Por falta de justa causa, juiz extingue processo contra advogados da Fecomércio
6 de abril de 2022, 10h48
Por ausência de justa causa e prescrição dos fatos narrados, o juiz Marcello Rubioli, da 1ª Vara Criminal Especializada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro extinguiu a ação penal contra advogados perseguidos por Marcelo Bretas por sua atuação junto à Fecomércio do Rio de Janeiro e entidades do sistema S.
Em uma sentença de 291 páginas, o juiz apontou que não há provas suficientes para embasar as denúncias do Ministério Público Federal contra dezenas de escritórios. As denúncias tinham como base a delação do ex-presidente da Fecomércio Orlando Diniz.
As denúncias já tinham sido apresentadas ao juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que emitiu ordens de busca e apreensão contra os advogados e determinou o bloqueio de contas para ressarcimento de "danos morais coletivos".
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, em sede de reclamação, reconheceu que o caso seria de competência da Justiça Estadual, já que tanto a Fecomércio quanto as empresas do sistema S são entidades privadas, ainda que recebam recursos da União. Assim, os autos foram encaminhados ao TJ-RJ.
A sentença de Rubioli afirma que mesmo a delação de Orlando Diniz é nula, porque foi presidida por autoridade sem atribuição. Diniz foi parar na cadeia duas vezes por suposto desvio de verbas entre 2007 e 2011, e tentou por mais de dois anos emplacar sua delação. Só conseguiu, segundo publicou a revista Época, depois que concordou em acusar advogados que estavam na mira da "lava jato" por defender clientes acusados de corrupção. Em troca da delação, Diniz ganhou a liberdade e o direito de ficar com cerca de US$ 250 mil depositados no exterior, de acordo com o MPF do Rio.
Rubioli citou precedente do Supremo no sentido de que o acordo de delação pode ser rescindido se forem descobertas ilegalidades depois da homologação. A própria decisão do STF que declarou a incompetência de Bretas apontou que a delação foi induzida, sendo, portanto, nula.
"Não havendo colaboração premiada válida, e, reconhecido o caráter de fishing expedition das medidas cautelares anteriormente deferidas, estas e aquela, por autoridade judiciária incompetente, urge reconhecer a inexistência de qualquer justa causa à persecução dos fatos narrados", decidiu o juiz.
Além disso, a denúncia não foi ratificada pelo Ministério Público, que pediu que ela fosse remetida para a Promotoria de Investigação Especializada. Embora isso não signifique que a acusação desistiu da denúncia, há jurisprudência entendendo que a necessidade de ratificação é suficiente para arquivamento dos fatos e imputações, exigindo provas novas para que as investigações continuem a tramitar.
Embora os demais atos do processo pudessem ser ratificados pelo juiz após a declaração de incompetência de Bretas, ele decidiu que eles também serão extintos. O raciocínio é de que a denúncia foi apresentada em 2020, mas a sua não ratificação a torna sem efeito jurídico.
Segundo o artigo 171 do Código Penal, o crime de estelionato está condicionado à representação, o que não ocorreu até hoje (a colaboração premiada de Diniz não conta como representação, já que, no estelionato contra pessoa jurídica, a participação do representante da empresa na fraude já invalida sua eventual representação).
Ainda assim, o Ministério Público entendia que a investigação deveria prosseguir em relação ao crime de lavagem de dinheiro, mas Rubioli afirma que isso só reforça o entendimento de que a não ratificação deve levar ao arquivamento. Assim, ele extinguiu a punibilidade de oito dos fatos narrados na denúncia por "decadência do direito de representar criminalmente".
Outros oito itens da denúncia, referentes à suposta influência dos advogados junto às cortes superiores, foram considerados atípicos pelo juiz. "O que se depreende de todo o processado até a presente data é que a investigação penal e decisões até então prolatadas têm o nítido intuito de criminalizar o exercício da advocacia", afirmou na sentença.
"Ora, os 'alvos' da ação são causídicos e bancas de advocacia de renome nacional com notória atividade em tribunais de justiça, federais e cortes superiores. Portanto, até como o próprio delator inquina inicialmente na delação até seu direcionamento, os contratos celebrados refletem avença sobre serviços advocatícios. Se os mesmos não foram prestados, ou não foram prestados a contento, é caso de ilícito civil e não fato a ser perseguido na esfera penal", completou.
