Opinião

Orçamento secreto do Congresso em julgamento no Supremo Tribunal Federal

Autores

  • Almir Megali Neto

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

  • Marcelo Cattoni

    é professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre e doutor em Direito pela UFMG pós-doutorado com bolsa da Capes em Teoria do Direito pela Universidade de Roma III e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1D).

6 de dezembro de 2022, 13h06

Em 14 de junho de 2021, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade propôs no STF (Supremo Tribunal Federal) a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) nº 854. O partido político sustenta haver um esquema montado pelo governo federal visando aumentar sua base política de apoio no Congresso mediante atuação conjunta do relator-geral do orçamento federal e o presidente da República. Segundo a legenda, o relator-geral introduziria despesas públicas na LOA (Lei Orçamentária Anual), por meio de emendas parlamentares, as chamadas emendas do relator.

Com a criação desse espaço orçamentário, o presidente da República, em atuação conjunta com o relator-geral do orçamento federal, teria um instrumento político-institucional que permitiria cooptar apoio político de parlamentares no Congresso. Cada parlamentar que aderisse à base governista no legislativo receberia uma fração das despesas alocadas no orçamento podendo destiná-las a suas bases eleitorais, bastando, para tanto, apenas indicar as entidades públicas ou os órgãos beneficiários.

Diante desse cenário, o autor da ação reputou como violados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, bem como os preceitos fundamentais regentes da execução do orçamento público e das finanças públicas. A prática configuraria, ainda, uma forma unilateral, pessoal, arbitrária e sem transparência de recursos públicos, configurando, pois, uma violação direta aos artigos 37, caput, 163-A, 165 e 166 da Constituição.

Em sendo assim, requereu liminarmente a concessão de medida cautelar para que fosse determinada a imediata suspensão da execução dos recursos orçamentários oriundos das emendas do relator-geral ao orçamento de 2021, bem como para que fossem publicados e juntados aos autos informações completas relativas aos parlamentares autores das indicações, o detalhamento da destinação dos recursos das emendas nos anos de 2020 e de 2021 e os convênios e contratos de repasse e termos de execução descentralizadas firmados com recursos orçamentários provenientes de emenda do relator-geral ao orçamento público federal.

No mérito, requereu que seja declarada a inconstitucionalidade do conjunto de atos do Poder Público consistente na execução das despesas discricionárias decorrentes de emenda de relator-geral e, consequentemente, das emendas do relator-geral do orçamento de 2021.

Os autos foram distribuídos à relatoria da ministra Rosa Weber que concedeu, em parte, a medida cautelar, por constatar, objetivamente, violação dos postulados republicanos da transparência, da publicidade e da impessoalidade no âmbito da gestão estatal dos recursos públicos. Para a ministra, práticas institucionais condescendentes com a ocultação dos autores e beneficiários das despesas decorrentes das emendas do relator do orçamento federal constituem inadmissível exceção ao regime de transparência no âmbito dos instrumentos orçamentários, sendo, portanto, inconstitucionais.

Assim, a ministra determinou a referendo do plenário: a) a ampla publicização dos documentos embasadores da distribuição de recursos das emendas de relator-geral quanto ao orçamento dos exercícios financeiros de 2020 e de 2021; b) a implementação de medidas para que todas as demandas de parlamentares voltadas à distribuição de emendas de relator-geral, independentemente da modalidade de aplicação, sejam registradas em plataforma eletrônica centralizada, em conformidade com os princípios da publicidade e transparência; e c) a suspensão integral e imediata da execução dos recursos orçamentários do orçamento de 2021 oriundos de emendas de relator-geral até o final do julgamento de mérito da ação.

Em 10 de novembro de 2021, essa decisão foi referendada pelo plenário do STF vencidos parcialmente os ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques. Em 25 de novembro de 2021, em petição conjunta, a Câmara dos Deputados e o Senado informaram que estavam adotando medidas para cumprir as alíneas "a" e "b". A alínea "c", por sua vez, estava sendo atacada pelos meios legais de impugnação da decisão.

A Câmara e o Senado também mencionaram o projeto de resolução do Congresso para alterar a Resolução nº 1/2006, visando estabelecer a necessidade obrigatória de dar publicidade às solicitações dirigidas ao relator-geral do orçamento a partir da vigência do ato conjunto. Com a adoção dessa medida, reputaram que se viabilizaria amplo debate parlamentar e se construiriam soluções normativas aplicáveis aos exercícios financeiros seguintes. Alegaram ser impossível cumprir o disposto na alínea "a" previamente à vigência do ato. Requereram a revogação da alínea "c"para que fosse restabelecida a execução orçamentária das emendas do relator.

