Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri pela ótica adversarial de Alberto Binder — Parte 1

Autor

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

23 de abril de 2022, 8h00

Semana passada tivemos a honra de gravar a aula magna do curso de pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI com o professor argentino Alberto Binder [1] — um dos maiores processualistas penais do continente, consultor na reforma processual penal de mais de uma dezena de países —, além de ser um dos maiores conhecedores sobre o modelo de juízo de jurados.

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Por isso, suas reflexões são fundamentais para que se possa pensar sobre um júri que entregue decisões de alta qualidade e, acima de tudo, justas. Assim, o texto desta semana abordará algumas das ponderações sobre o sistema de júri brasileiro.

De acordo com o professor Alberto Binder, nosso modelo de júri não representa os princípios democráticos. Isso porque o Tribunal do Júri é uma instituição que acompanha e acompanhou os processos de constitucionalização de formação das repúblicas, representando historicamente uma dicotomia histórica entre o "processo inquisitorial versus tribunal do júri".

Por mais que a legitimidade do juiz profissional seja "fácil" de construir, tem-se de discutir como legitimar e justificar o júri. Para Binder, tendo como base Filangieri, Carrara e Montesquieu, um corpo permanente de julgadores estáveis não pode adquirir verdadeira legitimidade em uma República, eis que um corpo de juízes permanente teria muito mais força do que a própria lei. Também, por conta disso, que o modelo adequado de julgamento deve envolver um sistema de cooperação entre juízes togados e juízes leigos.

Existem outras razões pelas quais a legitimidade do juiz togado deva ser ponderado, ao invés de se tornar como uma verdade posta. O primeiro ponto se relaciona com o próprio conceito de imparcialidade, que exigimos de todos os juízes, sejam eles profissionais ou leigos. A imparcialidade, em um sentido mais genuíno, significa que o juiz jamais pode administrar interesses, cabendo essa tarefa às partes. Na seara penal, ademais, salienta-se que a acusação possui o ônus exclusivo de comprovar as respectivas acusações.

Entretanto, o juiz que não administra interesses ocupa um lugar anômalo em nosso sistema político — no sentido de que não é comum darmos legitimidade, autoridade e confiança, àqueles que não agem daquela maneira. Mas o magistrado deve ser diferente. Até mesmo por isso que se desenha o Poder Judiciário como contra majoritário no Estado democrático de Direito.

Para Binder, desde o início da recuperação democrática na nossa região, nestes últimos 30 anos de instalação do sistema democrático, apareceu uma preocupação que tem a ver com o vínculo profundo que existe entre o que se considera como uma república democrática e a administração da justiça de qualidade: a aparição da questão judicial dentro do pensamento da teoria democrática ou da teoria republicana. E isso foi imediatamente transferido para o problema que gera construir legitimidade ou autoridade e confiança para os juízes (em particular, no processo penal).

Duas tentativas foram realizadas no caminho de resolver o problema. A primeira foi tentar construir essa legitimidade melhorando os sistemas de nomeação, para garantir que a sociedade confie em juízes que vêm de concursos, que são nomeados mediante sistemas transparentes, que não possuem vínculos políticos. Contudo, esse método não teve sucesso em convencer e gerar a legitimidade, eis que se demonstrou que essa transparência, na origem, não foi acompanhada de um exercício profissional realizado na prática. Isto é, os sistemas de nomeação não conseguiram romper o vínculo profundo entre a dinâmica política e os fatores reais da dinâmica de poder dos juízes. Assim, muitos deles ainda são suspeitos por causa de sua filiação ou adesão, ou mesmo por conta de que o avanço das carreiras está ligado a seus vínculos políticos ou a fatores reais de poder. Por muitas razões, essa tentativa de construir legitimidade para o juiz profissional a partir da transparência em sua nomeação, ou da idoneidade, ou da preocupação em deixar os fatores de poder, não atingiu seu objetivo essencial.

