Opinião

Sobre Política, reputação e serviço público

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

22 de dezembro de 2022, 13h04

Quando se estuda a vida de Nicolau Maquiavel (1469-1527) é impossível não se deixar tomar pelos sentimentos de fascínio e de surpresa. Ambos entrelaçados, ambos dificilmente separáveis. Isso decorre de duas causas. A primeira deriva da seguinte perplexidade: como um homem de uma família toscana empobrecida e que chegou a secretário da Chancelaria da República de Florença alcançou tamanho conhecimento sobre a Política e suas leis, a ponto de se tornar o professor de reis, imperadores, generalíssimos e governantes em geral dos últimos 1.500 anos? A segunda causa está no impacto de suas ideias sobre o modo como o poder é adquirido, transferido ou perdido.

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Antes de Maquiavel, o poder era sacro e, a despeito de todas as baixezas e todo o sangue derramado para conquistá-lo ou conservá-lo, ainda havia sobre ele a (falsa) noção de que um governante não era tangido por motivações demasiadamente humanas. Maquiavel pôs a lume a verdadeira natureza do poder e, por consequência, da Política. Daí haver seu nome transformado em sinônimo de algo negativo. Ser maquiavélico equivale a ser calculista e um fiel seguidor da máxima de que os fins justificam os meios.

Essa distorção histórica encobre o verdadeiro e revolucionário legado de Maquiavel: substituir a luta física pela luta política na corrida pelo poder. Deixar de lado os cadáveres nas ruas das cidades-Estado italianas e lidar com cadáveres políticos, eis uma enorme contribuição civilizatória de Maquiavel.  Não é sem causa que Winston Churchill disse que na guerra só se morre uma vez, enquanto que na Política pode-se morrer várias vezes.

A compreensão de que a Política é um espaço de violência simbólica, mas também de diálogo e de civilidade, em nosso tempo, parece ter-se sido mitigada. Isso é ruim para a democracia e para as conquistas de uma sociedade contemporânea. Outra lição esquecida, embora sua origem seja o xadrez e não O Príncipe, de Maquiavel, está em que todas as peças do tabuleiro caem, menos o rei. A partida encerra-se no exato momento em que o rei fica só. Mas ele não é humilhado e destruído. À semelhança do que metaforicamente descreveu Ernst Kantorowicz, em Os Dois Corpos do Rei, o monarca conserva em si o corpo mundano do poder transitório (como transitória é a vida) e o corpo místico do poder eterno (anteriormente, da Coroa e, hoje, da soberania dos estados). O primeiro é extinguível, o segundo deve ser defendido até pelos inimigos do rei.

Tem-se hoje um contexto de perda dos referenciais da "nova" dinâmica (maquiavélica) do poder, que tanto custou à humanidade para compreender que "a guerra é a continuação da política por outros meios", como escreveu Carl von Clausewitz. A Política é a forma mais inteligente que os seres humanos encontraram para a disputa não-sangrenta pelo poder. E isso parece estar-se perdendo.

Dessas reflexões iniciais, passa-se ao núcleo deste pequeno texto. Um caso aplicado dessa perda de referenciais sobre a Política. Trata-se da situação particular de Jorge Rodrigo Araújo Messias, procurador da Fazenda Nacional (categoria especial), graduado em 2003 na tradicional Faculdade de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco), com mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (2018) e doutorando nessa mesma instituição desde 2019. Para além desses títulos profissionais e acadêmicos, Jorge Messias desenvolveu, desde seu ingresso na carreira de procurador da Fazenda Nacional, uma intensa atividade associativa na gestão do ministro Dias Toffoli, quando era advogado-geral da União. E, mesmo na Advocacia-Geral da União e nos cargos técnicos do Poder Executivo, ele também desempenhou relevantes funções como a de subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República (cargo já ocupado por Dias Toffoli e Gilmar Mendes), subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República, consultor jurídico do Ministério da Educação — MEC e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, além de secretário de Regulação e Supervisão da Educação do MEC — Seres.

