Opinião

Moro apresentou hospedagem em hotel como comprovante de domicílio em SP

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8 de junho de 2022, 12h02

"TRE nega domicílio eleitoral de Moro". A dúvida é: estaria a Justiça Eleitoral correta em negar o pleito do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro?  É o que se pretende responder aqui por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Do domicílio
Segundo Carlos Roberto Gonçalves:

"A noção de domicílio é de grande importância no direito. Como as relações jurídicas se formam entre pessoas, é necessário que estas tenham um local, livremente escolhido ou determinado pela lei onde possam ser encontradas para responder por suas obrigações"[1].

Desse modo, o Código Civil prevê:

"Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.
Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.
Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida."

Assim, no âmbito civil, percebemos que existem dois domicílios para a pessoa natural: o residencial e o profissional. No primeiro caso, a pessoa tem que comprovar que efetivamente reside com ânimo definitivo na referida localidade e, no segundo, a pessoa tem que comprovar que trabalha em determinado lugar de forma não eventual.

No mais, a pessoa pode ter mais de um domicílio residencial e mais de um domicílio profissional, pois efetivamente pode passar alguns dias da semana morando em algum local e outros dias em outro; assim como pode trabalhar em mais de uma cidade. Além disso, o domicílio residencial da pessoa não precisa conciliar com os eu domicilio profissional, pois alguém pode residir em uma cidade e trabalhar em outra. Nesse sentido, afirma Carlos Roberto Gonçalves:

"Dessa forma, se uma pessoa, por exemplo, morar com sua família em São Paulo, tendo escritórios em cidades contíguas, como Santo André e Diadema, onde comparece em dias alternados, em qualquer desses três lugares poderá ser acionada".[2]

No nosso caso concreto, Moro era de Maringá (PR) e morava e trabalhava em Curitiba, mas queria se candidatar em São Paulo, onde nem residia nem trabalhava. Assim, seria possível alguém transferir o seu título eleitoral para um local no qual não tem nem domicílio residencial nem profissional? Seria possível especificamente a transferência do domicílio eleitoral de Moro para São Paulo?

É o que analisaremos no próximo tópico.

Do domicílio eleitoral e o caso Moro
De antemão, o Código eleitoral prevê o seguinte:

"Art. 1º Este Código contém normas destinadas a assegurar a organização e o exercício de direitos políticos precipuamente os de votar e ser votado.
Parágrafo único. O Tribunal Superior Eleitoral expedirá Instruções para sua fiel execução". (Grifos Nossos).

Assim, diante da autorização legal para expedir instruções eleitorais, o TSE editou a resolução 23.659/01 que dispõe o seguinte:

"Art. 23. Para fins de fixação do domicílio eleitoral no alistamento e na transferência, deverá ser comprovada a existência de vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional, comunitário ou de outra natureza que justifique a escolha do município". (Grifos Nossos).

Desse modo, o conceito de domicílio eleitoral não se confunde "com de domicílio do direito comum"[3], pois a legislação eleitoral possui norma específica sobre as eleições e que deve prevalecer em relação ao Código Civil, seguindo uma antiga expressão em latim, mas que é perfeitamente compreensível: "lex specialis derogat legi generali"[4].

Nesse sentido:

"lei de natureza geral, por abranger ou compreender um todo, é aplicada tão-somente quando uma norma de caráter mais específico sobre determinada matéria não se verificar no ordenamento jurídico. Em outras palavras, a lei de índole específica sempre será aplicada em prejuízo daquela que foi editada para reger condutas de ordem geral"[5].

Ademais, percebe-se que o conceito de domicílio do Código Eleitoral é diferente e ao mesmo tempo mais amplo do que o do Código Civil. É diferente porque a pessoa só pode ter um domicílio eleitoral e é mais amplo porque no último caso não se é aceito apenas a comprovação de residência com ânimo definitivo ou a realização de profissão não eventual na cidade, sendo aceito qualquer natureza de vínculo, inclusive afetivo, desde que devidamente comprovado.

Assim, a pessoa pode estabelecer seu domicílio eleitoral em uma localidade comprovando que lá nasceu, reside, estuda, trabalha de forma não eventual, possui familiares, realiza trabalhos sociais constantemente, faz política regularmente… Enfim, basta comprovar qualquer situação que demonstre a efetiva existência de um vínculo.

Desse modo, o TSE afirma que o conceito de domicílio eleitoral é mais "elástico"[6] do que o adotado no Código Civil.

Entretanto, mesmo assim Moro não conseguiu, pelo menos no âmbito do TRE-SP, transferir o seu título do Paraná para São Paulo. E por que isso aconteceu? Simplesmente porque o ex-juiz efetivamente não conseguiu comprovar que tinha um vínculo efetivo com a capital paulista.