Há uma segunda tentativa que é tentar construir legitimidade para o juiz togado gerando maior proximidade entre a atividade do magistrado e o bloco constitucional, por meio da aplicação direta da constituição, dos pactos internacionais de direitos humanos e das convenções internacionais (como se fosse um pedido à sociedade que tenha mais confiança em sua autoridade). Apesar disso ser excelente em relação à preocupação principal de aplicação do bloco de constitucionalidade, não resolve o problema da legitimidade, provavelmente porque a amplitude desse bloco moderno desloca o problema do conflito de interesses para um plano superior, mas não o esgota.

Há também uma terceira tentativa para encarar o problema da legitimidade da justiça penal, que é colocar o juiz para trabalhar com novas regras de jogo, em especial aquelas vinculadas com a mediação e novas normativas de organização judiciária que asseguram uma audiência plenamente oral e pública. Não se podem admitir audiências realizadas em um ritual "escriturístico" e formal de leitura de atas. Esse contexto, que justamente poderia trazer uma maior legitimidade aos magistrados criminais, que ainda não prosperou no Brasil.

Muitos países da região, como a própria Argentina, já possuem sistemas em que isso foi alcançado de forma relevante. Os juízes estão sempre presentes nas audiências, melhorando significativamente a litigância. Nesse caminho, apesar de a oralidade ter sido plenamente instalada, ainda há suspeitas ou dificuldades para resolver o problema da legitimidade judicial. No entanto, esse ponto permitiu que o Tribunal do Júri fosse finalmente implementado na Argentina, até em virtude do nascimento de uma sensibilidade dos próprios juízes profissionais em gerar uma aliança com a cidadania e com o sistema não permanente de juízes. Esse novo diálogo da administração da Justiça com a sociedade, surge a partir de setores do poder judiciário que se deram conta que diante de certos casos, diante das condições atuais da publicidade e as condições da crítica social, não tinham como resolver o problema de sua legitimidade. E aqui inicia uma abordagem profunda com o júri com base no diálogo justiça e sociedade, que abrange também as condições de acesso, de comunicação e de linguagem.

A discussão desse primeiro ponto precisa ser aprofundado, pois os juízes profissionais dos países americanos são os que cometeram — e cometem diariamente — as maiores iniquidades. Entretanto, apenas os erros cometidos pelo júri são destacados, mas as mesmas falhas e barbaridades cometidas pelos magistrado são, via de regra, omitidos. Certamente que o júri vai cometer erros. Assim como os juízes profissionais também os cometem.

Urge a formação de uma aliança entre os juízes togados e os jurados. E isso porque em quase todas as experiências anteriores com juízo de jurados na América Latina, o Judiciário, em geral, nunca cuidou do instituto júri. E nunca zelaram porque o viam como uma intromissão que precisava ser enfraquecida. Aliás, continuam pensando dessa forma, sem se dar conta de que o júri é uma das ferramentas mais importantes de legitimação do judiciário. Impossível a existência de um sistema de júri adequado que não seja cuidado e protegido pelo próprio sistema judicial.

O segundo bloco de considerações tem a ver com o fato de que o júri está intrinsicamente conectado e colabora diretamente para a construção de um sistema adversarial, oral e público. Afasta-se o modelo de investigação inquisitorial com toda a sua ideia moralista de busca da verdade, com todo o seu aparato conceitual do "sistema misto", tão forte no Brasil, mas absolutamente inadequado para atender as exigências constitucionais e as regras de um Estado democrático do Direito. Isso nos obriga a introduzir uma ideia de litígio. Mas essa ideia não constitui meramente um novo trâmite ou método. É muito mais profundo. O litígio é uma institucionalização da controvérsia de interesses, fazendo parte de ferramentas centrais de gestão de conflitos nas sociedades. É como se fosse uma grande fábrica de pacificação e de mensagens claras de responsabilidade social.

