Tribunal do Júri

O tribunal do júri pela ótica adversarial de Alberto Binder (parte 2)

Autor

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

30 de abril de 2022, 8h00

Na coluna da última semana publicamos a primeira parte das reflexões levantadas pelo professor argentino Alberto Binder[1] na aula magna do curso de pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI[2]. Tais ponderações, que expõem a umbilical ligação entre o júri e o sistema acusatório, são fundamentais para o Estado de Direito e para um sistema de justiça democrático.

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Binder explica que nos modelos de júri de matriz adversarial, faz-se importante a realização de uma audiência de controle da acusação, quando os fatos contraditórios são estabelecidos e as provas depuradas, evitando-se testemunhas e demais elementos que não tem relação direta com o fato. De uma forma geral, a qualidade do julgamento aumenta quando as partes produzem as provas e argumentos de maneira precisa, clara, com pertinência, deixando de lado as questões sem relevância.

A instrução efetuada pelo juiz presidente aos jurados é outro tema apontado como significativo, eis que o magistrado precisa informar aos membros do Conselho de Sentença a correta subsunção do fato à norma, bem como explicar as regras jurídicas, especialmente as de valoração de prova[3]. A discussão sobre as instruções particulares ao Conselho de Sentença é permeada de especial dificuldades e omitida no ensino jurídico, criando um dos maiores desafios que o júri coloca à dogmática penal.

Há uma dimensão fundamental que o júri tem ensinado sobre o litígio que o professor argentino destaca: o valor de deliberação[4]. Alberto Binder destaca que os juízes profissionais, mesmo aqueles que formam tribunais coletivos, não sabem deliberar e que na Argentina há sérios problemas com a Corte Suprema por conta desta questão. Atualmente os julgadores trabalham de forma independente, que por vezes apenas leem os votos escritos pelos seus assessores, sem efetivar um debate com seus pares. Tal fato gera uma degradação considerável para própria atividade jurisdicional. Com exceção do modelo brasileiro, o tribunal do júri de matriz adversarial demonstra o real significado da deliberação. Trata-se de um sistema em que os jurados passam horas, quiçá dias, discutindo sobre as provas e as possíveis decisões.

Outra dimensão citada diz respeito aos benefícios que o júri traz para o litígio. Nas palavras do professor argentino: a dimensão simbólica do litígio. A justiça penal, competente para o julgamento dos crimes mais graves, precisa recuperar esta relevância simbólica para a sociedade. Não é por acaso que se levou muito tempo para ocorrer uma separação entre a linguagem religiosa da linguagem judicial, como tampouco é por acaso que em muitas civilizações o lugar onde se administrava a justiça eram lugares que tinham uma grande simbologia ligada ao sagrado, como debaixo de uma árvore, debaixo de uma montanha, debaixo de um fórum construído de determinadas maneiras. Nosso sistema de justiça abandonou todos esses simbolismos, ficando presa aos simbolismos autoritários da inquisição. Mas o júri, a partir do sistema adversarial, constrói uma nova semiótica do poder judiciário que leva em conta esse caráter ritual e simbólico que todo julgamento oral deve ter.

No entanto, atualmente os julgamentos orais muitas vezes são realizados sem um significado intrínseco, os quais a sociedade não entende o procedimento, ou ainda com publicidade reduzida, ou simplesmente inacessível à comunidade. A participação do jurado nos julgamentos produz efeitos sociais e impacta na expectativa da sociedade, alterando a relação entre os meios de comunicação e a justiça – fenômeno que pode ser considerado como ideal para a democracia.

Faz-se necessária uma renovação de linguagem e de perspectivas, principalmente porque constitui uma soberba infundada considerar os operadores de direito como mais inteligentes e mais capazes de distribuir justiça, enquanto os cidadãos seriam emocionais, arbitrários e tomados por um sentimento de justiça social.

Aos críticos da ausência de motivação, Binder defende que a decisão do júri é a mais fundamentada de todas, até mesmo porque as sentenças burocráticas e escritas não expõem, na prática, a análise adequada do cumprimento do ônus da acusação. Precisa-se entender que nos sistemas acusatórios a "verdade", como ônus do acusador, cumpre uma função muito diferente dos modelos de investigação inquisitorial em que a "verdade" tem sido utilizada como motor da intervenção judicial para além da litigância.

Ademais, deve-se distinguir tecnicamente a ideia de fundamentação da ideia de motivação. Não se pode afastar a exigência de que uma decisão seja tomada fundamentadamente. Em um modelo de júri ideal, o jurado toma a sua decisão de maneira muito bem fundamentada, eis que se baseia em um litígio, nas razões apresentadas presencialmente pelas partes, na produção das provas juridicamente válidas, nas instruções que são fornecidas, bem como a partir de uma deliberação em que se fomenta a discussão e reflexão.

Por outro lado, a motivação como expressão por escrito do suposto raciocínio do juiz, na prática, mostra-se completamente insuficiente, o que inclusive já foi reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.[5]

Para Binder, em comparação com os outros sistemas de júri no mundo, o Brasil possui um tribunal do júri que se pode considerar como imperfeito pelo aspecto do número de jurados, pelo método de julgamento e pelo contexto processual.

