Direito em pós-graduação

Contratos normativos podem garantir organização para combater a pandemia

Autor

29 de abril de 2020, 8h00

ConJur
No momento em que a comunidade científica, especialmente médicos e economistas, tem se debruçado sobre observações, testes e projeções para fazer frente aos inúmeros problemas da pandemia causada pelo coronavírus, é preciso se perguntar: quais soluções podem ser apresentadas pelos programas de pesquisa na área jurídica? Certo de que há muito com o que contribuir, parabenizo a Coordenação da Área de Direito junto a CAPES, na pessoa do Prof. Otávio Luiz Rodrigues Júnior, pela excelente iniciativa de divulgar trabalhos que possam responder a este chamado, e igualmente ao site Consultor Jurídico por viabilizar o espaço para esta discussão.

Desde o início do ano, o mundo assiste a escalada vertiginosa do número de pessoas infectadas pelo coronavírus, agente patológico da enfermidade Covid-19. Tal foi o aumento de casos e a letalidade causada que a Organização Mundial de Saúde declarou estado de pandemia em março deste ano1, poucos meses após a identificação dos primeiros casos. Desde então, as consequências causadas já se vêem gravíssimas e alarmantes. No Brasil, foi decretado estado de calamidade pública nacional após aprovação da mensagem presidencial pela Câmara e pelo Senado, respectivamente nos dias 18 e 20 de março.

À calamidade declarada, seguiu-se a edição de normas por diversos entes públicos, proibindo aglomerações e a abertura de absolutamente todo tipo de comércio e serviço que não seja considerado essencial. Observando recomendações médicas, é enorme o número de pessoas que, de modo voluntário ou não, tem se mantido em quarentena. Estatística recente da Universidade John Hopkins aponta que 1/3 da população mundial encontra-se nessa situação2.

Trata-se de uma tempestade perfeita de poucos precedentes no mundo, não sendo um exagero retórico considerá-la uma tragédia sanitária e econômica3. O combate a esta crise exigirá coordenação e organização entre múltiplos agentes, quer sejam ligados ao Poder Público ou à ordem privada. O uso de modelos usuais de contratação não parece alcançar estes objetivos; porém, a cooperação e o consenso em grandes escalas, tal como se exigirá neste período difícil, podem ser obtidos através de contratos normativos.

Em uma primeira acepção, contratos normativos são negócios jurídicos pelos quais as partes, desde já, pactuam as condições dos negócios que possam vir a ajustar no futuro4. Esta perspectiva tem raiz histórica na monografia do alemão Alfred Hueck, publicada em 1923 sobre o Normenverträge5, em que o autor defendia a eficácia jurídica de um ajuste que vinculasse as partes a condições negociais previamente definidas caso decidam contratar no futuro, entre si ou com terceiros, podendo vir ou não a fazê-lo. O contrato, nesta hipótese, emula uma norma legal na medida em que cria uma hipótese fática que não se sabe se ocorrerá (“se as partes decidirem contratar…”), mas que, uma vez preenchida, regulará a relação jurídica estabelecida (“…as condições contratuais serão tais e quais”).

A possibilidade de criação de uma lex contractus, uma espécie de ordem jurídica privada, fica a meio caminho da norma legal, que se impõe a todos de maneira indeterminada; e, por outro lado, da norma contratual clássica, que cria uma obrigação imediata a determinada prestação. Pelo contrato normativo, apenas há o consenso quanto aos termos de uma contratação futura, mas não à contratação em si. Na Itália, é comum que se relacione o que se conhece lá como contratto normativo aos contratos preliminares. Em ambos, é possível sublinhar uma função preparatória para outro negócio. Os contratos preliminares, porém, criam obrigação de contratar futura (pactum de contrahendo), enquanto nos contratos normativos pactua-se os termos aplicáveis ao negócio se as partes vierem a constituí-lo no futuro (pactum de modo contrahendi).

O tema, embora pouco desenvolvido no Brasil, pode ser aplicado para obter soluções contratuais em inúmeros campos. Desde sua origem alemã, por exemplo, o mecanismo articulado através do contrato normativo permite explicar a natureza contratual das atuais convenções coletivas de trabalho6: a empresa A obriga-se em face de uma corporação B a adotar as condições contratuais definidas no instrumento caso venha a contratar empregados representados pela entidade (contrato normativo bilateral). Tomando-se outro exemplo, o mesmo conceito pode ser aplicado ao instrumento firmado por um conjunto de empresas que se obriguem entre si a adotar com seus consumidores certas regras caso sejam contratadas (contrato normativo unilateral).

A esta primeira compreensão, que cuida dos contratos normativos como contratos preparatórios, já se agrega atualmente uma segunda. Por suas características, a aplicação dos contratos normativos serve à concertação de interesses para levar a efeito empreendimentos complexos, que dependem de inúmeros contratos e relações, para os quais a colaboração e a cooperação são elementos essenciais para o alcance do objetivo final. Aqui, não se disciplina “un simple intercambio de prestaciones”; vai-se além para regular “una compleja, estrecha y duradera relación de cooperación entre sujetos con intereses convergentes y su desarollo mediante la conclusión de una futura y eventual multiplicidad de actos jurídicos de diversa naturaleza, tanto entre ellos mismos como con terceros”7.

