Opinião

Estado deve indenizar empresas por prejuízos causados pela Covid-19

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4 de abril de 2020, 19h27

Nas atuais circunstâncias, de isolamento social e profunda alteração da rotina dos cidadãos; sem qualquer pista do seu tempo de duração e dos reflexos que se colherão na saúde, educação e economia; é quase natural questionar como a civilização chegou a esse ponto.

Provavelmente, sociólogos e historiadores divergirão sobre os elementos que definem uma Sociedade, mas não deveria haver dúvida sobre um traço comum em todas elas, que consiste na divisão de tarefas. Nas sociedades mais primitivas e de subsistência, eram algumas pessoas cuidando dos filhos que permitiam que outros saíssem para caçar. Com o tempo, passando pelo escambo e com o desenvolvimento da moeda e do comércio, as tarefas foram se sofisticando e viabilizando a revolução industrial, científica, sanitária, tecnológica, etc., lapidando paulatinamente a sociedade como a conhecemos modernamente. Nesse momento de crise, portanto, não podemos nos esquecer de que, tudo o que conquistamos, como civilização, em maior ou menor grau, é fruto de trocas, da atividade econômica e do comércio.

De outro lado, pode ser valioso resgatarmos quais eras as aflições da sociedade brasileira até poucas semanas atrás. Sem prejuízo de outros tantos problemas que nos afetam, nenhum cidadão honesto negará que já há alguns anos é generalizada a reclamação sobre os níveis de educação, especialmente dos mais jovens, sobre as condições do nosso sistema de saúde, e sobre a estagnação econômica, que causa desemprego e empobrecimento, especialmente das classes menos favorecidas e dos cidadãos mais vulneráveis, acentuando a odiosa desigualdade social que infelizmente nos distingue. Ademais, também não há como negar que vem se acentuando, nos últimos anos, o discurso “politicamente correto”, que não raras vezes dificulta o enfrentamento objetivo de alguns problemas econômicos e sociais.

Eis que, em dezembro de 2019, surge o Covid-19, alastrando-se em pouco tempo pela maioria dos países do globo. A preocupação dos especialistas médicos, das pessoas e dos governos, quanto ao Covid-19, não pode ser minimizada, ainda mais em um mundo com crescente densidade demográfica e cada vez mais globalizado, fértil para a disseminação do vírus.

Assim é que, entre nós e antes mesmo de o Covid-19 chegar ao Brasil, (i) o Sr. Presidente Jair Bolsonaro promulgou o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde em 23/05/2005 (Decreto nº 10.212, de 30/01/2020); (ii) em seguida foi promulgada a Lei 13.979, de 06/02/2020, dispondo sobre medidas que poderiam ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Covid-19, dentre as quais o “isolamento”, consistente na separação de pessoas doentes ou contaminadas, e a “quarentena”, consistente na restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação, inclusive por iniciativa dos gestores locais de saúde, e com a condição de que sejam autorizados pelo Ministério da Saúde, sejam limitadas no tempo e espaço ao mínimo indispensável à promoção e preservação da saúde pública, e resguardem o exercício e funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais; e (iii) em 03/02/2020, foi editada a Portaria nº 188 pelo Ministério da Saúde, declarando a Emergência em Saúde Pública.

A Covid-19 finalmente desembarcou no Brasil em 25/02/2020, em paciente vindo da Itália (último dia do Carnaval, que, diga-se de passagem, ocorreu sem restrições), e, no dia 11/03/2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de Covid-19.

