Opinião

CPI da Covid-19: Randolfe Rodrigues e a volta da "lava jato"

Autor

29 de setembro de 2021, 18h39

*artigo atualizado às 16h de 30.set.2021 para a inclusão do outro lado

Quem achava que a "lava jato" morreu, se enganou. Nesta terça-feira (28/9), mídia, parlamentares e o distinto público experimentaram novamente o gozo supremo da unanimidade, de poder malhar Judas, no caso a Prevent Senior na CPI da Covid. Repete-se pela enésima vez o ritual do linchamento, da mesma natureza do que atingiu, em outros tempos, Fernando Collor, Escola Base, Lula, Dilma Rousseff,  Renan Calheiros — sim, Renan Calheiros, alvo do mesmo padrão —, Chico Lopes, Clinica Santé, alguns culpados, alguns inocentes, todos injustiçados, pois despertando na turba a mesma selvageria que atropela princípios, procedimentos duramente construídos em um processo civilizatório incompleto que sempre marcou o país. É o país dos linchamentos.

Reprodução
Há 30 anos enfrento esse espírito de linchamento. Investi contra ele até no caso Fernando Collor, apesar dele ter tirado meu programa do ar na TV Gazeta, Educativa e Nacional. Porque não importa a pessoa: importa o jornalismo e a defesa de princípios. Convalidar a campanha do impeachment de Collor — assim como a de Dilma — seria aceitar a desmoralização da profissão que adotei para toda vida e, mais que isso, aceitar a quebra de valores duramente conquistados na luta pela redemocratização.

Depois das acusações devidamente apuradas, que os responsáveis recebam as punições devidas, e poupe-se a empresa. Mas o que se viu ontem, na CPI, foi uma pantomima de dar engulhos, especialmente do senador Randolfe Rodrigues, que, nos tempos da "lava jato", costumava exibir orgasmos múltiplos diários de celebração da violência institucional.

Sempre fui tomado de alergia invencível pelos Catões, os linchadores da legalidade, fossem Pedro Simon, Demóstenes Torres — o campeão moral da Veja (lembram?) —, Roberto Gurgel, Luis Roberto Barroso, os que surfam no sentimento de ódio e na falta de discernimento dos movimentos de manada e escandalizam qualquer fato banal porque estão em campanha.

Por exemplo, questionada, a advogada depoente disse que a Prevent utilizava o tratamento alternativo para economizar com internações. Imediatamente foi interrompida por Randolfe, que taxou o procedimento de estarrecedor e , mais que isso — depois repetiu várias vezes — que foi o mais estarrecedor episódio que já presenciou na vida. Isso em uma pandemia em que dezenas de pessoas morreram nos corredores dos hospitais da vida, em que covas coletivas foram abertas para esconder corpos em valas comuns. Mas o episódio mais estarrecedor foi a advogada ter dito que o tratamento alternativo visava economizar custos com internação.

O estarrecedor pegou, foi repetido por todos os jornalistas e passou a ser aplicado a qualquer procedimento, mesmo procedimentos padrões. Tudo é estarrecedor, tudo é divino, maravilhoso para jogar holofotes nos Catões.

Reduzir internação através de tratamentos preventivos é norma consagrada de gestão de saúde, que não apenas barateia o tratamento como é sinal de respeito para com o paciente, impedindo sacrifícios maiores. 

Depois dos engulhos de Randolfe, a advogada lançou a suspeita de que a Prevent poderia abreviar o tempo de internação nas UTIs, retirando pacientes antes que a doença estivesse sob controle. Agora, sim, lançou uma suspeita de crime — que terá que ser devidamente apurada. Por enquanto é uma prova testemunhal. Aliás, nem testemunhal é, porque não foi a advogada que presenciou o suposto crime. Mas a suspeita foi transformada em condenação sumária, tal e qual na "lava jato".

Para Randolfe, o teatro prescinde de roteiro. O tom de indignação vale para qualquer informação sobre a empresa, banal ou suspeita de crime. O simples fato de afirmar que o tratamento preventivo visava reduzir custos já bastou para que o adjetivo estarrecedor brotasse da boca de Randolfe, ecoasse pela CPI e fosse repetido por todo o país.

