Opinião

O Direito em quarentena nas medidas de prevenção contra a Covid-19

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23 de abril de 2020, 9h37

“Para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar”.

Albert Camus

Naquele tempo, “era extremamente rápida a velocidade de contágio, o período de incubação era curto e o número de pessoas acometidas pela moléstia, muito elevado, como também o grau de letalidade. Os sintomas eram variados” 1. O que também se via, “era que os diferentes sintomas da moléstia levaram a opinião médica a dividir-se quanto à forma de tratamento a adotar, fragmentando o discurso da comunidade médica” 2. A pandemia avançava, de modo que, “rapidamente, a cidade se viu vacilar à beira de um colapso. O Correio da Manhã, na sexta feira do dia 17 de janeiro de 1919, trazia a notícia que consternara o povo brasileiro da morte do Presidente Eleito Rodrigues Alves, vitimado pela endemia e o Jornal do Commercio, de 22 de janeiro, anunciava que em Portugal a gripe pneumônica grassa violenta e as autoridades sanitárias tomaram enérgicas providências para impedir o desenvolvimento da epidemia3 Faltavam alimentos, remédios, médicos, hospitais que recolhessem os doentes mais graves” 4. Sem dúvidas, “era necessário emoldurar a doença para torná-la compreensível e emocionalmente mais tolerável”.

A narrativa poderia muito bem se referir ao cenário mundial nos primeiros meses de 2020. Ou mesmo a um artigo escrito no futuro, contando às gerações vindouras sobre a pandemia do denominado corona vírus. Mas, na verdade, são trechos de um texto sobre a gripe espanhola de 1918. E, neste entremeio de “dejà-vu” da humanidade com uma mutação de velocidade ímpar, quase “viral”, de seus costumes sociais, o direito segue como paciente ansioso por novos princípios e procedimentos capazes de lidar com a ponderação de valores do imprevisível.

Não há dúvidas de que a pandemia do Covid-19 mesclou ingredientes aptos a ensejar um verdadeiro caos social e institucional: a necessidade repentina de mudança de hábitos sociais arraigados de convivência, a ausência de elementos normativos pré-estabelecidos e a promessa de letalidade, chegaram sem avisar também à comunidade jurídica, a qual assistiu, em poucas semanas, uma alteração completa de paradigmas concernentes à maneira com que os operadores do direito se relacionam com a sociedade, e ao próprio modus operandi do Poder Judiciário.

O isolamento social, nunca experimentado por nós, trouxe com ele uma transformação profunda na forma de relacionamento, a desenvolver mecanismos capazes de superar a distância e proporcionar, na medida do possível, o atendimento de necessidades essenciais, notadamente no que concerne o respeito aos princípios constitucionais da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Em verdade, o panorama atual da pandemia do Covid-19, por si só, já enseja uma situação excepcional e sem precedentes a ser lidada. E, nesse contexto, os atos normativos que regem as fórmulas legais do processo, assim como as medidas de urgência a serem aplicadas e determinadas pelo intérprete do direito, se revestem de contornos não usuais.

A polêmica acerca do alcance das medidas emergenciais, e da necessidade de diálogo social e participação dos atores sociais afetos às relações de trabalho segundo sua natureza dispare originalmente desigual- permeia com maior intensidade o cotidiano do direito do trabalho. Isto porque as ditas relações, já sobremaneira flexibilizadas em suas garantias por meio da denominada reforma trabalhista de 2017, recebe duplo impacto da pandemia, já que, ao mesmo tempo em que envolvem, para a continuidade, a “quebra” do isolamento social, possibilitando ao empregado maior exposição à contaminação, também sofrem o primeiro impacto econômico visível e prenunciador da grave crise instalada, com o corte de despesas não raro calcado em grandes dispensas anunciadas. Em paralelo, a decisão acerca da continuidade das atividades laborais esbarra na sensível questão de seu papel na coletividade, mormente quando se tratam de atividades consideradas essenciais. Aqui, uma obrigação desmesurada que obste a realização de determinada atividade, sob um suposto fundamento de medida preventiva, pode ter impactos de grande vulto no meio social já desmesuradamente atingido pelas feridas do estado de calamidade instaurado.Tais efeitos, que poderiam ser denominados de “distúrbios sociais e políticos” 5 geram uma desordem que pode resultar em uma “situação criadora, uma vez que torna visível os problemas, tensões e insatisfações latentes no mundo social, podendo ser também fonte de mudanças”, estimulando o surgimento de “novos comportamentos tanto políticos como sociais” 6.