Diante desse novo cenário, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 356 no próprio dia 11/03/2020, determinando o isolamento de pessoas sintomáticas, pelo prazo de até 14 dias, prorrogáveis por igual período. Entretanto, contrariando a diretriz estabelecida pelo Governo Federal, começaram a se proliferar normas de âmbito Estadual e Municipal limitando a circulação das pessoas e algumas atividades econômicas. Valem ser mencionados os Decretos editados pelo governador do Estado de São Paulo, Sr. João Dória, primeiro suspendendo aulas e eventos com público superior a 500 pessoas (Decreto 64.862, de 13.03.2020), depois determinando a implantação de home office aos servidores idosos, gestantes e portadores de doenças que os enquadrassem no grupo de risco, pelo período de 30 dias (Decreto 64.864, de 16/03/2020), culminando com o fechamento de parques estaduais até 30/04/2020 (Decreto 64.879, de 20/03/2020) e estabelecimentos comerciais, incluindo-se bares, restaurantes, casas noturnas, shopping centers e academias, até 07/04/2020 (Decreto 64.881, de 22/03/2020). No mesmo período, o Prefeito de São Paulo, Sr. Bruno Covas, também editou o Decreto 59.283, de 16/03/2020, determinando o fechamento do comércio por 16 dias, a partir do dia 20/março; e muitos outros governadores e prefeitos adotaram medidas semelhantes em seus respectivos Estados e Municípios.

As medidas de isolamento social acima mencionadas carreguem consigo uma louvável tentativa de preservar vidas e certamente relacionam-se à decisão “politicamente correta” mais fácil e popular de defender. No entanto, as incontáveis opiniões médicas que têm se proliferado, colocando em dúvida a necessidade e efetividade do isolamento social, aliadas às consequências obviamente nefastas que ele traz a outros interesses sociais igualmente relevantes, provocam algumas reflexões.

Em primeiro lugar, é interessante observar que alguns estudos científicos apontam que cerca de 11% a 24% da população global (entre 700 milhões e 1,7 bilhão) tenha contraído o novo vírus da gripe suína, tendo a OMS estimado o número de mortes em 200 mil pessoas (no Brasil, apenas em 2009, mais de 53 mil casos confirmados, com mais de 2 mil mortes, indicando uma taxa de letalidade de 3,9%, que continuam a ocorrer, com 839 casos em 2018). Por outro lado, entre nós, o trânsito causa anualmente milhares de mortes, que apenas em 2019 passaram de 40 mil. Entretanto, nem em 2009 se instituiu isolamento social, nem se cogita eliminar o transporte por conta das mortes que causa. Obviamente, ainda não se sabe (e, dependendo das medidas que ainda sejam tomadas, talvez nunca saibamos) se a Covid-19 será mais letal que o vírus H1N1 e o trânsito, se o isolamento social ora adotado é necessário, ou proporcional ao dano que pretende prevenir, ou se é uma medida exagerada em vista dos custos sociais resultantes. Porém, esses dados servem para evidenciar que nem sempre, diante de uma situação de risco à vida, o Estado estabelece proibições; na maioria das vezes busca-se um equilíbrio entre todos os interesses sociais, ponderando-se os riscos aceitáveis e criando-se regulação normativa das atividades.

Em segundo lugar, pelo que se ouve e lê no noticiário, ninguém consegue afirmar qual a parcela da população que já foi afetada (notadamente porque os testes tem sido realizados apenas nos pacientes em estado grave), e muitos epidemiologistas têm manifestado que, ao tempo das referidas medidas, o vírus já teria se propagado largamente entre a população e a maioria das pessoas sequer teria sofrido sintomas. Além disso, tem se propagado entre os especialistas a convicção de que o isolamento social temporário apenas retardaria o contágio do vírus, do qual todos uma hora serão infectados, e que, quando do seu relaxamento, poderia ocorrer uma segunda onda de disseminação ainda mais intensa. Todos esses pontos, em alguma análise, colocam em dúvida a própria efetividade das medidas que têm sido adotadas.

Em terceiro lugar, é certo que ainda não existe notícia de uma vacina e os resultados obtidos com as drogas utilizadas para tratamentos da Covid-19 são muito iniciais. Por outro lado, alguns epidemiologistas têm se manifestado no sentido de que o Covid-19 apresenta taxas de transmissão maiores em temperaturas inferiores a 20ºC. Assim, considerando que o inverno no Brasil compreende de 20 de junho a 22 de setembro, durante o qual faria sentido manter o isolamento em razão da maior taxa de propagação do vírus, seria razoável questionar se a antecipação do isolamento não ampliaria seu período de duração, impondo a paralisação da economia por tempo além do necessário.

