Golpismo sobre rodas

Bloqueios de rodovias podem configurar crime contra Estado democrático de Direito

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1 de novembro de 2022, 20h42

Trechos de rodovias de pelo menos 23 estados e do Distrito Federal vêm sendo bloqueados por caminhoneiros e outros apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) desde a madrugada de segunda-feira (31/10), horas após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição presidencial. Segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, essa conduta pode ser enquadrada como crime de abolição violenta do Estado democrático de Direito.

Reprodução/Twitter
Bloqueio montado por caminhoneiros bolsonaristas na Via Dutra no interior do RJReprodução/Twitter

Os manifestantes contestam a vitória de Lula. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram caminhões e até pneus queimados sendo usados para impedir a passagem pelas vias.

Em um dos vídeos mais difundidos até o momento, um caminhoneiro diz estar em contato com lideranças no país inteiro e afirma que só vão liberar as estradas após o Exército tomar o país. A deputada federal reeleita Carla Zambelli (PL-SP), forte aliada de Bolsonaro, já parabenizou os responsáveis pelos bloqueios.

"A atuação dos caminhoneiros no sentido de bloquear estradas não é um movimento político legítimo, mas um movimento destinado a causar desordem e tumulto pelo puro e simples fato de eles não estarem de acordo com o resultado das eleições", aponta Pierpaolo Cruz Bottiniadvogado e professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

Segundo ele, isso é crime e precisa ser apurado pelas autoridades constituídas. "É absolutamente legítimo o emprego de força pra solucionar essa questão", assinala Bottini.

A advogada Marina Pinhão Coelho Araújo, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), considera que as condutas dos bolsonaristas podem se encaixar no tipo penal previsto no artigo 359-L do Código Penal: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". O delito pode levar a prisão de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência.

O jurista Lenio Streck, por sua vez, concorda com a possibilidade de tal enquadramento penal. Segundo ele, podem ser responsabilizados criminalmente "não só os líderes do movimento, mas também quem insuflou: mentores intelectuais dessa tentativa de golpe, parlamentares e policiais".

Fator violência
Para a criminalista Márcia Dinis, a conduta dos caminhoneiros e demais apoiadores de Bolsonaro pode ser incluída no artigo 359-L, já que o dispositivo "diz respeito ao impedimento do exercício dos poderes constitucionais", e as manifestações se referem ao resultado das eleições, "a fim de impedir o exercício do presidente eleito".

No entanto, a advogada ressalta que, pela letra da lei, "faz-se necessário o emprego de violência ou grave ameaça para que a conduta seja típica".

Segundo ela, "o ato de bloquear a estrada não implica, necessariamente, prática de violência ou ameaças". Ou seja, a conduta, por si só, sem identificação do uso de força física, não configuraria o crime.

O próprio artigo 359-T do Código Penal diz que não é crime "a manifestação crítica aos poderes constitucionais, nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

No entanto, foram noticiados ataques a carros por manifestantes. "Nesses casos, verificado o emprego de violência ou ameaça, é possível enquadrar a conduta no tipo penal", conclui Márcia.

Policiamento duvidoso
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi criticada por fazer corpo mole no combate aos bloqueios, com alguns de seus agentes atuando a favor do movimento. Em entrevista coletiva nesta terça-feira (1/11), diretores da instituição alegaram que foram registrados apenas "dois ou três casos" de conduta irregular, que já estão sendo apurados pela Corregedoria-Geral.

No domingo, surgiram diversas denúncias de ações da PRF contra o transporte de eleitores. Isso levou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, a pedir explicações ao diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques. Mais tarde, as operações foram suspensas e o ministro afirmou que os eleitores não foram impedidos de chegar aos locais de votação.

Streck considera que a atuação do chefe da PRF e de "quem o mandou fazer obstruções no dia da eleição" pode ser enquadrada no crime de violência política, previsto no artigo 359-P do Código Penal: "Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".

Resposta judicial
Nesta segunda, Alexandre determinou que a PRF e as Polícias Militares estaduais liberassem as vias bloqueadas pelos bolsonaristas. O Plenário do Supremo Tribunal Federal já formou maioria para confirmar a decisão liminar.

A pena estabelecida pelo ministro para o descumprimento da ordem é de multa de R$ 100 mil por hora, além de responsabilização pessoal do diretor-geral da PRF, com possível afastamento do cargo e até mesmo prisão em flagrante pelo crime de desobediência.

Além disso, em alguns estados, a Justiça Federal também concedeu liminares para proibir os bloqueios e autorizar a remoção de pessoas, veículos e objetos das vias.

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