Opinião

O fim da pandemia e de sua estrutura normativa

Autores

  • Henderson Fürst

    é doutor em Direito pela PUC-SP doutor e mestre em Bioética pelo Cusc professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas professor de Bioética do Hiae presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP diretor da Sociedade Brasileira de Bioética e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Beatriz Kestener

    é advogada especialista em Direito Sanitário pela Fiocruz e sócia-fundadora da Kestener e Vieira Advogados.

27 de maio de 2022, 16h01

No dia último dia 22 de abril, o Ministro da Saúde assinou a Portaria GM/MS nº 913/2022 [1] declarando o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da pandemia de Covid-19, entrando em vigor 30 dias após a data de sua publicação.

Com isso, deu-se início a dois grandes debates: 1) quem é competente para declarar o fim da pandemia? e 2) como fazer para lidar com as normas cuja validade são condicionadas à existência da Espin?

Quanto ao primeiro ponto, dentre as diversas manifestações é importante registrar o Ofício Conjunto nº 14/2022 [2] do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais da Saúde (Conasems) manifestando preocupação quanto ao suporte normativo estadual e municipal que tem sua eficácia vinculada à vigência da declaração de emergência: o arrefecimento dos casos de Covid-19 não implica necessariamente o fim da pandemia, sendo necessária a manutenção de ações e serviços de saúde que podem sofrer com o desabastecimento. As entidades sugeriram que o prazo de vigência da Portaria GM/MS nº 913/2022 seja de 90 dias, para dar tempo suficiente de se realizar uma transição pactuada.

O Conselho Nacional de Saúde, por sua vez, questionou a competência do Ministro da Saúde para decretar o fim da pandemia, entendendo ser da Organização Mundial da Saúde essa competência, conforme a Recomendação nº 08/2022 [3]. A doutrina brasileira, aliás, debate  a natureza jurídica das recomendações da OMS e sua força vinculante desde 2020 [4].

Para além do debate da vinculação, é preciso considerar a existência de um direito administrativo global [5] voltado ao desenvolvimento de instrumentos regulatórios que efetivamente lidem com a complexidade dos fenômenos vivenciados pela comunidade de nações, e que não são mais adequadamente respondidos pelo direito administrativo local de cada país, surgindo a necessidade de uma regulação estatal global [6]  ainda que observada a soberania e especificidades de cada nação, que vincule agências reguladoras, entidades internacionais e mercados regulados de modo coerente ao enfrentamento dessa complexidade.

Pode-se considerar , quanto ao término da pandemia, que o Brasil está parcialmente considerando a vinculação das recomendações da OMS, pois estabeleceu, no artigo 2.º, §3.º, da Lei 13.979/2020, que a duração da situação de emergência de saúde pública "não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde". Todavia, o Brasil parece apenas parcialmente vinculado, pois o artigo 2.º, §2.º, da Lei 13.979/2020, estabelece que a duração da situação de emergência de saúde pública será disposta por ato do Ministro de Estado da Saúde [7].

Assim, a declaração do fim da Espin por meio da Portaria do Ministério da Saúde está dentro do âmbito de competência conferida pela norma geral de contenção da pandemia no Brasil.

Quanto ao segundo ponto, que diz respeito à estrutura normativa cuja validade é condicionada à existência da Espin, importa que todos os órgãos governamentais afetados pela revogação da Espin providenciem a atualização das normas sob sua competência para prorrogar  se o caso  a validade dessas normas de forma adequada.

Louvável, portanto, a ação da Anvisa quando publicou, no dia 18.05.2022, a Resolução RDC nº 683/2022, prorrogando a vigência da Resolução RDC 606/2022 até 17.11.2022, e de outras 18 resoluções estratégicas até 21.05.2023. Cria-se, assim, um período de transição adequado para lidar com as consequências das normas afetadas.

Espera-se que o mesmo movimento seja adotado por outras autarquias, e pelos Estados e municípios, garantindo-se a adequada segurança jurídica para os envolvidos (tanto gestores públicos quanto privados) que a Constituição Federal estabelece como critério de atuação da Administração Pública.


[4] Neste sentido, à favor da força vinculante das recomendações da OMS, conferir MAZZUOLI, Valério. As determinações da OMS são vinculantes ao Brasil? Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/58018/artigo-as-determinacoes-da-oms-sao-vinculantes-ao-brasil-por-valerio-de-oliveira-mazzuoli ; e, contrário à força vinculante, conferir: SOUZA, Rafael Soares. Qual o valor jurídico das recomendações da OMS? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-14/opiniao-qual-valor-juridico-recomendacoes-oms#_ftn7

[5] KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The emergence of global administrative law. Law and contemporary problems, v. 68, n. 3/4, 2005.

[6] DAVIS, Kevin E.; KINGSBURY, Benedict; MERRY, Sally Engle. Indicators as a technology of global governance. Law & Society Review, 46(1), 71-104. 2012. p. 80; BRAITHWAITE, John; COGLIANESE, Cary; LEVIFAUR, David. Can regulation and governance make a difference?. Regulation & Governance, v. 1, nº 1, p. 1-7, 2007. p. 3

[7] Lei 13.979/2020: "Artigo 2.º (…)
§1.º (…)
§2º Ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta Lei.
§3º O prazo de que trata o §2º deste artigo não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde.
(…)"

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