Opinião

Ativismo no julgamento da constitucionalidade do inquérito das fake news

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19 de maio de 2022, 20h14

Em 14 de março de 2019, o ministro Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), editou a Portaria nº 69/2019, autorizando a instauração de inquérito para apuração dos fatos e infrações ligados à "existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares" (STF, 2019).

À Portaria nº 69/2019, seguiu-se a instauração do Inquérito 4.781, sob condução do ministro Alexandre de Moraes. Desde logo, aludido inquérito ensejou calorosos debates na esfera pública, tais como quanto à utilização do inquérito como ferramenta de perseguição política, dado o perfil e alinhamento ideológico dos investigados; quanto ao questionamento da competência do STF para sua instauração e condução; e quanto à constitucionalidade de medidas investigatórias adotadas pelo ministro Alexandre de Moraes na condução do inquérito.

No entanto, antes mesmo das mais paradigmáticas repercussões de dito inquérito quanto aos atos de investigação levados a cabo em seu âmbito, foi protocolada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) junto ao STF, de parte do partido político Rede Sustentabilidade, impugnando a constitucionalidade da referida Portaria nº 69/2019. Segundo a requerente, a portaria estaria em rota de colisão com os princípios da separação dos poderes, do juiz natural, do devido processo legal e do acesso à Justiça, bem como o princípio da proibição de criação de tribunal de exceção.

Diante da natureza das questões levantadas, ao julgar a ADPF, que recebeu o número 572, os ministros de nosso Supremo Tribunal Federal tiveram que se manifestar sobre os limites de suas atribuições jurisdicionais, ativismo judicial e legitimidade democrática. Em especial, a corte se pronunciou acerca da correta interpretação e alcance do artigo 43 de seu regimento interno, que trata de poderes de instauração de inquérito pelo tribunal, dispositivo este que fundamentou a instauração do Inquérito 4.781, nos termos da aludida Portaria nº 69/2019.

Ativismo judicial a interpretação do artigo 43 do RISTF
Em sentença proferida em 18 de junho de 2020, o Supremo analisou os dois pedidos trazidos pela requerente na inicial, quais sejam, (1) a interpretação conforme a Constituição do artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) e (2) a declaração de inconstitucionalidade da Portaria nº 69/2019. O cerne do debate, portanto, concentrou-se na interpretação do artigo 43 do RISTF, através do qual se aferiria a constitucionalidade da portaria nele fundada.

Dito artigo é parte do Capítulo VIII — Da Polícia do Tribunal, dentro do Título I – Do Tribunal, do Regimento Interno, e informa que:

"Artigo 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro."

Nesse sentido, a alegação trazida pela requerente, em sua peça inicial, foi de que a correta interpretação desse artigo importa em compreendê-lo enquanto regulamentador do poder de polícia interno do tribunal. Assim, não seria possível a expansão da aplicação do artigo 43 a fatos praticados fora dos limites territoriais ali estabelecidos nem a fatos cuja autoria não seja atribuível a autoridade ou pessoa sujeita à jurisdição do Supremo, ainda que atinjam a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, nos termos da Portaria. Mais do que isso, tal interpretação do referido dispositivo importaria em ampliação dos poderes da autoridade judiciária de modo incompatível com a ordem constitucional vigente, vez que infringiria o preceito fundamental da separação dos Poderes.

Deste modo, dentre os temas tratados no julgado, os ministros foram incitados a se manifestar sobre a constitucionalidade da leitura expansiva do artigo 43, dada por ocasião da criação da portaria, que resultou por conferir ao Supremo a prerrogativa de instaurar o inquérito das fake news. Em sendo tema sensível à delimitação de competência atípica da corte, ao longo das 380 páginas do julgado, vemos implícito um esforço argumentativo intentado pelos ministros para que a legitimidade do julgado se assegure.

A questão da legitimação das decisões resta presente por todo o julgado e é ponto de discussão recorrente quando se discute o controle judicial de políticas públicas. Neste sentido, o mestre Elival da Silva Ramos (2010) nos ensina que é elementar a qualquer discussão acerca de ativismo judicial o tópico sobre a legitimidade do controle de constitucionalidade, tal qual vemos ocorrer no julgado. No entanto, mais do que a mera defesa dogmática da pertinência legal pela demonstração da possibilidade jurídica do controle, a discussão deve perpassar por uma justificação por via externa ao Direito, axiológica, incidindo sobre "se o modelo de Estado Constitucional de Direito escolhido pelo Constituinte seria o mais adequado para implantar uma democracia" (RAMOS, 2010, p, 25).

