Opinião

Paradoxo de Teseu e o direito à educação

Autor

  • Lucas Sachsida Junqueira Carneiro

    é promotor de Justiça coordenador do Núcleo de Defesa da Educação do Ministério Público do Estado de Alagoas e secretário da Comissão Permanente de Educação do Grupo Nacional de Direitos Humanos.

6 de agosto de 2022, 17h05

Narra o mito grego a história de um Minotauro que viva em um labirinto construído no subsolo do palácio da cidade de Cnossos. Todos os anos eram-lhe levados sete rapazes e sete moças para que fossem por ele devorados. Assim, com o sacrifício de alguns, acalmava-se o monstro para que não destruísse toda a cidade.

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Ao navio que levou Teseu e vários outros jovens ao Minotauro para serem sacrificados, deu-se o nome de Navio (ou nave) de Teseu. De acordo com as lendas gregas, conforme relata Plutarco, tal navio quando retornou a Atenas, de Cnossos, foi preservado pelos atenienses por longo tempo durante o qual eram-lhe removidas as partes deterioradas e substituídas por novas.

Diante das diversas substituições de peças, questionou-se quando, então, aquele navio havia deixado ou deixaria de ser o Navio de Teseu para se tornar outro? Qual o conjunto de caracteres essenciais e exclusivos define a linha da identidade de um objeto? A esses questionamentos sobre a essência das coisas deu-se o nome de Paradoxo de Teseu, debatido por séculos por filósofos como Sócrates, Platão, Hobbes, Locke e outros. Na física quântica, o paradoxo, muito usado, ganha o nome de Paradoxo de Sorites.

Com a evolução do enfrentamento da pandemia e experimentando o incremento das pressões sociais para flexibilização das regras de isolamento e distanciamento social, o Brasil permitiu que se criasse um cenário grave de violação do princípio da igualdade: em 21 de maio de 2021, quando quase todos os setores da sociedade, incluindo bares, shoppings, templos religiosos, praias e escolas particulares estavam com as portas abertas [1], as escolas públicas permaneciam fechadas na quase totalidade dos estados da federação.

Tal oferta assimétrica entre ricos e pobres, sabendo-se da diferença qualitativa entre atividades escolares presenciais e remotas, fez com que que o Brasil, último país da OCDE a abrir suas escolas públicas, tivesse, dentre aqueles integrantes da OCDE, a pior nota no programa de avaliação internacional, Pisa [2].

O Brasil, na contramão do mundo, foi um dos poucos países que não aumentou o financiamento da educação naquele período [3], isso sob o argumento de que as atividades passaram a ser virtuais e, assim, reduziram-se os gastos de cunho educacional [4]. Enquanto isso, o instituto Datafolha divulga que mais da metade dos alunos das redes públicas do país não tinham acesso à internet [5].

No momento em que o retorno das atividades presenciais nas escolas públicas foi conquistado, e assim o foi diante de várias ações propostas [6] pelo Ministério Público em todo país [7], é divulgada pelo Instituto Rui Barbosa a verificação de que, sem investimento adequado, mais de dez milhões de alunos estariam em escolas sem condições sanitárias mínimas, centenas de milhares sem água potável em todo o país.

A educação brasileira, então velejando em tormenta, com índices de evasão e abandono escolar nunca antes enfrentados [8], escolas sem condições sanitárias mínimas, 2.186 obras em creches e escolas financiadas por meio de recursos federais paralisadas, 2.573 canceladas e 2.604 atrasadas (conforme relatório de Comissão Externa da Câmara dos Deputados/2020 [9]), ganhou, ainda assim, novas modificações: a) a Lei Complementar 194 que modifica a forma de tributação do ICMS para reduzir o valor dos combustíveis, retirando com a outra mão aproximadamente 25 bilhões de reais anuais da educação, isso apesar do dever constitucional de prioridade absoluta que deveria iluminar as escolhas da nação [10] [11]; b) a Emenda Constitucional 119 que cria imunidade absoluta (sem ponderar nem mesmo sobre possíveis abusos de poder na modalidade desvio de finalidade ou considerar as diversas decisões da Suprema Corte, algumas com efeito vinculante e erga omnes sobre a impossibilidade de desvio de finalidade na utilização de verbas da educação [12]) aos entes e gestores que não aplicaram o mínimo exigido pela Constituição na manutenção e desenvolvimento do ensino em 2020 e 2021; c) o piso da remuneração do magistério, princípio constitucional do direito educacional, de inopino se vê sob interpretação da Confederação Nacional dos Municípios como extinto do universo jurídico brasileiro, apesar das diversas manifestações dos órgãos de controle em sentido contrário, o que faz disseminar greves dos professores [13] numa educação que já se viu parada por muito tempo; d) o Plano Nacional de Educação, nas suas remadas finais (2014/2.024), tem 86% de determinações em descumprimento [14]

A educação, a quem foi dada a missão de navegar com a sociedade brasileira até águas mais mansas, é alterada aos miúdos, com a redução de financiamento e a relativização de princípios fundantes como o da prioridade absoluta, do acesso universal, da qualidade do ensino, da igualdade, da valorização dos profissionais da educação, do controle fiscal, dentre outros. Qual o limite de alterações e/ou flexibilizações de suas bases até que o direito à educação perca, na prática [15], seu caráter de direito humano fundamental, conforme essência dada pelo povo brasileiro na Constituição de 1988? Assim como a pergunta seria melhor respondida pelo próprio herói ateniense Teseu sobre as transformações e a essência de seu Navio, cabe a nós, povo brasileiro, "fortes por excelência" [16] e titulares do direito à educação, a resposta.


[2]OCDE, set/2021.OECD/UIS/UNESCO/UNICEF/WB.TheStateofGlobalEducation:18MonthsintothePandemic,OECDPublishing,Paris

[4] Conforme justificativa do representante da Frente Nacional dos Prefeitos  FNP, in https://noticias.r7.com/educacao/prefeitos-nao-investem-r-15-bi-em-educacao-e-tentam-evitar-punicao-07122021

[5] Fonte: pesquisa do instituto Datafolha, encomendada por Fundação Lemann, Itaú Social e Banco Interamericano de Desenvolvimento BBC News Brasil  8 novembro 2021 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59182968)

[7] Sobre a atuação do Ministério Público Brasileiro durante o período pandêmico: https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/COVID-19_NTDados_2020_05_Diagramado_vf.pdf

[10] Sobre o tema indica-se a Nota Técnica emitida pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos-CNPG, através da Comissão Permanente de Educação-COPEDUC, in https://www.cnpg.org.br/noticias-cnpg/comunicacao-menu/noticias-cnpg/10601-nota-tecnica-aponta-possiveis-prejuizos-para-saude-e-educacao-de-vetos-presidenciais-em-lei-sobre-arrecadacao-de-icms.html

[11] Até a presente data, não foram derrubados os vetos, o que evitaria a perda dos valores para educação e também para saúde. Segundo divulgado em sítio ofícial da Câmara dos Deputados, a análise de tais vetos ficará "Para outra sessão do Congresso" (Fonte: Agência Câmara de Notícias, in https://www.camara.leg.br/noticias/898308-congresso-derruba-veto-e-restabelece-compensacao-aos-estados-por-perdas-com-icms/ – acesso em 27/07/2022)

[12] STF, ADPF 528

[15] Em contrapartida ao conceito de Ferdinand Lassalle sobre a abordagem sociológica da Constituição escrita e a Constituição Real e o conceito de Constituição "Folha de Papel".

[16] Significado do nome Teseu: "o homem forte por excelência".

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