Assim, Rubioli também considerou atípicos os fatos narrados na denúncia que apontavam que os serviços pagos aos advogados não foram prestados. O fato de os montantes de dinheiro envolvido serem altos não justifica a conclusão de que se tratam de condutas criminosas, apontou o juiz. A advocacia não tem imunidade absoluta, ressalvou, mas é preciso uma justa causa mínima para afastar as prerrogativas inerentes à profissão.
Do mesmo modo, sem esse crime antecedente, não é possível falar em lavagem de dinheiro, uma vez que ela seria dependente da obtenção anterior de dinheiro ilícito. "Para a consumação do tipo de que trata o artigo 1º, caput, da Lei 9613/98, urge a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal", explicou.
Ele também descartou a suposta existência de organização criminosa, uma vez que "não há qualquer indício sobre associação com funções determinadas para cometimentos de crimes".
O juiz ainda apontou o prazo excessivo de duração da investigação, "após tantos anos de colaboração espúria, investigação e medidas reconhecidas como ilegais".
"Embora o Código de Processo Penal não estipule um prazo máximo para a conclusão do inquérito policial, em caso de investigado solto, podendo ser prorrogado a depender da 'complexidade' das apurações, deve-se obediência ao 'princípio da razoabilidade'", afirmou, destacando que há fatos investigados que remetem a atos de 2012.
Por fim, Rubioli ponderou que, tendo em vista as particularidades do caso, aplica-se a prescrição retroativa antecipada, reconhecendo que, apesar de os fatos não estarem prescritos ainda, isso vai acontecer se houver uma futura ação penal.
Resgate da advocacia
Em nota, o advogado Cristiano Zanin Martins, um dos alvos da investida de Bretas, afirmou que a decisão "resgata definitivamente a dignidade da advocacia ao colocar fim à perseguição praticada pela 'lava jato' contra mim e contra diversos colegas advogados que prestaram serviços jurídicos à Fecomercio-RJ durante o intenso litígio que a entidade privada manteve com a congênere CNC. É mais um relevante ato para resgatar a credibilidade da Justiça após diversos atentados cometidos por ímprobos e delirantes agentes públicos que agiam sob a alcunha de 'lava jato'."
"Essa decisão reafirma todo o trabalho por nós realizado desde 2016 para demonstrar o indevido uso estratégico das leis por uma parte do Sistema de Justiça com o objetivo de perseguir adversários e também seus advogados — prática de denominamos de lawfare", prossegue o advogado.
Zanin ainda alertou que a decisão é um convite para que a imprensa reflita sobre seu próprio papel nesse tipo de perseguição judicial, já que "inúmeras publicações" referendaram afirmações dos procuradores e de Bretas na tentativa de demonizar advogados no exercício de suas funções. "Ao invés de fiscalizar o exercício do poder, a imprensa, neste episódio, tornou-se cúmplice do arbítrio."
A decisão ainda reforça a necessidade de o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) analisar as representações apresentadas ainda em 2020 sobre "abusos e desvios funcionais" dos procuradores nesse caso, que, além de fabricar acusações deonestas, transformaram suas arbitrariedades em espetáculo midiático, afirma Zanin. "Para além disso, documentos coletados mostram que tais procuradores solicitaram e receberam, direta ou indiretamente, apoio de uma entidade privada (CNC) que se beneficiou do ataque feito aos advogados da parte contrária", destacou.
"A advocacia é a última barreira para conter o arbítrio do Estado contra o cidadão", finalizou Zanin. "Por isso é inaceitável qualquer ataque que busque restringir indevidamente sua atuação. O calvário imposto a mim e a diversos profissionais da advocacia nesse caso deve ao menos servir para uma profunda reflexão sobre as mudanças necessárias, do ponto de vista legislativo e até mesmo cultural, para impedir que novos ataques similares venham a ocorrer, evitando corroer ainda mais o já esgarçado Estado de Direito."
