Segunda Leitura

O que o Judiciário aprendeu com a pandemia e o que ficará de bom (parte I)

Autor

  • Leonardo Resende Martins

    é juiz federal no Ceará professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia na Itália e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

10 de janeiro de 2021, 8h02

Findo o recesso de final de ano, o Poder Judiciário de primeiro e segundo graus retomou suas atividades no último dia 7 de janeiro[i]. Embora os prazos, audiências e sessões de julgamento estejam suspensos até o dia 20/1[ii], a garantir um repouso para advogados e advogadas que trabalham como profissionais liberais, os fóruns e tribunais (com exceção dos tribunais superiores) voltaram ao seu funcionamento normal.

Normal? Bem, “normal” é uma palavra que tão cedo será usada adequadamente em seu contexto tradicional. O ano de 2020 parece ter vindo para abalar convicções e testar a capacidade de adaptação das pessoas e das instituições. Resiliência e flexibilidade são as palavras da hora, qualidades cada vez mais necessárias para enfrentar os desafios de um mundo pós-pandêmico.

Assim como as guerras e as revoluções, as pandemias costumam funcionar como catalisadores de mudanças sociais. Os tabus, capazes de sustentar práticas anacrônicas e pouco racionais por décadas a fio, acabam cedendo à necessidade de sobrevivência. E sobreviver é o primeiro comando encravado no DNA do ser humano.

A pandemia de Covid-19 e as medidas de isolamento social que ela impôs fizeram com que as organizações abrissem mão daquilo que restava de apego ao presencial e ao físico. Com o Judiciário não foi diferente. O teletrabalho, que já era autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[iii], porém com aplicação ainda módica, tornou-se a regra. Atendimentos ao público, audiências de conciliação e instrução e sessões de julgamento passaram a ser realizados com o uso das ferramentas de videoconferência. Os tribunais que ainda possuíam acervo de processos em papel partiram para uma acelerada política de informatização. Alvarás, ofícios e mandados foram substituídos por mensagens eletrônicas instantâneas. O medo do novo coronavírus, obviamente, era justificativa mais que plausível para todas essas mudanças.

Em relação à pandemia, o momento ainda é incerto e muito preocupante. Esta semana, batemos a marca dos 200.000 mortos. Com um plano nacional de vacinação ainda com muitas indefinições e diante de uma nova elevação do número de casos de contaminação, de internações hospitalares e de óbitos por causa da Covid-19, o cenário para este início de ano persiste extremamente preocupante.

Contudo, com alguma dose de otimismo, a expectativa é que, confirmada a eficácia das vacinas, as condições sanitárias caminhem ao longo do ano para uma situação de gradativo controle, permitindo a definitiva retomada das atividades em todos os setores, com segurança e liberdade. É o que todos desejamos!

Por outro lado, com o retorno a uma realidade mais próxima daquilo que conhecíamos como “normalidade”, é preciso estar atento ao risco de que as instituições, inclusive o Judiciário, caiam na tentação de voltarem ao que eram antes, em busca daquela sensação de aconchego do regresso ao que nos é familiar. Que desperdício seria! Abrir mão do aprendizado conquistado ao longo desse período extremamente árduo e continuar a fazer tudo como antigamente seria um tremendo erro, um verdadeiro atestado de incapacidade de interpretar os fenômenos sociais e de se adaptar às novas realidades.

A reflexão que se lança, portanto, é a seguinte: o que a Justiça brasileira poderia extrair de lição durante um ano tão anormal e desafiador como 2020? Que estratégias, práticas e tecnologias utilizadas para tentar superar as dificuldades criadas ou acentuadas pela pandemia de Covid-19 poderiam ser incorporadas na rotina judiciária daqui por diante?

O professor Vladimir Passos de Freitas, titular desta coluna, com sua admirável visão vanguardista, já havia antecipado, em março do ano passado, que o Judiciário não seria mais o mesmo depois do coronavírus. Dentre várias reflexões, ele apostou na consolidação do teletrabalho, na utilização intensiva das novas tecnologias de comunicação e plataformas digitais, no maior informalismo da linguagem jurídica e dos atos processuais e no abandono da ideia de territorialidade como forma de organizar o trabalho e distribuir competências dentre as unidades jurisdicionais. Pretendo retomar essa discussão, reforçando alguns pontos e acrescentando outros.

Começo pelo teletrabalho. Mesmo com os fóruns e tribunais praticamente fechados, a Justiça brasileira não parou. Contrariando vozes conservadoras, a pandemia demonstrou que quase todos os serviços judiciários poderiam ser prestados a distância, sem necessidade de intermediação presencial de seus agentes. Em alguns aspectos, o serviço até melhorou e se tornou mais cômodo aos usuários. Advogados não precisaram mais se deslocar de suas residências ou escritórios para conversarem com juízes, fazerem sustentações orais e participarem de audiências. Trabalhando de casa, servidores pouparam uma quantidade valiosa de tempo antes desperdiçados do trânsito caótico de nossas metrópoles.