Nesse sentido, o grau de comprometimento interpretativo que esse posicionamento impõe pode ser vislumbrado através de Barroso (2012), no artigo "Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática". Nesse texto, o então advogado aborda o tema da legitimidade sobre o viés da dificuldade contra majoritária da imposição da interpretação do julgador sobre aquilo que seria o sentido atribuível àqueles que exercem mandato popular. A superação dessa questão é trazida sob o viés duplo da normatividade e da filosofia.

O fundamento normativo é, naturalmente, a expressa atribuição da competência de realizar controle judicial ao Judiciário e, especialmente, ao Supremo Tribunal Federal, prevista em nossa Constituição. Filosoficamente, dois aspectos importam. O primeiro é que, ao se utilizar dessa previsão constitucional, há a concretização da decisão atributiva que foi tomada pelo constituinte enquanto representante do povo, preservando-se a separação dos poderes. No entanto, mesmo nos casos em que o exercício dessa competência parece colidir com as decisões legislativas, em que as cortes assumem o papel de verdadeiras coparticipantes do processo de criação do Direito, a legitimidade resta assegurada à luz de um segundo fundamento filosófico, qual seja, o dever judicial de proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial majoritária.

No mesmo sentido, não apenas a passagem já citada, como tantas outras passagens do julgado em análise destinam-se a reforçar o papel constitucionalmente posto do Supremo de "guardião da Constituição". A justificação trazida nos votos, além de fundada no próprio texto da Constituição, que seria a razão dogmática tratada por Elival Ramos, toca também no contexto histórico de sua promulgação, na defesa daquilo que chamamos "espírito da Constituição" e, de forma geral, em argumentos de natureza axiológica que invocam um dever-ser deontológico da atuação judicial.

Passando pela primeira barreira à atuação ativista do judiciário, a da legitimidade, resta o questionamento sobre quais limites essa prerrogativa deve conhecer. Em outras palavras, questiona-se quão rígido ou flexível o nosso modelo de separação de poderes é, sobretudo, em se tratando de interpretação normativa que incide sobre uma investigação a ser conduzida pelo mesmo órgão que julga. Aqui, temos que os ministros trazem aportes normativos interessantes, calcados em duas teorias constitucionais: a teoria das garantias institucionais e a dos implied powers.

Quanto à teoria das garantias institucionais, é necessário rememorar que seu fundamento encontra-se na relevância do papel de determinadas instituições de direito público na preservação da ordem jurídica, de forma que devem ter as suas características constitucionais elementares preservadas. Neste sentido, o professor Paulo Bonavides destaca que:

"a garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido" (BONAVIDES, 2008, p. 542).

Dessa forma, essas garantias servem à estruturação e limitação contra mudanças contrárias aos valores constitucionalmente estabelecidos. Assim, a garantia institucional serve de freio aos intentos de mudanças que se distanciem do modelo constitucional atualmente vigente, ameaçando a preservação da separação dos poderes e a própria continuidade do órgão ou instituição sobre o qual recaia o ímpeto de transformação (DANTES, FERNANDES, 2020). No caso de aplicação dessas garantias ao Poder Judiciário, é possível, portanto, conectar as garantias institucionais com a função contra majoritária a ser exercida pelos tribunais.

Assim, a teoria das garantias institucionais serve tanto de fundamentação àquilo que o ministro Barroso refere-se como a necessidade de defesa institucional do STF no fragmento reproduzido anteriormente, quanto um aporte de justificação da leitura expansiva do artigo 43. Quanto ao último caso, grande parte dos ministros entendeu que a correta interpretação da norma pressupõe sua aplicação, gerando a possibilidade de instauração de inquérito pelo Supremo, em qualquer caso de conduta ilícita que tenha o condão de embaraçar as atividades institucionais da corte, sob fundamento de que o artigo 43 do RISTF consubstancia uma garantia da continuidade da função jurisdicional exercida pelo Supremo. No mesmo sentido apontam Dantas e Fernandes (2020, s.p.), para os quais, nos termos do julgamento da ADPF 572 – DF, "o art. 43 do RISTF parece cumprir essa função de garantia institucional, a ser exercida de forma excepcional para os casos de graves ataques ou crimes que afetem o livro exercício das funções constitucionais da corte ou a instituição como um todo".

