Diário de Classe

Sombras à democracia: autoritarismo e constitucionalismo abusivo

Autor

  • Tatiane Alves Macedo

    é procuradora municipal mestre em Direito pela PUC-GO doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) professora da Unifimes e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

1 de setembro de 2018, 8h03

No romance Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago, um dos personagens célebres, o comissário, decide deixar de obedecer às ordens emitidas pelos seus superiores. Quando lhe perguntam por que o faz, respondeu que era em razão de uma frase que leu em um livro, que dizia: “Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar em que nos perguntemos: Quem assinou isto por mim”1.

É sobre escolhas políticas que pretendemos falar neste texto. Apesar de a Constituição Federal vigente prever inúmeros instrumentos de participação direta do cidadão na vida política do Estado, para nós, na prática, isso tem se limitado “a tirar um governo de que não se gosta e a pôr outro de que talvez venha a gostar”2. Então, mais uma vez, somos convocados a escolher um novo governo. Nesse contexto, é possível que surjam propostas que, aparentemente democráticas, podem esconder práticas tendentes a enfraquecer a democracia, como um regime constitucional abusivo ou autoritário.

A ideia de constitucionalismo abusivo foi cunhada por David Landau3, que define essa forma de constitucionalismo como o uso de institutos de origem democrática para ceifar o espaço do pluralismo num determinado país. O objetivo do autor é mostrar que mecanismos formais de mudança constitucional podem minar a democracia.

Tushnet4 adota o rótulo de “constitucionalismo abusivo” para aqueles regimes que não devem ser considerados como políticas constitucionais adequadas, na medida em que simplesmente usam um conjunto de ferramentas de reforma constitucional para burlar repetidamente as normas superiores que limitam o poder.

Exemplos de constitucionalismo abusivo vêm de diferentes partes do mundo, mas a América Latina parece ser, para ambos os autores, um local-chave para o seu desenvolvimento.

De fato, na maioria dos países da América Latina, a ditadura militar esteve presente em algum ponto nos anos 1960 e 1970. Embora em alguns casos os ditadores militares possam buscar a legitimação legal de suas ações, os golpes militares são geralmente feitos em desafio óbvio à ordem constitucional existente5. Vale relembrar as palavras que consolidaram o processo retomada da democracia: “Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade (…)”6.

Contudo, os golpes militares deixaram de ser um método comum de supressão da ordem democrática. Atualmente é crescente a instituição de regimes autoritários ou semiautoritários por meio do uso de ferramentas constitucionais. Presidentes autoritários e partidos poderosos podem promover mudanças constitucionais de forma a torná-los muito difíceis de substituir e a impedir ameaças de instituições fortes para fiscalizar o exercício do poder7.

Com efeito, alterações constitucionais escusas vêm sido utilizadas como instrumentos de servidão da vontade de poder (Wille zur Macht), possibilitando verdadeiros golpes institucionais por meio de artifícios questionáveis. Com isso, a própria vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) — para humildemente acompanhar Hesse8 — acaba enfraquecida diante de atos que se travestem de democráticos, mas que, ao cabo, se já não são discutíveis em sua origem, levam ao final a uma forma de governo contrária aos seus fins constitucionais.

Em momentos de sérios problemas políticos, econômicos e sociais, associado a um contexto de desilusão política e descrença nos membros dos poderes Legislativo e Executivo, não é difícil que um governo autoritário seja eleito e promova substanciais modificações na constituição, construindo um um regime que à distância pode parecer democrático, mas, de perto, acabam por limitar a ordem democrática, especialmente ao longo de sua dimensão mais importante: a proteção de direitos para grupos sem poder.

Nas últimas décadas, vive-se no Brasil um cenário de distanciamento entre a classe política e o povo, ficando cada vez mais latente o sentimento de descrença popular nos agentes políticos. Alguns fatores são apontados pela doutrina como causas e consequências deste fenômeno denominado de crise de representação ou crise do legislativo9, como a falta de fidelidade à ideologia eleitoral, o jogo de interesses pessoais dos parlamentares, a excessiva influência dos setores econômicos na eleição de representantes políticos10, fatos que levam o cidadão a buscar alternativas em relação à política tradicional.

A busca por mudança é legitima, mas o preço não pode ser a ameaça ao regime democrático instaurado em 1988. Precisamos fortalecer os instrumentos de participação democrática previsto no regime constitucional, pois eleger representantes não pode continuar sendo o único instrumento de participação do cidadão na vida política do Estado efetivamente utilizado.

Propostas de governo tendentes a enfraquecer o campo eleitoral e a proteção dos direitos individuais e dos grupos minoritários podem levar ao constitucionalismo abusivo, minando os próprios objetivos democráticos. Precisamos analisar com responsabilidade as propostas apresentadas, no sentido de proteger a democracia, um regime democrático que possibilite a instituição de mecanismos de controle da atividade dos agentes públicos e abertura de novos canais de participação do cidadão nas decisões políticas.

É imperioso refletir sobre um aspecto fundamental do debate: o povo. É em torno deste povo que o debate busca se legitimar11, e a soberania (ou respeito) à vontade popular como elemento-chave na construção político-normativa.

Voltando a Saramago: "Uivemos, disse o cão". Os cães somos nós. É hora de começar a uivar.


1 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
2 SARAMAGO, José. Discurso durante o Fórum Social Mundial. Porto Alegre, jan. 2005, p. 9.
3 LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC Davis Law Review, Estados Unidos, v. 47, n. 1, p. 189-260, nov. 2013.
4 TUSHNET, Mark. Authoritit constitutionalism. Cornell Law Review, v. 393, p. 451-452, 2015.
5 LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC Davis Law Review, Estados Unidos, v. 47, n. 1, p. 189-260, nov. 2013.
6 GUIMARÃES, Ulisses. Discurso durante cerimônia de promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988.
7 LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC Davis Law Review, Estados Unidos, v. 47, n. 1, p. 189-260, nov. 2013, p. 191.
8 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. 1. ed. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFe, 1991, p. 21.
9 Nesse sentido, veja-se a pesquisa realizada pelo Latinobarómetro, a qual mostra que na América Latina o povo brasileiro é um dos mais descrentes em relação à representatividade parlamentar, compreendida hoje como instrumento de autolegislação. LATINOBARÓMETRO. Informe 2017. Disponível em: <http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp>. Acesso em: 10 abr. 2018.
10 PEREIRA, RODOLFO VIANA. Direito Constitucional Democrático: Controle e Participação como Elementos Fundantes e Garantidores da Constitucionalidade. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010, pp. 120-127.
11 BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Crise do Estado, Constituição e Democracia Política: a “realização” da ordem constitucional! E o povo… In: COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; PEPE, Albano Marcos Bastos (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2006, p. 93.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-GO, doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professora da Unifimes e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Rede para Constitucionalismo Democrático Latino-americano.

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