Não apenas nisso. Os dois proprietários da Prevent são músicos e compuseram um hino para a empresa. Nas reuniões gerais, funcionários cantavam o hino. Estarrecedor!, bradou Randolfe, como se fosse a SS nazista preparando-se para executar dissidentes.

E não parou por aí. Acusou-se o Ministro Paulo Guedes de ter interesse na pesquisa, na medida em que reduziria o isolamento e prejudicaria menos a economia.

Há duas leituras para isso:

Hipótese 1 – No início, acreditava-se que a hidroxicloroquina fosse eficaz contra a doença. Nada mais natural que o Ministro da Economia se entusiasmasse pela possibilidade de abreviar o isolamento.

Hipótese 2 – Sabia-se que o tratamento era ineficaz e, mesmo assim, disseminou-se a lenda da cura para induzir o público a deixar o isolamento, com risco de vida.

É uma diferença fundamental. No primeiro caso, é uma análise incorreta; no segundo, uma ação criminosa. Para a CPI e para a cobertura lavajatista tanto faz. Sequer se importaram com essas diferenças, como se fossem apenas firulas, já que o réu está condenado de antemão.

Acusou-se a empresa de induzir e/ou obrigar os médicos a receitarem o tratamento. Ora, qualquer hospital trabalha com protocolos, definindo procedimentos para tipos de tratamento. E os médicos são obrigados a seguir.

Mais uma vez, duas hipóteses.

Hipótese 1 – a empresa adotou os protocolos antes de constatar a ineficácia do tratamento.

Hipótese 2 – a empresa manteve o protocolo mesmo depois de convencida da ineficácia do tratamento.

É outra diferença fundamental. No primeiro caso, teria sido um erro de avaliação em um momento em que o mundo não tinha clareza sobre a pandemia. No segundo caso, uma suspeita de ação oportunista e criminosa, para ser devidamente apurada.

Aqui, uma receita para um paciente, no mês de dezembro, quando o tratamento já havia sido condenado internacionalmente — muito mais pelas implicações políticas, de ser apresentado como alternativa às medidas de prevenção.

Para a CPI e a mídia, tanto faz, tudo é japonês (lembrando a velha analogia futebolística), tudo é estarrecedor. E pau no Judas, antes de apurar as denúncias.

Todas as denúncias saíram de um dossiê preparado por um grupo de médicos que processa a Prevent. O fato de serem 12 médicos chama a atenção, mostrando que não se trata de aventura individual. Mas não se sabe o nome dos médicos, nada se sabe sobre o trabalho da advogada, quem são seus clientes, para quem trabalha. Qualquer questionamento, vem-se com a alegação de que estava tudo devidamente documentado no material enviado para a CPI. Quem viu? Quem analisou? Sequer apresentaram o dossiê para o principal acusado, da mesma maneira que os métodos da "lava jato".

A Prevent diz que são dados manipulados. Pode ser que sim, pode ser que não. Mas, antes da Prevent apresentar sua defesa, como é possível o endosso a um dossiê cuja consistência, até agora, depende apenas da palavra da advogada semianônima e de médicos anônimos?

Por hipótese, suponha que os 12 médicos tenham sido contratados por uma empresa concorrente da Prevent. Em equipe, valem ouro, porque dominando a metodologia de um plano de saúde campeão. Repito: é apenas uma hipótese, mas plausível. Como ficaria a credibilidade das denúncias? Pode ser que nenhum deles tenha interesses paralelos; pode ser que tenham. Se não se dispõe sequer dessas informações básicas — para formar um juízo de valor — como é que podem assinar em branco em cima das declarações?

Até o lobby de Henrique Mandetta, no início da pandemia, foi apontado como parte de uma teoria conspiratória do governo Bolsonaro em defesa da cloroquina. Nem se deram ao trabalho de analisar o momento em que Mandetta se manifestou. Mal se sabia da pandemia. Ela explodiu violenta nos hospitais da Prevent pelo fato óbvio de sua clientela ser de idosos. Não se falava ainda da cloroquina. Mandetta denunciou a empresa pela quantidade de infectados, pela relevante razão de que ele pertence ao lobby da Unimed e dos planos de saúde, e os preços e atendimento praticados pela Prevent expunham de forma nítida o custo exorbitante da indústria da saúde especialmente em relação ao atendimento aos idosos.