De antemão, como comprovante residencial em São Paulo, Moro apresentou a hospedagem em um hotel[7]. De fato, não ter uma residência fixa na localidade, tal como dito acima, não seria um impeditivo para transferir o domicílio eleitoral, porém sem o comprovante de uma residência seria necessária a comprovação de outros vínculos, o que, segundo TRE-SP, não aconteceu.

Os advogados de Moro alegavam que ele morava ao mesmo tempo em Curitiba e em São Paulo, onde trabalhava[8]. Entretanto, o TRE-SP entendeu não existir comprovação nesse sentido afirmando que "não há vínculo profissional algum com o estado de São Paulo a não ser por uma consultoria que durante grande parte do tempo foi prestada de forma virtual"[9].

Parece assistir razão ao TRE-SP, pois, como dito outrora, o trabalho que gera um vínculo é o não eventual. Entendimento em sentido contrário permitiria, por exemplo, que um advogado que tivesse um processo virtual em cada estado-membro do Brasil pudesse transferir seu domicílio eleitoral para qualquer lugar do país.

Outrossim, Sergio Moro era juiz federal em Curitiba no ano de 2018[10], Ministro da Justiça e Segurança Pública em 2020[11] e depois morou um ano nos Estados Unidos, de onde só voltou no final de 2021[12].

Desse modo, não se sustenta a tese de que o ex-juiz estabeleceu um vínculo profissional não eventual apenas nos últimos meses na cidade de São Paulo.

Conclusão
O conceito de Domicílio Eleitoral é mais amplo do que o conceito de Domicílio Civil. Assim, é possível que a pessoa fixe seu domicílio eleitoral em uma cidade mesmo sem residir e trabalhar nela.

Entretanto, para fixar seu domicílio eleitoral em uma localidade se faz necessário provar um efetivo vínculo de qualquer natureza no local.

No caso de Moro, a comprovação em testilha, segundo o TRE-SP, não aconteceu, sendo por essa razão que o domicílio eleitoral do ex-juiz continua sendo, pelo menos por enquanto, no Paraná, onde nasceu, estudou, casou-se, teve filhos, morou e trabalhou em mais de uma profissão até iniciar, em Brasília, a sua vida política.

REFERÊNCIAS
CASTRO, José Soares. p.30. Concurso aparente de norma. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. N. 4. 1980 [29-35].
CERQUEIRA, Thales Tácito; CERQUEIRA, Camila Albuquerque. Direito eleitoral: esquematizado. 2. ed. rev. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral / Carlos Roberto Gonçalves. — 10. ed. — São Paulo: Saraiva, 2012.
SANTOS, Laura Raquel Tinoco dos. Principios do conflito aparente de normas penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4482. Acesso em: 8 out. 2021.


[1]GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral / Carlos Roberto Gonçalves. — 10. ed. — São Paulo: Saraiva, 2012.p.118.

[2]GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral / Carlos Roberto Gonçalves. — 10. ed. — São Paulo: Saraiva, 2012.p.120.

[3]CERQUEIRA, Thales Tácito; CERQUEIRA, Camila Albuquerque. Direito eleitoral: esquematizado. 2. ed. rev. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.p.547.

[4]CASTRO, José Soares. p.30. Concurso aparente de norma. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. N. 4. 1980 [29-35].p.31. 

[5]SANTOS, Laura Raquel Tinoco dos. Principios do conflito aparente de normas penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4482. Acesso em: 8 out. 2021.

[7]Fonte: https://www.poder360.com.br/partidos-politicos/mudei-domicilio-eleitoral-por-morar-em-hotel-de-sp-diz-moro/

[8]Fonte: https://www.poder360.com.br/partidos-politicos/mudei-domicilio-eleitoral-por-morar-em-hotel-de-sp-diz-moro/

[9]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2022/noticia/2022/06/07/tre-rejeita-transferencia-de-domicilio-eleitoral-e-moro-nao-podera-ser-candidato-em-sp.ghtml

[10]Fonte: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2018/11/16/presidente-do-trf-4-assina-exoneracao-de-sergio-moro.ghtml

[11]Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/sergio-moro-pede-demissao-do-governo-bolsonaro/

[12]Fonte: https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/sergio-moro-e-rosangela-vendem-moveis-de-casa-nos-estados-unidos

Autores

  • é defensor público federal e professor efetivo do IFPE (Instituto Federal de Pernambuco), mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga-Portugal. Especialista em Ciência Política pelo Instituto Prominas.

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