A redução das despesas com água, energia elétrica, limpeza, manutenção predial, vigilância etc. foi um alívio para os gestores em um contexto de gravíssima crise fiscal. Os números ainda estão sendo apurados, mas se estima uma economia entre R$ 20 milhões a R$ 25 milhões apenas no âmbito da 5ª Região da Justiça Federal, algo em torno de 15% a 18% do orçamento de custeio.

Não há como retroceder nesse ponto. Sequer temos condições financeiras para tanto. O teletrabalho deve permanecer como regra; atividades presenciais, como exceção, só quando absolutamente imprescindível. Com isso, tornou-se urgente redimensionar os espaços ocupados pelos fóruns. Imóveis custam caro. As áreas que não forem realmente essenciais à prestação do serviço público devem ser liberadas, poupando o contribuinte de um gasto que não é mais necessário.

Nesse contexto, a arquitetura forense tem de ser repensada radicalmente. É preciso sepultar a ideia de fóruns grandiosos, nababescos, opulentos, que só servem para gerar receio e afastamento ao cidadão que necessita da Justiça. Em vez de estruturas físicas para cada vara ou setor administrativo, convém instituir espaços de coworking, mais funcionais e que estimulem a criatividade e a cooperação, algo na linha dos laboratórios de inovação que vêm sendo criados no Poder Judiciário (sobre isso, tratarei na próxima semana). Afinal, com a maior parte dos servidores trabalhando em suas próprias casas, não se justifica mais manter a lógica de uma mesa, uma cadeira, um computador para cada um no prédio. Gabinetes, salas de audiência (para aquelas que excepcionalmente não puderem ser feitas a distância) e equipamentos em geral podem ser compartilhados, num uso mais republicano e menos patrimonialista da coisa pública.

É claro que o teletrabalho também apresenta suas dificuldades e desafios. Somos um povo afetuoso, que gosta do contato físico, da proximidade, do olho no olho. É preciso que o atendimento ao público, na modalidade virtual, se dê com muita qualidade e eficiência, de forma a satisfazer o usuário. Os tribunais devem regular o assunto, estabelecendo os canais de contato e os prazos máximos para os cidadãos e os profissionais da área jurídica serem atendidos. Um formulário de avaliação deve ser disponibilizado, ao final, para se mensurar a satisfação com o serviço e identificar possíveis oportunidades de melhoria.

Falta ainda desenvolver uma etiqueta própria para os “despachos” on line com os juízes. Com a comodidade de poder falar com os magistrados sem precisar sair de casa ou do escritório, é natural que aumentem os pedidos de advogados por uma audiência para tratar de assuntos do processo com o respectivo julgador. Para evitar desperdício de tempo de todos, essas reuniões precisam ser rápidas, algo como um pitch, ou seja, uma brevíssima apresentação, em poucos minutos, que serve apenas salientar algum aspecto específico da causa: um documento mais relevante, um argumento mais sofisticado, um requerimento mais urgente. Merece reflexão, inclusive, a possibilidade de se anexar ao processo o registro em áudio e vídeo desse encontro, por imperativo de transparência, de modo a permitir o controle pela parte adversa sobre o teor do que foi conversado.

Outro ponto sensível é a dificuldade de assegurar a incomunicabilidade das testemunhas durante as audiências por videoconferência. Um protocolo claro e objetivo e o aperfeiçoamento de recursos tecnológicos poderiam ajudar a garantir a espontaneidade dos depoimentos, evitando interferências indevidas durante as oitivas.

Por fim, não se pode esquecer o problema da exclusão digital. Num país com profundas desigualdades sociais, as portas do mundo virtual ainda não estão abertas a todos. Dados do IBGE, referentes ao ano de 2018, revelam que 20,9% dos lares brasileiros não dispunham de Internet[iv]. Com o Judiciário cada vez mais digital, o acesso à Internet passou a ser também uma questão de acesso à Justiça. Para minorar essa dificuldade, os fóruns devem dispor de espaços providos de computadores conectados para uso pelos cidadãos que não possuam Internet em casa e que necessitem de algum serviço judiciário. Sem prejuízo, é claro, da exigência de o Poder Executivo promover uma política de universalização do acesso à rede.

Na próxima semana, continuarei a tratar de outros legados da pandemia ao Judiciário e dos desafios que 2021 trará para o sistema de Justiça.


[i] Art. 62, inc. I, da Lei n. 5.010/66 e art. 1º da Resolução n. 244, de 12/9/2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

[ii] Art. 220 do Código de Processo Civil (CPC)

[iii] Resolução n. 227, de 15/06/2016.

Autores

  • é juiz federal no Ceará, professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia, na Itália, e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

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