Também é fundamental aprofundar a discussão sobre a obrigatoriedade da unanimidade para a tomada de decisão[6]. Entretanto, mesmo nos poucos Estados onde esta obrigatoriedade não existe, ainda assim é necessária a deliberação entre os jurados como requisito essencial para que se tenha uma decisão ponderada e de qualidade.

Grande parte da discussão e, principalmente, das críticos do tribunal do júri do Brasil é erigida a partir de uma visão absolutamente elitista e pretensiosa, em que se considera que a sociedade não está apta a tomar decisões, impedindo o amadurecimento político, social e democrático. Neste diapasão, o júri precisa ser reconhecido, acima de tudo, como uma escola de civilidade.

Na Argentina, ao menos na dimensão puramente ideológica, atualmente a crença de que as elites possuem melhores condições para tomar grandes decisões são afastadas, até mesmo porque diversas são as experiências que apontam em sentido diferente desta visão aristocrática. Já pelo lado da ideologia da cultura profissional, por mais que os operadores do direito tenham se apropriado da administração da justiça, não se pode olvidar que há uma crise de confiança e de legitimidade naqueles. E, pelo aspecto dos estudos de sociologia e da psicologia, demonstra-se que a decisão é tomada de maneira diferente quando se é expectador ou parte no processo. Por isso a importância da conscientização na participação no judiciário, pois se o jurado assimilar que sua decisão pode ter como consequência o encarceramento de uma pessoa por um grande período de tempo, certamente será impactado e exercerá a função com responsabilidade.

Outra reflexão trazida por Binder constitui o reconhecimento de que o júri também é uma instituição falível, em que decisões equivocadas podem ser cometidas. Aliás, por que não existiriam erros? Quanto maior o número de casos, maior o número de falhas. Também, se o modelo de litígio é falho, como no Brasil, a quantidade de erros será ainda maior. Mas, os erros cometidos pelos juízes profissionais também são relevantes e tão numerosos quanto os dos juízes leigos (quiçá, em maior quantidade).

O sistema acusatório foi construído historicamente ao redor e a partir do tribunal do júri, sendo indissociáveis entre si. Considerar um sistema como "misto", apenas reforça elementos de tradições inquisitoriais, produzindo uma profunda distorção e manipulação do sistema do júri.

O júri está longe de ser uma instituição perfeita e não deve ser romantizada, mas sim legitimada como uma instituição de raiz democrática que precisa de zelo para atingir seus principais objetivos.

Por derradeiro o professor argentino recomenda que a discussão sobre o novo sistema acusatório adversarial do Brasil seja vinculado com um novo tribunal do júri, redesenhando as perspectivas para um futuro com decisões de maior qualidade, justas e imparciais. Mas, além de toda esta disputa, é imprescindível reconhecer sua importância política para o futuro, no sentido em construir uma sociedade mais respeitosa, menos violenta e com valores democráticos concretos.


[3] Em 29 de abril de 2021 já tivemos a oportunidade de comentar sobre o assunto no texto intitulado “Tribunal do Júri: as instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos”, com Daniel Avelar e Marcella Nerdelli.

[4] Sugerimos a leitura do artigo “Tribunal do Júri: deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões”, publicado em 1 de abril de 2021.

[5] Neste sentido a decisão da Corte IDH no Caso V.R.P., V.P.C. e outros vs. Nicarágua de 08/03/2018. Em “Exceções preliminares, mérito, reparações e custas”, parágrafos 259 e seguintes:As decisões dos jurados também devem ser motivadas, mas a falta de exteriorização da fundamentação do veredicto não viola por si só a garantia da motivação. Todo veredicto sempre tem motivação, embora convenha à essência do júri não expressá-lo. Mas o veredicto deve permitir que, à luz das provas e do debate em audiência, quem o valora possa reconstruir o curso lógico da decisão dos jurados, que praticariam arbitrariedade no caso em que esta reconstrução não fosse viável conforme pautas racionais. Assim, o sistema de decisão por íntima convicção não viola, por si só, o direito a um julgamento justo sempre que, do conjunto de atuações realizadas no procedimento, a pessoa interessada – neste caso, a pessoa condenada – possa entender as razões da decisão. A íntima convicção não é um critério arbitrário. A livre valoração que faz o jurado não é substancialmente diferente da que pode fazer um juiz técnico, apenas não a expressa. Definitivamente, qualquer tribunal (técnico ou popular) deve reconstruir um fato passado, para o qual utiliza a lógica metodológica que é comum a qualquer pessoa, pois não depende de que tenha ou não formação ou treinamento jurídico. Toda pessoa que deve reconstruir um fato do passado, consciente ou inconscientemente, emprega o método histórico, ou seja, num primeiro momento delimita as provas que levará em conta (heurística); na sequência valora se essas provas não são materialmente falsas (crítica externa); depois valor a verossimilitude do conteúdo das provas (crítica interna) e, finalmente, chega à síntese. Quem valora o veredicto de um jurado, necessariamente deve reconstruir este caminho, não bastando para descartá-lo qualquer critério diferente acerca das críticas. Para descartar o veredicto de um jurado deve se verificar que a síntese se distancia diretamente da lógica metodológica histórica referida.” Compilado do buscador www.tudodepenal.com  

[6] Este tópico também já foi abordado nesta coluna, no artigo “A decisão por maioria de votos”, de 24 de julho de 2021.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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