Isso que se pode chamar de fundamento político-institucional dos conflitos, do litígio como conflito formalizado. Os mais graves conflitos na esfera criminal são submetidos a processos, levados para a esfera institucionalizada, onde a violência deve ser reduzida e a tolerância tratada como eixo central do funcionamento da administração da Justiça.

Para o professor argentino, no entanto, nos últimos anos se percebe que, por mais que se tenha conhecimento da importância do estabelecimento oral dentro do sistema democrático, o advogado latino-americano simplesmente não sabe litigar em contextos adversariais. Nesse diapasão, a relevância da implementação de sistemas acusatórios adversariais significa posicionar o litígio [2] como um dos centros não apenas de uma nova Justiça, mas de uma nova cultura jurídica e de um novo exercício de advocacia. Sem essa dialética entre as partes, não há possibilidade de construir uma justiça de qualidade.

Mesmo depois de tantos anos de implementação do sistema acusatório na grande maioria dos países americanos (sempre frisando que o Brasil continua a ser o único cuja matriz inquisitorial impera), ainda assim não temos programas específicos de litígio nas faculdades de Direito. Claro que há avanços na doutrina, discussões e programas, mas o aluno necessita estar preparado para atuar em um contexto de audiências orais e grandes debates. E isso se coaduna diretamente com o júri, eis que se o próprio instituto não estiver pautado pelos valores democráticos, estará intoxicado. Para Binder, deve-se questionar se os próprios jurados brasileiros não estão "intoxicados" pelas formas processuais, se não possuem uma predisposição para consumar sua convicção a partir do senso comum, bem como se eles analisam adequadamente os fatos e as provas apresentadas.

Por mais que o Brasil precise passar antes pela real implementação do sistema acusatório, o júri também necessita ser redefinido. O júri, para além de todos os benefícios que tem para resolver os problemas de legitimidade destacados anteriormente, também se torna uma ferramenta essencial para depurar o litígio e ensinar definitivamente aos advogados qual o paradigma de um litigante em matéria penal.

Por derradeiro, nesta primeira parte, Alberto Binder destaca que, pelo viés dos magistrados, estes possuem uma percepção extremamente positiva quando experimentam um júri em contextos realmente adversariais. Isso porque no sistema acusatório, em um litígio bem-organizado, a figura do magistrado também se destaca. E no júri, o juiz presidente não desempenha uma função menor, pelo contrário, uma vez que é o grande garantidor das regras do jogo, do fair trial processual, o principal responsável por um julgamento imparcial.

Esses aspectos da aula do professor argentino denotam a urgência de se implementar o sistema acusatório no Brasil e de, desde agora, interpretar o tribunal do júri pela ótica adversarial. Interessa para a própria democracia um sistema de julgamento justo e imparcial. Na segunda parte desse artigo, será destacada a indispensabilidade da fase de preparação do julgamento, a instrução aos jurados e sua característica de subsunção dos fatos à norma, a dimensão da deliberação entre os julgadores e o simbolismo no júri.

 


[1] Professor da pós-graduação de Direito Processual Penal na Universidade de Buenos Aires. Jurista e doutor em Direito pela mesma universidade. Fundador e presidente do Inecip (Instituto de Estudios Comparados en Ciencias Penales y Sociales). Foi assessor técnico nos processos de reforma judicial na Argentina, Chile, Bolivia, Paraguai, Equador, Venezuela, Honduras, El Salvador, Guatemala, República Dominicana e outros países da América Latina. Autor de inúmeras obras e artigos de processo penal.

[2] Note-se que se exige habilidades específicas para atuação no litígio, como: a reconstrução e análise adequada dos fatos; o estudo do direito como marco dos processos de subsunção; planejamento das provas com sentido estratégico (isto é, ter uma ideia de como a pretensão ordena todo o caso); argumentar e contra argumentar; mudar as estratégias do caso em uma situação dinâmica, dentre outros. Todas essas características precisam ser abordadas desde o ensino jurídico da graduação.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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