Poder-se-ia citar mais outros cargos, os últimos no Poder Legislativo, e a participação de Jorge Messias em comitês, grupos de trabalho e conselhos administrativos no âmbito federal.

Tudo isso é muito relevante. Mas não se equipara a outro tipo de apreciação de sua vida pública: em todos os cargos por que passou, Jorge Messias deixou uma imagem (e uma atuação real) de sobriedade, discrição e correção moral. Embora sejam atributos necessários para qualquer cargo público, esses são elementos que precisam ser (infelizmente) enaltecidos em uma era de luta política que se pauta pela destruição reputacional como arma "legítima" na ocupação (indevida) de espaços de poder.

No MEC, um dos espaços de maior complexidade técnica e de disputas de enorme calibre econômico, Jorge Messias agiu com dignidade na Consultoria Jurídica e na Seres.

Fui testemunha dessa correção desde 2009 e em diversas ocasiões.

Acompanhei também os "anos do gafanhoto" (Joel II:25-27), quando Jorge Messias permaneceu ao lado da presidente Dilma Rousseff, aguardando o término do processo de impeachment, cujo desfecho era mais do que previsível para quem acompanhava a cena política. Não há Política sem viradas de casaca, oportunismos e saídas estratégicas. Não é preciso enganar o distinto público. Quando alguém fica ao lado dos caídos na Política, isso deve ser notado e anotado. Diz muito sobre essa pessoa.

Com todo esse histórico, não há matéria jornalística que deixe de mencionar o nome de Jorge Messias sem se referir ao episódio de 2016, quando, em um áudio vazado ilicitamente (algo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em momento posterior) o nome desse servidor público ganhou as manchetes por distorção no áudio que causou o problema de pronúncia e pela menção a uma designação por ele recebida da então presidente da República. Em relação a esse evento, não houve qualquer imputação jurídica à conduta de Jorge Messias. Do ponto de vista normativo, portanto, é algo sem reflexos em sua vida funcional.

O lado caricato do áudio distorcido tornou-se um eterno "mas" em qualquer descrição sobre Jorge Messias ou sobre eventuais pretensões ou cogitações a respeito da ocupação futura (ou pretérita) de cargos públicos por ele.

Em Política, essas situações, muita vez, são transformadas de elementos depreciativos em ativos ou marcas de valor. No Império, os membros do Partido Conservador eram conhecidos por "saquaremas", pelo fato de muitos deles terem domicílio no município de Saquarema, e os filiados ao Partido Liberal eram os "luzias", em referência à Vila de Santa Luzia, em Minas Gerais, o epicentro da Revolta Liberal de 1842. Com o tempo, há essa apropriação do elemento caricato e sua conversão em um elemento de orgulho.

No campo da burocracia, as chaves semânticas são outras. Frequentemente, o que resta é apenas o lado da desqualificação e do demérito. Um servidor público vive de sua qualificação e de seus méritos. É importante que se compreenda essa diferenciação e que se dê a Jorge Messias um nível de respeito moral de que até agora ele não foi merecedor. Com toda essa trajetória pública impecável e com esse histórico de lealdade nos momentos de maré baixíssima, se a única coisa a ser dita sobre ele é a menção a um erro de pronúncia em seu nome patronímico, ele está muito bem.

É preciso deixá-lo contar (e escrever) sua história até mesmo para que seja criticado, atacado e contestado por ações ou omissões relevantes.

Independentemente do que lhe ocorra no futuro imediato, e há notícias de que ele é cogitado para o cargo de advogado-geral da União, ao lado de respeitáveis nomes como os de Daiane Lira, Luiz Fernando Bandeira de Mello e Anderson Pomini, faz-se necessário dar-lhe esse crédito por seu verdadeiro passado. Um passado legítimo de serviços prestados ao Estado brasileiro. Aqui não cabem "mas" e "porém".

Autores

  • é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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