Tribunal do Júri

O enfrentamento dos modelos de prova nos debates em plenário

Autores

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

20 de maio de 2023, 8h00

Um julgamento perante o Tribunal do Júri é sempre sedutor. Plateia normalmente cheia, ainda que não se trate de fato midiático. Nessa ambiência, ao lado dos interessados no caso (familiares do réu e da vítima), se alocam também estudantes de Direito e curiosos em geral. A espera, em regra, é dirigida ao momento dos debates, em que as partes desenvolvem seus raciocínios argumentativos e técnicas de oratória.

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Contudo, é possível identificar a sensível mudança no comportamento de todos que atuam no plenário, em especial, do corpo de jurados, diante da evolução social para o enfrentamento dos temas que tangenciam ou fazem parte do próprio conteúdo do caso penal.

Da apreciação do discurso romantizado, a atenção ao aspecto probatório — inclusive digital — ganha proeminência nas tomadas de decisão. Consequentemente, sustentações em que a retórica exercia supremacia ao debate probatório estão cada vez mais descontextualizadas. Claro que as sustentações em plenário, frequentemente, ainda abarcam graus de emoções intrínsecas aos crimes dolosos contra a vida. Mas o tribuno tem de refletir, cada vez mais, que o contexto probatório ganha espaço ao aspecto retórico de qualquer julgamento. E isso não seria diferente no júri.

Perpassando por essa significativa mudança, e levando em consideração as peculiaridades do procedimento do júri, três pontos se destacam: 1º) um procedimento bifásico; 2º) o tempo destinado às partes para apresentação de suas teses; 3º) a participação popular na tomada de decisões. Para a construção do presente artigo, daremos ênfase ao segundo ponto a partir dos modelos teóricos de prova [1] submetidos aos debates em plenário.

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Um ponto de destaque aos debates ocorre pelo tempo destinado às partes nos aportes fáticos-probatórios, jurídicos e metajurídicos, que forjam a possibilidade de maior análise sobre as diferenças entre os modelos de esquematização do enfretamento da prova pela acusação e, em especial, pela defesa.

Preceitua o artigo 476 do CPP que, encerrada a instrução probatória, será concedida às partes o momento de apresentação dos seus argumentos por período de uma hora e meia ou, na hipótese de mais de um acusado, duas horas e meia, sem contar com a réplica e tréplica. Eis o cerne da questão a ser enfrentada. Seguimos pelo foco exclusivamente probatório neste ato processual (não como direito probatório, mas como são formados e instruídos os resultados extraídos dos elementos de prova), deixando os limites normativos do próprio debate (artigos 478 e 479, CPP) e judiciais (ADPF 779, por exemplo) para outro momento.

A abordagem, nos textos que seguem na coluna, diz respeito à forma — "a arrumação" — como os elementos de prova devem ser apresentados nos debates orais em plenário para que surtam efeitos na valoração da prova pelo Conselho de Sentença. Apresentaremos, de forma não exauriente [2], os modelos teóricos de provas (um esboço de esquematização) e a necessidade de seguirmos além de uma lógica informal, que muito se assemelha ao enfrentamento retórico de apresentação e valoração da prova.

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Neste primeiro artigo, seguiremos pelo modelo argumentativo da prova penal e o seu destaque quanto ao esquema de apresentação pelas partes ao juiz natural. A importância de toda essa temática ocorre como produção de organização das informações extraídas pelos elementos de prova, na medida em que a originalidade cognitiva dos jurados podem(ria) ensejar real desorientação dos resultados (probatórios).

Para além dos vários conceitos de argumento, para o nosso contexto fático-probatório, deve-se observar que a relevância da análise diz respeito à responsabilidade de cada parte em formar uma estrutura argumentativa durante o confronto, objetivando o convencimento do seu auditório (no caso do júri, os jurados). Por isso, a argumentação eficaz é a que consegue aumentar a intensidade da adesão da pretensão do interlocutor à conclusão [3].

Cada etapa da argumentação fática possuirá, em regra, um substrato probatório subjacente, não havendo apenas a consideração "como um todo" (um conjunto probatório), e sim baseado pela análise dos vários elementos de forma individualizados no caso concreto, o que caracteriza esse modelo como "atomístico" [4]. Resulta, portanto, na caracterização individual dos elementos de prova e condiciona críticas tópicas sobre seus valores. Disso deriva a necessidade de eleger e de indicar a força probatória de cada elemento de prova a partir dos argumentos de exposição e refutação (tema que já enfrentamos nesta coluna).

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Certo é que a função teórica da argumentação diz respeito à justificação daquilo que se propõe, na medida em que o sucesso da pretensão ocorrerá quando sua estrutura estiver devidamente justificada para o alcance dos seus fins.

Por outro lado, qualquer argumento em termos práticos possui a função precípua de persuadir o seu público específico, objetivando a formação do convencimento sobre a exposição da tese exposta. Esse é o papel — desafiador — das partes na apresentação de seus argumentos em qualquer ambiência da vida cotidiana e, claro, no Tribunal do Júri.

Da mesma forma, não há como ignorar o processo de raciocínio argumentativo para a formação da prova e a produção de seus efeitos, mormente porque qualquer substrato cognitivo do processo — e a decisão dos jurados faz parte integrante desse conjunto — só terá um valor condigno com o saber através da atividade controversa para que haja afastamento de uma lógica informal e/ou retórica, objetivando ingressar em sua própria coerência jurídica [5].