Na época, as denúncias de Mandetta mobilizaram Polícia Civil, Secretaria da Saúde, Ministério Público; mais Agência Nacional de Saúde Suplementar. Segundo a Prevent, todas as investigações concluíram pela correção no atendimento. Não sei se é ou não é, porque ela não mostrou ainda os documentos. Mas como pode um plano de Saúde, que jamais demonstrou a influência política do principal candidato aos seus despojos — a QSaúde, do notório Serapieri, candidato óbvio ao legado de clientes da Prevent — ter dobrado quatro instituições públicas e, ainda mais, em um estado governado por um antibolsonarista feroz?

Mesmo sem analisar os inquéritos, o bravo senador Randolfe afirma que todas as instituições devem explicações sobre as razões de não terem punido a Prevent. Sequer consultou os autos das investigações. A empresa é culpada e não se fala mais nisso. E tome estarrecedor na veia. E todas as investigações serão reabertas, com as instituições tendo nas costas a faca da mídia e da opinião pública. Qualquer morte pela pandemia será criminalizada. Plantaram em todos os familiares de pacientes mortos pela pandemia a dúvida sobre as causas da morte e o remorso por julgarem que poderiam ter evitado a morte. A exemplo da "lava jato" que delegado, procurador, juiz ousará analisar com isenção o caso, sabendo que, indo contra a turba, será alvo de suspeitas?

Há muito a se apurar e a Prevent Senior tem muito a explicar.

Há duas acusações documentadas, de ter escondido as causas da morte da mãe de Luciano Hang e do médico Anthony Wong, maior propagador do tratamento alternativo. É falta grave, mesmo porque as causas da morte foram escondidas para não enfraquecer a luta política de Bolsonaro. 

Além dessas acusações, há uma montanha de suspeitas de temas sérios. Aparentemente, a estratégia da empresa é a de não entrar no debate, enquanto correr a CPI, sabendo que qualquer argumento será relevado. Depois, se chegará ao trabalho de apurar cada acusação. 

Se as acusações se confirmarem, a empresa terá sido punida antecipadamente. Se não se confirmarem, já foi punida. Seja qual for o resultado, no entanto, há um perdedor óbvio: o jornalismo. A notícia foi estuprada, mostrando que o jornalismo brasileiro tem seu próprio repertório de hashtags para enfrentar as hashtags do bolsonarismo. Pouco importa a análise, o contraditório, o contexto. Tudo vira lide e manchete.

Depois vamos bater no terraplanismo dos algoritmos bolsonaristas, que se impõe pelo estarrecedor, sabendo que no final da linha da Prevent há 550 mil idosos que serão jogados ao mar, como os estaleiros da Petrobras e os empregos destruídos pela "lava jato".

*Texto originalmente publicado no Portal Luis Nassif.

Outro lado
Nota do advogado Raul Leite Cardoso
"José Seripieri Filho (o "Junior") contradita enfaticamente, no que lhe diz respeito, o teor deste artigo.
Primeiro porque, inversamente ao que lá foi dito, Seripieri registra, sem qualquer receio, que a Qsaúde jamais exerceu qualquer 'influência política'. Aliás, à época dos fatos ora investigados, a Qsaúde sequer existia.
Depois por transbordar indisfarçada e reiterada maledicência, já que desprovida de mínimo fundamento, a insinuação de que ele teria interesses escusos nas investigações da 'CPI da Covid', sem porém exibi-los, por ser o 'candidato óbvio ao legado de clientes da Prevent'.
A livre concorrência de mercado privado não é ilegal tão pouco imoral. Ao contrário, é salutar à economia. Em resumo: exceto pelo interesse geral, que é e tem que ser franqueado a toda a sociedade brasileira, nenhum apego especial Seripieri e a Qsaúde nutrem quanto à CPI da Covid."

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!