Há um sem numero de soluções possíveis, dentro de um quadro de análise jurídica combinatória que é inédito e, ao fim e ao cabo, que tem se apresentado positivo em seus resultados diários.

É necessário, contudo, certa dose de parcimônia, como aqui já se mencionou, e embasamento normativo linear. Mais até do que nos casos difíceis afetos ao direito da saúde que refogem à situação da pandemia do Covid-19, o prejuízo gerado pela falta de previsibilidade e insegurança da população – já afetada por situação que gera de per se temor e ansiedade pode chegar a níveis exponenciais equiparáveis à crise biológica já existente. Erros de cálculo acerca da falseabilidade e dos resultados gerados por medidas impostas sem seguir parâmetros mínimos de linearidade e objetividade não podem ocorrer.

Contudo, os resultados positivos da criatividade jurídica consciente já forneceram respostas rápidas para a orientação da utilização de meios consensuais, nessas situações em que o direito posto não apresenta solução pronta. Por outro lado, a atividade jurisdicional, atualmente exercida sob a forma de smartworking, não pode se limitar, apenas e tão-somente, a decidir questões urgentes. A continuidade da prestação jurisdicional se impõe seja retomada e, conta com os meios disponibilizados pela tecnologia da informação, mediante a utilização das plataformas de teleconferência com a retomada das audiências e dos julgamentos tele presenciais, como estabeleceu o Tribunal Superior do Trabalho, nos atos conjuntos TST.GP.GVP.CGJT nº 170 e CSJT.GP.GVP.CGJT nº 5, ambos de 17 de abril de 2020.

Estas e outras reflexões são aprofundadas por meio do artigo aqui apresentado, por meio da análise dos normativos existentes em âmbito nacional, e no mundo. Longe de propor uma solução definitiva a esses novos e super hard cases, o estudo realizado remete ao que a experiência de dejà-vu do início do século já demonstrou: a capacidade de estabelecer negociações em torno da definição da doença, em situações que eram sempre complexas, com “o acordo sobre a definição da doença pode prover bases para mediar compromissos ou padrões de ações administrativas”7 deve ser sempre priorizado. E, se já tem sido constatado que o diálogo social é o remédio natural para lidar com o paradoxo da coexistência do isolamento social, manutenção dos postos de trabalho, e a continuidade das atividades econômicas8, o remédio de pacificação social funciona como antídoto eficaz para curar as nossas mazelas e angústias jurídicas atuais. Boa leitura!

Esse texto é uma versão reduzida.
Clique aqui para ler a íntegra do artigo.


1 GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist. cienc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 101-142, Apr. 2005. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100006&lng=en&nrm=iso>.access on 15 Apr. 2020. https://doi.org/10.1590/S0104-59702005000100006.

2 Idem.

3In – hemeroteca digital brasileira

4 Ibidem.

5Utiliza tal expressão como efeito das endemias EVANS, Richard. Epidemics and revolution: cholera in nineteenth century Europe. 1992 In Terence Ranger e Paul Slack (orgs.). Epidemics and ideas. Cambridge, Cambridge University Press. Apud GOULART, Adriana. Op. cit.

6 GOULART, Adriana. Op. cit.

7 Idem.

8Extraído de assertiva de um advogado trabalhista francês, conforme matéria veiculada no Jornal Le Monde de 08/04/2020. Trad. Livre do original: “ Les négociations sociales sont le liant naturel pour mettre en œuvre l’injonction paradoxale qui nous est faite: rester chez soi, mais sans que l’activité économique ne s’arrête”. DUBERTRAND, Miriam. Pendant l’épidémie due au coronavirus, le dialogue social continue. https://www.lemonde.fr/emploi/article/2020/04/08/pendant-le-covid-19-le-dialogue-social-continue_6035933_1698637.html. Acesso em 10/04/20.

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