Este segundo ponto de vista sublinha que contratos normativos não são apenas preparatórios, nem são desnaturados de qualquer efeito caso as partes não venham a firmar os contratos futuros nele referidos. A sua causa, aquilo que lhe empresta relevância jurídica, é o que na França se nomeou de affectio modulus8, sendo tal qualidade fundamental para a caracterização e identificação do contrato normativo.

Autores franceses usualmente referem a affectio modulus como uma das características do contrato-quadro (contrat-cadre): trata-se de categoria próxima do contrato normativo, cuja distinção substancial estaria na obrigação de constituir os contratos futuros nele referidos9. Nos dois casos, pode-se observar esta vontade específica de criar um módulo, um bloco uniforme de relações jurídicas cujo tronco central é o mesmo instrumento, de tal modo que a regra definida no contrato normativo, tal qual a norma legal, sirva de fundamento de validade, e de parâmetro para revisão e integração, para os contratos que posteriormente sejam estabelecidos por aqueles que se sujeitarão a ele.

É evidente que este microssistema contratual deve encontrar, por sua vez, seu suporte na Lei. A possibilidade de contratações deste tipo está abarcada pela liberdade contratual, encontrando seu respaldo na regra geral de reconhecimento dos efeitos de contratos atípicos. Na França, particularmente, a natureza normativa também encontra fundamento no art. 1134 do Código Civil francês. Tal dispositivo é célebre e atribui força de lei às convenções legalmente constituídas: tratando do contrat-cadre, Jean Gatsi vale-se disso para concluir que a menção à lei não foi circunstancial e que, de fato, os contratos formados a partir do contrato quadro nele devem buscar seus requisitos de validade10. O tema se relaciona com outro tópico importante da teoria geral dos contratos, no que diz respeito à hierarquia entre negócios jurídicos11.

Como se vê, o tópico é amplo e suscita inúmeras questões, muitas das quais ainda não resolvidas ao longo de minha pesquisa. A despeito disso, duas contribuições já me parecem possíveis no contexto da pandemia Covid-19.

A primeira: contratos normativos viabilizam o exercício da autorregulação para fazer frente aos problemas jurídicos que decorrem da pandemia.

Em um momento de difíceis consensos políticos no país, o manejo de contratos normativos pode viabilizar reações a este difícil período que não dependam do Poder Público. Esta fuga para o Direito Privado é uma tendência que não pode ser ignorada na formatação de soluções institucionais para a crise que já se encontra instalada entre nós.

Neste ponto, parece possível relacionar os contratos normativos com mecanismos de autorregulação. De fato, a autorregulação é de forma corrente definida como um “mini-sistema legal”12 ou um “mini-sistema de governança coletiva”13. A regulação contratual deste sistema não é desconhecida na doutrina, como destaca Vital Moreira ao afirmar que, não sendo derivada de norma baixada pelo Poder Público, o suporte da autorregulação estará nas normas contratualmente estabelecidas entre os regulados14. Sob este contexto, os contratos normativos permitem a criação de “direito não estatal”, uma realidade que deriva da grande quantidade “de normas produzidas por especialistas ou organização privada de expertos, de caráter não estatal, mas que, na prática, vincula os agentes interessados em exercer uma atividade econômica ou profissional (…)”15.

Exemplo disso já pôde ser verificado nas últimas semanas. Conforme noticiado pelos jornais, a associação nacional representativa dos shopping centers firmou um acordo com a entidade que representa os lojistas por meio do qual comprometeu-se a não cobrar aluguéis durante o período em que os centros comerciais estiverem proibidos de funcionar16. Embora não se saiba o conteúdo exato do que veio a ser firmado, é inegável a tentativa de promover soluções para a tensão criada na relação entre lojistas e operadoras de shoppings valendo-se da via contratual. Em passado recente, tenha-se presente também a tentativa de acordo com teor semelhante no âmbito do mercado imobiliário17. Iniciativas deste tipo dependem de um modelo contratual adequado para que os consensos obtidos não se tornem meras carta de compromisso, o que torna relevante a aplicação da técnica do contrato normativo.

A segunda contribuição proposta é: contratos normativos viabilizam a formação coordenada de contratos e consórcios para desenvolvimento de vacinas, medicamentos e para sua correspondente distribuição.

A ação organizada de pesquisadores, institutos de pesquisa, hospitais, médicos, laboratórios, indústrias farmacêuticas, fundos de investimento e agências de fomento exige extrema colaboração. Pesquisar, desenvolver, licenciar, fabricar e distribuir vacinas e medicamentos eficazes contra a Covid-19 não é apenas um desafio médico ou econômico, mas sobretudo jurídico. A constituição de contratos normativos, sob este contexto, pode ser um valioso instrumento para viabilizar não apenas obrigações recíprocas entre estes agentes, como também para a criação de relações estáveis e previsíveis. Trata-se de uma solução que permite ir um degrau acima da construção doutrinária sobre as redes contratuais18, na medida em que explicita a existência da coligação contratual e do dever de agir em conjunto para determinado fim.