Em 30 de novembro de 2021, o PSOL aditou a petição inicial para incluir no objeto da ação o Ato Conjunto nº 1/2021, das Mesas da Câmara e do Senado, bem como a Resolução nº 2/2021, do Congresso, que deu nova redação à Resolução nº 1/2006. Alegou que os novos atos impugnados não ampliaram a transparência, pois as informações relativas à distribuição de recursos seriam divulgadas por códigos, siglas e nomenclaturas, enquanto o correto seria a sua publicação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão. Reputou haver a permanência das emendas do relator com os mesmos poderes arbitrários, não democráticos e unipessoais do relator-geral, mantendo o sigilo dos autores originários, a ausência dos critérios de escolha dos beneficiários e a inobservância da proporcionalidade na distribuição dos recursos.

Alega que a nova normativa sequer estabeleceria algum limite às emendas do relator-geral do orçamento, já que seu critério norteador seria um termo abrangente, inespecífico e genérico, sob a rubrica de "políticas públicas". Assim, referidas medidas não contribuiriam para dar ampla publicidade à execução orçamentária trazendo entraves ao acesso, conhecimento e controle.

Em 03 de dezembro de 2021, o Congresso prestou informações complementares. Informou que a Resolução nº 2/2021, do Congresso, foi aprovada em 29 de novembro de 2021, dispondo que as indicações e solicitações formuladas ao relator-geral fossem individualmente publicadas e disponibilizadas informações em relatório em site oficial pela Comissão Mista de Planos, Orçamento Público e Fiscalização do Congresso, além de estabelecer um valor máximo até o qual o relator-geral poderá apresentar emendas à lei orçamentária anual.

A presidência do legislativo oficiou ao relator-geral do orçamento de 2021 solicitando que fossem adotadas providências necessárias para o cumprimento das citadas deliberações do Congresso e da mencionada decisão do STF. Também determinou que fossem adotadas as providências possíveis e necessárias para individualizar e detalhar as indicações das emendas.

No dia 6 de dezembro de 2021, a ministra Rosa Weber proferiu nova decisão, reconhecendo que o Ato Conjunto nº 1/2021 e a Resolução nº 2/2021, do Congresso, tornaram mais transparente e seguro o uso das verbas federais, sem prejuízo da continuidade da adoção de todas as providências necessárias à ampla publicização dos documentos embasadores da distribuição de recursos das emendas do relator-geral no período correspondente aos exercícios de 2020 e de 2021. Nessa oportunidade, a ministra afastou a suspensão determinada pela alínea "c" da decisão cautelar anteriormente proferida para autorizar a continuidade da execução das despesas provenientes das emendas do relator. Em 16 de dezembro de 2021, a decisão foi referendada pelo Plenário do STF.

Os autos foram remetidos ao advogado-geral da União que, preliminarmente, manifestou-se pelo não conhecimento do pedido de aditamento da petição inicial e, no mérito, pela sua improcedência. Na sequência, os autos foram encaminhados à Procuradoria Geral da República para manifestação do procurador-geral da República.

No Parecer juntado aos autos no dia 10 de novembro de 2022, o PGR reforçou seu entendimento anteriormente exposto no Parecer de 12 de agosto de 2021, no sentido de classificar o objeto da ADPF nº 854 como matéria interna corporis do Congresso. Argumentou que nenhuma norma da Constituição teria sido diretamente violada. Afirmou que o diploma normativo que prevê as hipóteses de cabimento dos diversos tipos de emenda ao projeto de lei orçamentária anual é uma resolução do Congresso, por força do artigo 166, caput e §2º, da Constituição. Concluiu que o fato de as emendas do relator-geral não estarem previstas no texto constitucional não as torna, por si só, inconstitucionais. Alegou que não houve violação à Constituição, tampouco à Resolução nº 1/2006 do Congresso.

Afirmou que a discordância do partido autor desta arguição com os poderes conferidos por ato normativo interno da casa legislativa ao relator-geral do projeto de lei orçamentária anual não tem natureza constitucional, legal ou regimental, mas política, a ser levada em consideração no âmbito do Poder Legislativo, para aperfeiçoamento do processo legislativo. Quanto ao Ato Conjunto nº 1/2021 e à Resolução nº 2/2021, o PGR suscitou preliminar de não conhecimento do pedido de aditamento, por ausência de interesse processual do requerente, pois a declaração de inconstitucionalidade do Ato Conjunto nº 1/2021 e da Resolução nº 2/2021, com sua consequente nulidade, só agravaria o quadro de violação da Constituição. Para o PGR, bem ou mal, os atos impugnados caminharam no sentido da maior publicidade em comparação com a situação previamente existente.