Esse modelo "arranjo" argumentativo da prova em muito se destaca nos debates perante o julgamento pelo tribunal do júri, em que as partes conseguem aprimorar a forma de exposição de todos os elementos, justamente pelo tempo destinado pelo procedimento, aliado, ainda à originalidade cognitiva dos jurados.

O que denota importante na linha do estudo sobre a argumentação, em sentido genérico, ou mesmo no contexto afirmativo sobre os fatos, é que o processo de argumentação será reconhecido como processo de justificação [6], porquanto o caminho trilhado a partir de elementos de prova sobre fatos imputados, e sua refutação, desemborcará na formação da consequência jurídica pelo Conselho de Sentença [7].

Neste ponto, torna-se visível que, para além do modelo narrativo (tema que ainda discutiremos), o modelo argumentativo alicerça todo esse momento de debate, na medida em que a responsabilidade das partes deve ser conferida através do diálogo intraprocessual. A principal característica desse modelo está na necessária interação entre um argumento com todos os outros argumentos (argumentos e contra-argumentos) expostos neste ato em que se caracteriza e maximiza a dialética processual [8].

Logo, a questão jurídico-processual a ser enfrentada diz respeito à formação de um nexo necessário entre a estrutura argumentativa e os elementos de provas que são produzidas, em especial, na instrução em plenário, por isso, fomentamos, ao máximo, a produção de provas em plenário (veja o artigo em que abordamos a questão). Dessas explanações, decorre uma ilação lógica: no plenário do júri, não subsiste espaço para apresentação de uma visão romântica alicerçada em uma sustentação vazia.

Consequentemente, a formação dialógica do debate em plenário dependerá, também, dessa referência, em que as partes possuirão função primordial no estabelecimento dessa concepção, na medida em que os esquemas de argumentação virão sempre com um conjunto de alegações e questões críticas a serem enfrentadas pelo Conselho de Sentença.

Pode-se indicar, portanto, que o elenco de argumentos trazidos nos debates estabelece uma importante função de modelagem do estado das provas que deve ser construída pelas partes, afastando o entendimento simplório de que o rol de informações seria a base exclusiva para a direção do conjunto de provas [9] e a formação da decisão penal.

Destaca-se que, os argumentos realizados pelas partes não configuram, em regra, uma simples afirmação ou negação de um ato ou de uma estrutura normativa destituída de referência fática-probatória. A consolidação da lógica argumentativa deverá estar arraigada de necessária justificação dos atos realizados e fatos afirmados pelos elementos de prova constantes, o que acabado sendo mais visível no julgamento perante o júri, em virtude do tempo destinado à exposição oral das partes (lembramos que no procedimento comum cada parte processual possui, no máximo, trinta minutos — artigo 403, caput, CPP [10]). Essa será a formação do conteúdo do modelo argumentativo sobre a contextualização da prova penal no plenário do júri.

Mas, para que esse modelo argumentativo seja efetivado, para além do storytelling, necessário ilustrá-lo com um esquema de apresentação, o que faremos no artigo da próxima semana.

 


[1] Para a reflexão adota-se como referência a modelos que "implicam a construção de uma teoria ou de um esboço hipotético relativamente a uma determinada esquematização". PEREIRA, Rui Soares. Modelos de Prova. In Prova Penal Teórica e Prática. Coord. Paulo de Sousa Mendes e Rui Soares Pereira. Coimbra: Almedina, 2019, p. 49.

[2] Analisamos essa questão com mais profundidade em SAMPAIO, Denis. A Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório. 1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2022. no capítulo III

[3] PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação. A nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.50.

[4] TWINING, William. Lawyers’ Stories. In Rethinking Evidence. Exploratory Essays. 2ª. ed. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 309. PEREIRA, Rui Soares. Evidence models and proof of causation. In Law, Probability and Risck. n. 12, 2013, p. 233, nrp. 17.

[5] "As sentenças não resultam de proposições verdadeiras retiradas de um silogismo, mas em respostas mais aceitáveis, adaptadas e integradas numa argumentação." CALHEIROS, Maria Clara. A construção retórica do processo penal. In Que Futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coord. Màrio Ferreira Monte et al. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 367/368.

[6] MacCORMICK, Neil. A argumentação jurídica e teoria do direito. Trad. Waldéa Barcellos. Martins Fontes: São Paulo, 2006. p. 19.

[7] BEX, Floris J. e VERHEIJ, Bart. Legal Stories and the Processo f Proof. In Artificial Intelligence and Law 21(3), p.254.

[8] PRAKKEN, Henry. Analysing reasoning about evidence with formal models of argumentation. In Law, Probability and Risck. n. 3, 2004, p. 38.

[9] Nessa linha, criticando a autonomia das fontes de prova, indica Stein que o valor probatório somente estará identificado quando houver a argumentação sobre as fontes de prova, ou seja, o peso e a credibilidade de um elemento de prova não se constitui apenas pela fonte, mas pelos argumentos expostos em relação ao conteúdo probatório. STEIN, Alex.The Refoundation of Evidence Law. In Canadian Journal of Law and Jurisprudence. vol. IX, nº 2, 1996, p. 308.

[10] Essa é a regra normativa e de aplicação imprescindível ao estabelecimento do princípio acusatório. Contudo, a nossa cultura inquisitória ainda produz certa refração à aplicação da oralidade e estabelece a escrita como prática forense.

Autores

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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