Em quarto lugar, chama atenção que, diferentemente do que parece propor o governo federal, no sentido de separar pessoas doentes ou contaminadas, ou mesmo da ideia de preservar o grupo de risco (pessoas idosas, asmáticas, com doenças do coração e diabéticos); ao determinar o fechamento do comércio, os governos estaduais e municipais preferiram eleger um ramo da atividade econômica (que inclui pessoas fora do grupo de risco) ao mesmo tempo em que mantêm em atividade pessoas do grupo de risco, como se observa no setor industrial, da construção civil, de serviços essenciais, transportes, saúde, etc. Visto de outra forma, é interessante notar que se trata de uma decisão que (a) não preserva de forma direta as pessoas mais vulneráveis que atuam nas atividades não paralisadas e (b) elege apenas um segmento da economia para arcar com os custos relacionados ao enfrentamento do Covid-19.

Essa reflexão não tem a menor pretensão de responder a qualquer dessas questões, para as quais parece ainda não haver consenso nem na comunidade médica. Pelo contrário, elas servem apenas para sublinhar que as medidas adotadas pelo Estado refletem puramente uma opção de gestão pública, que elege uma parcela da Sociedade para tentar adiar a disseminação da Covid-19, ganhando tempo para criar uma estrutura mínima (com a construção de leitos e aquisição de respiradores) que consiga atender a todos os infectados, reduzindo sua letalidade.

Sob outra perspectiva, o fechamento dos estabelecimentos comerciais e o possível lockdown já cogitado por algumas autoridades, consistem na forma encontrada pelo Estado para incrementar o sistema de saúde que já sofria reclamações antes da pandemia, para cumprir com seu dever constitucional de prover saúde adequada a todos (artigo 196 da Constituição Federal).

Ocorre que, para resolver esse problema urgente de responsabilidade do Estado, o custo foi alocado a apenas uma parcela da iniciativa privada, que será duramente penalizada. Estudos mostram que 90% dos pequenos e médios negócios brasileiros tem, em média, recursos disponíveis para enfrentar apenas 27 dias de paralisação, o que significa que, diante do fechamento do comércio, a muitos deles faltará caixa para fazer frente às suas obrigações, com risco de demissões e/ou encerramento das atividades. Em contrapartida, até o momento, não foi divulgada nenhuma medida efetiva que recomponha o prejuízo que as empresas enfrentarão; em suma maioria, o governo federal tem agido apenas de forma a facilitar a obtenção de crédito, ou a postergar vencimentos de algumas obrigações, basicamente onerando as empresas e trabalhadores afetados.

Nesse ponto, vale lembrar que o artigo 6º, da Constituição Federal, coloca em pé de igualdade os seguintes direitos sociais: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”, que foram colocados absolutamente em segundo plano com a priorização da saúde. Da mesma forma, as mencionadas restrições parecem colidir com os direitos fundamentais de livre locomoção e de propriedade (artigo 5º, incisos XV e XXII, da Constituição Federal), bem como com o direito de livre iniciativa esculpido no artigo 170 do mesmo diploma, que também prestigia a propriedade privada e a busca do pleno emprego.

Evidentemente, as decisões que as autoridades devem tomar, ponderando riscos à saúde e à economia, não são fáceis, especialmente porque, pendendo a um lado ou ao outro, afetam profundamente a vida e o emprego de milhões de pessoas; tampouco e infelizmente podem se submeter meramente ao discurso “politicamente correto” ou se sujeitar a disputas meramente políticas, como tem se observado, sob pena de não alcançar o melhor equilíbrio aos interesses sociais.

Seja ela qual for, o que deve restar claro é que não poderá transferir uma responsabilidade do Estado a apenas uma parcela da sociedade; e os prejuízos que causará não se resumirão apenas a renegociação de contratos em razão de um fato extraordinário, da excessiva onerosidade, ou da imprevisão. Tal como ocorre quando o Estado interfere na propriedade privada por meio de uma desapropriação e deve indenizar, ao interferir na atividade econômica de forma tão drástica, ele também responderá pelos danos que forem causados.

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