Passando à relação com a teoria dos poderes implícitos, ou implied powers [1], como conhecida em solo americano, onde se consagrou, é mister que se faça menção ao paradigmático caso MacCulloch vs Maryland, julgado pela Suprema Corte estadunidense. Na ocasião, o então Chief Justice John Marshall, responsável pela redação do acórdão, fez a célebre afirmação de que "não há frase no instrumento [a Constituição] que, como é o caso nos artigos da Confederação, exclua poderes incidentais ou implícitos, ou que requeira que toda competência fosse expressamente minuciosamente descrita" (UNITED STATES, 1819, p. 17).

Desta forma, a teoria dos poderes implícitos informa que, ainda que não haja, expressamente, na Constituição, a atribuição de certa função a órgão ou instituição, essa competência deve ser reconhecida enquanto legítima se for meio necessário à consecução da função à qual o órgão ou instituição seja destinado. Esta doutrina autoriza, portanto, a previsão infraconstitucional de competências não constitucionalmente conferidas a órgãos e instituições, desde que sejam necessárias ao próprio exercício da função que lhes sejam constitucionalmente atribuídas.

Aplicada ao caso em tela, parte dos ministros utilizaram a teoria dos poderes implícitos como fundamento para a leitura dada ao artigo 43 do RISTF, vez que essa interpretação seria a que melhor permite o regular exercício da função jurisdicional, levando-se em consideração o aspecto funcional da continuidade da instituição, conforme tratado ao explorarmos a teoria das garantias institucionais.

Considerações finais
Superados os óbices à legitimidade do exercício do controle judicial, a maioria dos ministros entendeu pela leitura expansiva do artigo 43 do RISTF enquanto sentido ordinariamente atribuível à norma. No mais, utilizando-se de premissas fundadas na finalidade da norma, de garantia da continuidade da função jurisdicional e afins, a corte entendeu que referida norma incidiria em qualquer situação de conduta ilícita com o condão de embaraçar suas atividades institucionais, com base nas teorias das garantias institucionais e dos poderes implícitos.

Assim, essa interpretação, pelos fundamentos mencionados, foi compreendida como constitucional pela corte. Como resultado do julgamento, por 9 votos a 1, decidiu-se pela completa improcedência da ação, de forma a "declarar a constitucionalidade da Portaria GP nº 69/2019 enquanto constitucional o artigo 43 do RISTF, nas específicas e próprias circunstâncias de fato com esse ato exclusivamente envolvidas com a portaria impuganada" (BRASIL, 2020, p. 1).

Tal interpretação, portanto, escapa às limitações tradicionais da separação de poderes, consolidando, na jurisprudência pátria, o entendimento de que a visão de uma rígida separação deve dar lugar à concepção de uma mistura parcial de poderes, com fundamento último na própria natureza da função judicial, em seu papel contra majoritário.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANCLIEN, Joseph J. Broader Is Better: The Inherent Powers of Federal Courts. N.Y.U. Annual Survey of American Law, v. 64, 2008, p. 37–55.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. [Syn]Thesis, Rio de Janeiro, vol.5, nº1, 2012, p.23-32.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. (Plenário). RE. 627.189 – SP. Ementa: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. ADPF. Portaria GP nº 69 de 2019 (…). Requerente: Rede Sustentabilidade. Intimado: Presidente do Supremo Tribunal Federal. Relator: min. Edson Fachin. Distrito Federal, 18 jun. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755791517. Acesso em: 25/6/2021.
FERNANDES, Victor Oliveira; DANTAS, Eduardo Sousa. Sistema acusatório e investigação preliminar no STF: o "inquérito das fake news". Revista Consultor Jurídico, 3 jun. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-03/dantas-fernandes-sistema-acusatorio-investigacao-preliminar-stf. Acesso em: 28/6/2021.
MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz. Comentários ao art.102, I, l da Constituição Federal. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 1ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Gabinete da Presidência. Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019. Brasília, 2019.
UNITED STATES. Supreme Court. McCulloch v. Maryland, 17 U.S. (4 Wheat.) 316. First Party:McCulloch. Second Party: Maryland. March 5, 1819.


[1] Apesar de tratados como sinônimos no julgado, alguns doutrinadores entendem que os implied powers não se confundem com os inherent powers. Sobre o tema, ver ANCLIEN, 2008.

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