis cuja destinação pelos ocupantes seja de moradia ou represente produtiva pelo trabalho individual ou familiar.


[1] Artigo 1º Esta Lei estabelece medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2, para suspender até 31 de dezembro de 2021 o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, e a concessão de liminar em ação de despejo de que trata a Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, para dispensar o locatário do pagamento de multa em caso de denúncia de locação de imóvel e para autorizar a realização de aditivo em contrato de locação por meio de correspondências eletrônicas ou de aplicativos de mensagens.

Artigo 2º Ficam suspensos até 31 de dezembro de 2021 os efeitos de atos ou decisões judiciais, extrajudiciais ou administrativos, editados ou proferidos desde a vigência do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, até um ano após o seu término, que imponham a desocupação ou a remoção forçada coletiva de imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, que sirva de moradia ou que represente área produtiva pelo trabalho individual ou familiar.

[2] Artigo 3º Considera-se desocupação ou remoção forçada coletiva a retirada definitiva ou temporária de indivíduos ou de famílias, promovida de forma coletiva e contra a sua vontade, de casas ou terras que ocupam, sem que estejam disponíveis ou acessíveis as formas adequadas de proteção de seus direitos, notadamente:

I – garantia de habitação, sem nova ameaça de remoção, viabilizando o cumprimento do isolamento social;

II – manutenção do acesso a serviços básicos de comunicação, de energia elétrica, de água potável, de saneamento e de coleta de lixo;

III – proteção contra intempéries climáticas ou contra outras ameaças à saúde e à vida;

IV – acesso aos meios habituais de subsistência, inclusive acesso a terra, a seus frutos, a infraestrutura, a fontes de renda e a trabalho;

V – privacidade, segurança e proteção contra a violência à pessoa e contra o dano ao seu patrimônio.

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