No mérito, manifestou-se pela improcedência do pedido. Argumentou que a própria Constituição determina em seu artigo 166, caput, que a apreciação, pelo Congresso, dos projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais realizar-se-á por resolução do legislativo. Considerando as alterações promovidas pela Resolução nº 2/2021 à Resolução nº 1/2006, concluiu que teria sido assegurada ampla publicidade não só ao rol de emendas do relator-geral, como também, de forma individualizada, às indicações e solicitações que as fundamentaram, contudo, somente após a data da sua publicação.

Quanto às indicações e solicitações dos parlamentares ao relator-geral do orçamento anteriores, sustentou que o presidente do Congresso juntou aos autos documentos com dados informativos da distribuição de recursos feita com base nas emendas do relator-geral em tal período. Eventual incompletude em nada interferiria na constitucionalidade do Ato Conjunto nº 1/2021 e da Resolução nº 2/2021.

Após a recuperação do andamento da tramitação da APDF nº 854, constata-se que, mais uma vez, o argumento das matérias interna corporis foi invocado como artifício supostamente capaz de inviabilizar o controle jurisdicional de constitucionalidade dos atos praticados no interior do Congresso. Por meio desse argumento, o que se faz é imunizar a distribuição de recursos públicos federais com base nas emendas do relator de constrangimento imposto pelas normas constitucionais, como se fosse possível criar em uma república que se constitui na forma de um Estado democrático de Direito áreas livres da incidência da própria Constituição.

Esse argumento é coerente com o esquema popularmente conhecido como "orçamento secreto", pois, aquilo que se pretende guardar como segredo a ninguém deve ser revelado, o que é incompatível com os princípios republicano e democrático. A melhor maneira de se esconder aquilo que a ninguém se quer revelar é ocultar à vista e ao conhecimento público tudo que diga respeito aos termos desse segredo, o que é feito justamente através da tentativa de desjuridificação dos atos legislativos, como se orçamento público não fosse uma questão constitucional. Assim, a destinação de recursos públicos federais se tornaria um assunto privado de deputados e senadores.

A permanecer esse entendimento criar-se-ão verdadeiras ilhas corporativas de discricionariedade, o que resultará em uma ausência de parâmetros normativos para o controle republicano da distribuição de recursos públicos federais, abrindo espaço para o exercício cada vez mais arbitrário do poder político, posto que livre de qualquer constrangimento normativo-constitucional e da fiscalização das instâncias de controle e da cidadania em geral [1].

Contudo, essa construção é incompatível com a Constituição de 1988. O fato de a Constituição determinar que as emendas ao orçamento anual sejam feitas na forma regimental não faz com que todo o resto do texto constitucional tenha sua eficácia suspensa. Resoluções são espécies normativas primárias previstas no artigo 59, inciso VII, da Constituição. Logo, seu fundamento de validade é a própria Constituição. Dessa forma, cabe garantir o devido processo legislativo. Não é possível imunizar das normas constitucionais o procedimento legislativo pertinente às emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual. Tanto é assim que o próprio Congresso atualizou sua normativa interna para adequá-la à decisão cautelar proferida pela ministra Rosa Weber e referendada pelo Plenário do STF.

Se a reforma da normativa interna ao Congresso não atende às exigências de transparência da execução do orçamento público, contrariamente ao que foi sustentado pela PGR, isso não equivale à ausência de interesse de agir, mas constitui uma justificativa para que essa nova normativa seja apreciada pelo STF. Estando em curso a ação e havendo decisão do STF impondo obrigação de transparência ao Congresso, a alteração do parâmetro normativo que rege a execução do orçamento público deve ser objeto de apreciação pelo tribunal, até mesmo para fins de verificação do cumprimento do que ficou decidido em sede cautelar.

Caso a tese do procurador-geral da República saia vitoriosa, o orçamento público federal será transformado em uma questão de interesse particular dos congressistas da ocasião que, como diz o grande poeta, em tenebrosas transações, poderiam ser livremente cooptados pelo presidente da República, recebendo, em contrapartida, generosas fatias do orçamento sem qualquer tipo de controle e fiscalização.

Ou seja, o que está aqui em questão é impedir constitucionalmente um modo de institucionalização da corrupção. A esse fim fraudulento pretende servir o argumento das questões interna corporis, razão pela qual é necessária, no caso, a sua superação.


[1] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 3. ed. Conhecimento Editora, 2021, p. 221.

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