Entenda o caso
Os advogados começaram a ser investigados a partir da delação premiada de Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio do Rio. O empresário foi preso duas vezes e tentava negociar acordo de delação premiada com o Ministério Público desde 2018.
Na denúncia aceita por Bretas, o MPF listou 77 endereços de escritórios, empresas e casas de advogados. Os procuradores tentaram justificar a investida contra profissionais da advocacia afirmando que os pagamentos feitos pela Fecomércio aos escritórios coincidiram com "aquisições de carros e imóveis de luxo no país". Os fatos narrados pelo MPF teriam ocorrido entre 2012 e 2018.
Em reclamação ao Supremo, posteriormente aceita, seccionais da OAB afirmaram que houve usurpação de competência por Bretas, que autorizou a investigação de desembargadores e ministros do STJ e do Tribunal de Contas da União. A OAB também disse que como a Fecomércio é uma entidade estadual privada, qualquer investigação é de competência do Ministério Público estadual. Por fim, segundo a reclamação, as operações de busca e apreensão violaram as prerrogativas dos advogados.
O ministro Gilmar Mendes acolheu os argumentos expostos pela OAB, ordenando que todas as diligências fossem suspensas até o julgamento do mérito pelo STF.
Abuso sobre abuso
A delação premiada do ex-presidente da Fecomercio Orlando Diniz serviu para legitimar a maior investida contra a advocacia já feita no Brasil. Na ocasião, Marcelo Bretas aceitou denúncia do MPF e ordenou o cumprimento de 75 mandados de busca e apreensão em endereços de empresas, escritórios e residências de advogados.
Em cobertura extensiva, a ConJur apontou abusos e ilegalidades flagrantes no ataque comandado por Bretas contra advogados. Com mandados genéricos e sem a devida especificação e individualização, foram ordenadas buscas em 33 endereços residenciais de advogados, com claro intuito de intimidação dos profissionais.
Além disso, Bretas invadiu a competência do Superior Tribunal de Justiça ao determinar o cumprimento de mandados na casa de três desembargadores: um deles com mandato no TRE de Alagoas; outro, do TRF-2, casado com uma advogada; e ainda uma terceira, do TRF-3, também casada com um advogado. O bote motivou manifestações de repúdio no meio jurídico.
O bote ainda tinha erros de competência, já que a Fecomércio é uma entidade privada e deveria ser investigada pela Justiça Estadual; e de imputação de crimes, já que seus dirigentes não podem ser acusados de corrupção nem peculato. Em outra vertente há quem entenda que, por pretender investigar ministros do STJ e do Tribunal de Contas da União, a competência seria do STF.
Causou estranheza também o fato de Bretas ter aceitado a denúncia contra parte dos alvos praticamente ao mesmo tempo em que ordenou o cumprimento de mandados de busca e apreensão. Segundo especialistas, ou a denúncia estava bem fundamentada, dispensando a busca, ou ainda precisava de elementos comprobatórios, e não deveria ter sido acatada. O Ministério Público Federal do Rio alega que as duas frentes foram abertas porque a investigação ainda está em curso.
O ataque se baseou na delação do ex-presidente da Fecomercio do Rio de Janeiro Orlando Diniz. Trechos vazados da delação mostraram que o empresário foi dirigido pelo Ministério Público Federal do Rio no processo. Em muitos momentos, é uma procuradora quem explica a Diniz o que ele quis dizer. Quando o delator discorda do texto atribuído a ele, os procuradores desconversam, afirmando que iriam detalhar nos anexos.
Por fim, Bretas tentou bloquear quantias exorbitantes dos escritórios e dos advogados. Em investigação de supostos desvios de R$ 151 milhões, os bloqueios determinados pelo juiz ultrapassaram R$ 1 bilhão, e só não foram efetivados devido a um erro no sistema do Banco Central. Ele justificou os valores aplicando a cobrança de "danos morais coletivos" ao montante que teria sido recebido ilegalmente por escritório, o que não poderia ter sido feito em ação penal, segundo entendimento da 2ª Turma do Supremo.
Clique aqui para ler a decisão
Processo 213990-37.2021.8.19.0001
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!