O espírito prático dos juristas da Common Law cunhou a expressão umbrella agreement para os contratos que sirvam de base para projetos como o que aqui se referiu. Por exemplo, duas ou mais indústrias farmacêuticas podem obrigar-se a financiar conjunto pesquisas de terceiros que venham a se habilitar a tanto, estipulando condições negociais futuras entre elas para a hipótese de ser desenvolvida uma vacina: se será constituída uma sociedade e quais os termos, como serão divididos os direitos sobre as patentes, dentre outros aspectos. Em sentido equivalente ao conceito de contrato normativo nos países de tradição romanística, mesmo em obras da área de negociação e estratégia, é possível colher a informação de que a formação do citado “guarda-chuva” pretende conciliar segurança e certeza em relações de longa duração, com certa flexibilidade para mudanças de rota; isto se obtém com a organização de um quadro de regras e princípios que regulam acordos futuros19.

A ordem jurídica brasileira confere fundamentos mínimos para desenvolvimento deste modelo contratual. Entre nós, tutela-se a atipicidade contratual e, sobretudo após a Lei n. 13.874/2019, confere-se amplitude larga para a liberdade contratual em contratos civis paritários. Por outro lado, parece bastante sedimentada a função econômica da coligação contratual. A despeito disso, o uso de contrato normativos ainda é tímido, limitado ao âmbito trabalhista, o que parece explicar o uso praticamente inexistente de ferramentas que podem ser conduzidas a este modelo, como as convenções coletivas de consumo previstas no art. 107 do Código de Defesa do Consumidor.

Que esta terrível crise possa ser o laboratório definitivo para a implementação desta técnica, cujas soluções poderão ajudar a alcançar consensos necessários para superação deste momento duro.


1 https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-11/oms-declara-que-coronavirus-e-uma-pandemia-global.html

2 https://exame.abril.com.br/mundo/mais-de-um-terco-da-populacao-mundial-esta-em-quarentena-pelo-coronavirus/

3 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/grande-paralisacao-levara-economia-global-a-pior-recessao-desde-29-diz-fmi.shtml

4 ROPPO, Vincenzo. Il contratto. Milano: Giuffré, 2001, p. 526.

5 HUECK, Alfred. Normenverträge. Iherings Iahrbücher für die Dogmatik des bürgerlichen Rechts, 73. Band, Iena, 1923, pp. 33 – 118.

6 Menezes Cordeiro aponta para a existência de forte vinculação entre o contrato normativo e a convenção coletiva de trabalho, concluindo que “os contratos normativos irão produzir efeitos no círculo que tenha a ver com as entidades que os hajam celebrado” e que na “sua interpretação há que ter em conta os vectores apurados para as convenções colectivas de trabalho” (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de Direito Civil. Direito das Obrigações: Contratos. Negócios Unilaterais. Lisboa: Almedina, p. 204)

7 RUSSEL, Oliver Soro. Los contratos como fuente de normas: contratos marco, contratos normativos y contratos de colaboración. Madrid: Reus, 2014, p. 39.

8 GATSI, Jean. Le contrat-cadre. Paris: LGDJ, 1996, p. 219.

9 Para estudo amplo sobre a distinção entre as duas figuras: GUIMARÃES, Maria Raquel de Almeida Graça Silva. O contrato-quadro no âmbito da utilização de meios de pagamento electrónicos. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 70-97.

10 GATSI, Jean. Le contrat-cadre. Paris: LGDJ, 1996, p. 112.

11 Sobre o tema, confira-se: CHARBONNEL, Lionel. La hiérarchie des normes conventionnelles. Contribution à l'analyse normativiste du contrat. Fondation Varenne, Collection des théses, n. 60, 2012.

12 CANE, Peter. Self-regulation and judicial review. Civil Justice Quarterly. Londres, ano V, v. 6, 1987, p. 324.

13 BLACK, Julia. Constitutionalising self-regulation. The Modern Law Review. Londres, v. 59, n. 1, 1996, p. 24.

14 MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Almedina, 1997, p. 54.

15 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Distinção sistemática e autonomia epistemológica do direito civil contemporâneo em face da constituição e dos direitos fundamentais. 682 f. 2017. (Tese) Livre-Docência – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017, p. 130.

16 https://oglobo.globo.com/economia/lojistas-nao-pagarao-aluguel-enquanto-shoppings-estiverem-fechados-24323677

17 https://www.oabrj.org.br/arquivos/files/O_Pacto_Global_-_assinado_(27.04.2016).pdf

18 A circunstância não é desconhecida na doutrina sobre o tema: LEONARDO, Rodrigo Xavier. LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados. In: BRANDELLI, Leonardo. Estudos em homenagem à Professora Véra Maria Jacob de Fradera. Porto Alegre : Lejus, 2013, p .13; MARINO, Francisco. Contratos coligados no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 108.

19 MOUZAS, Stefano. Negotiating umbrella agreements. Negotiation Journal, 22, jul-2006, p. 280.

Autores

  • é doutorando em Direito Civil (USP), mestre em Direito (UFBA), professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito, membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil e do Instituto de Direito Privado.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!