Interesse Público

O perigo da relativização indevida da transparência administrativa

Autores

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

  • Caio Mário Lana Cavalcanti

    é advogado especialista em Direito Administrativo (tendo recebido o Prêmio de Direito Administrativo Professor Júlio César dos Santos Esteves) em Direito Tributário e em Direito Processual pela PUC Minas em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes (Ucam) e em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (Idde) — conjuntamente com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Ius Gentium Conimbrigae) e com a Faculdade Arnaldo.

26 de março de 2020, 8h00

Não é novidade que a Covid-19 gerou uma global instabilidade política e econômica que, naturalmente, atingiu o Brasil. Na seara jurídica, a incerteza igualmente se faz presente, de modo que adormecemos incertos das inovações normativas que eventualmente alterarão o ordenamento jurídico brasileiro no dia seguinte.

Spacca
É nesse contexto que mais um ato normativo restou publicado: a Medida Provisória nº 928/2020, que, dentre outros aspectos, inaugurou restrições aos direitos fundamentais no âmbito do acesso à informação.

A medida em comento, ao modificar a Lei nº 12.527/11[1], suspende os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação formulados a órgãos públicos cujos servidores estejam em quarentena ou teletrabalho e que dependam, necessariamente, ou de presença física no órgão ou de agente público prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento da pandemia.

Isso sob a justificativa de que a prioridade das respostas deveria ser direcionada aos questionamentos envolvendo o coronavírus, a exemplo do número de contaminados, do teor dos contratos administrativos emergenciais celebrados, dentre tantas outras questões importantes. Até tal ponto, parece inexistirem inconformidades, porquanto, sob um rápido olhar, estar-se-ia a privilegiar as informações relativas à Covid-19.

Em contrapartida, a disposição contém curiosas entrelinhas que criam óbice para a consecução do próprio fundamento que a justifica. Ora, se se diz, ao mesmo tempo, que, em primeiro lugar, as informações atinentes à pandemia terão prioridade e, em segundo lugar, que estão suspensos os prazos de resposta que dependam justamente dos agentes envolvidos com os estudos pandêmicos, o que se diz a bem da verdade é que estão suspensos os prazos para as respostas de quaisquer solicitações, inclusive aquelas referentes à própria Covid-19. Afinal, obviamente, o agente público que teria a capacidade de responder aos questionamentos envolvendo o vírus é justamente aquele que a medida provisória utiliza para amparar a suspensão dos prazos.

À primeira vista, a MP estaria embasada na impossibilidade material de observar a lei. Haverá situações em que, de fato, não será possível cumprir o prazo legal.  Diante de demandas concretas cujo atendimento fosse inviável, a justificativa apresentada pelo agente competente bastaria. Ou seja, o caso concreto poderia assim autorizar, sem que para isso fosse necessária alteração legal. Basta considerar o disposto no art.  11. § 1º, inciso II[2]. Por isso, chama atenção o fato de se editar uma Medida Provisória com a pretensão de sedimentar e legalizar a não resposta. Mais que isso, é curioso que o Governo Federal tenha se ocupado disso considerando a catástrofe que estamos vivenciando.

A edição da MP aparenta ser reflexo do “senso de oportunidade” para o bloqueio de informações, senso este que, de forma perigosa, pode servir de porta de entrada para outras restrições indevidas. Esse é o temor maior que a circunda.

De todo modo,  a transparência reativa, se dificultada pelo distanciamento físico, deveria impulsionar a transparência ativa. Assim, seria desejável  — no mínimo — que se aprimorassem, como compensação ao silêncio que propõe, os mecanismos de divulgação, estabelecendo comandos que alavancassem nas diversas esferas da federação o dever de comunicar as ações e dados relativos ao vírus.

Em tempos de pandemia, quando contratos por dispensa e contratos temporários de agentes púbicos serão celebrados como medida para o seu enfrentamento, a obscuridade é ainda mais perigosa. A isso se soma o fato de que a população e os órgãos de imprensa precisam obter informações sobre números e medidas a serem implantadas no combate ao vírus.  O momento é tudo menos propício para embaraços à transparência. O momento exige maior iluminação, e não o contrário.

Há ainda outros aspectos. Determina a MP que todos os pedidos solicitados e não respondidos durante a suspensão do prazo deverão ser ratificados no prazo de dez dias, a contar do fim da calamidade, sob pena de serem simplesmente ignorados, como se a transparência se revelasse apenas enquanto mero interesse privado, e não enquanto princípio a ser necessariamente observado e incentivado pela Administração Pública, sob pena de ruína de um dos mais básicos pilares da democracia. Nada mais desarrazoado.

Não bastasse, determina o ato normativo em análise que qualquer recurso contra a negativa de resposta com base na suspensão dos prazos aqui citada será de plano não conhecido. Neste ponto, a crítica deve ser severa, porquanto o que se está a suprimir são os direitos corolários do devido processo legal administrativo que, por sua vez, é fundamento do Estado Democrático de Direito essencial para o combate de decisões arbitrárias. Não por outra razão a Lei nº 12.527/11, que trata do direito à informação, traz o recurso como um direito primordial no campo do acesso à informação.

Assim, mantida a disposição provisória, eventual ilegalidade no âmbito das suspensões de prazos para resposta dos pedidos deverá ser questionada diretamente no Poder Judiciário, cuja morosidade é natural em virtude do seu assoberbamento, em situações emergenciais em que o tempo corre em desfavor do interessado. Em outros dizeres, a partir da medida em tela, deverá o cidadão provocar o Poder Judiciário visando à consecução de uma das imposições constitucionais mais básicas quando o assunto é a Administração Pública contemporânea: a transparência administrativa.

Momentos excepcionais exigem, sim, medidas diferenciadas, mas desde que proporcionais, razoáveis e devidamente motivadas. Oxalá os tempos de pandemia não sirvam para a instalar de vez a sombra  e  o arbítrio.


[1] Lei de Acesso à Informação, que regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do §3º do art. 37 e no §2º do art. 216 da Constituição Federal. Estipula, assim, de forma pormenorizada, o dever de transparência do Poder Público.

[2] Art. 11. O órgão ou entidade pública deverá autorizar ou conceder o acesso imediato à informação disponível.

§ 1º Não sendo possível conceder o acesso imediato, na forma disposta no caput, o órgão ou entidade que receber o pedido deverá, em prazo não superior a 20 (vinte) dias:

I – comunicar a data, local e modo para se realizar a consulta, efetuar a reprodução ou obter a certidão;

II – indicar as razões de fato ou de direito da recusa, total ou parcial, do acesso pretendido; ou

III – comunicar que não possui a informação, indicar, se for do seu conhecimento, o órgão ou a entidade que a detém, ou, ainda, remeter o requerimento a esse órgão ou entidade, cientificando o interessado da remessa de seu pedido de informação.

Autores

  • é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

  • é advogado e especialista em Advocacia Pública e em Direito Administrativo, Constitucional, Tributário, Processual e Público.

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