Cinco anos depois, reformas do pacote ‘anticrime’ custam a sair do papel
14 de maio de 2025, 8h49
Passados mais de cinco anos da aprovação da Lei 13.964/2019, o chamado “pacote anticrime”, as principais novidades apresentadas pelo texto não saíram efetivamente do papel. Na avaliação de criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, as mudanças ainda estão em fase de implementação ou são simplesmente ignoradas no cotidiano dos tribunais.
O pacote entrou em vigor em janeiro de 2020, após quase um ano de discussões no Congresso. O resultado final foi uma fusão entre a proposta original, capitaneada pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, e um texto elaborado por uma comissão de juristas coordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Ex-presidente Jair Bolsonaro e ex-ministro da Justiça Sergio Moro no lançamento da lei ‘anticrime’, em 2019
Os advogados consultados pela ConJur observam que o texto de Moro, baseado no discurso de combate à impunidade, deixou um legado de medidas que endureceram a legislação penal e restringiram, em alguns pontos, o exercício do direito de defesa. Algumas delas estão sendo questionadas até hoje em ações no STF.
Ao passar pelo Legislativo, porém, o texto recebeu inovações como a criação do juiz das garantias, a inclusão das audiências de custódia no Código de Processo Penal, a regulamentação da cadeia de custódia das provas e a necessidade de reavaliação das prisões preventivas a cada 90 dias.
O problema, segundo os criminalistas, é que tais novidades estão mais na letra da lei do que na vida real.
“Existem vários pontos da lei que os advogados estão lutando para que se tornem efetivos”, observa César Ramos da Costa, especialista em Ciências Criminais e professor em cursos de pós-graduação. “Ainda não estamos vivenciando, na prática, a ideia legislativa implementada pelo pacote ‘anticrime'”, completa ele.
“O Brasil edita leis sem ter, necessariamente, uma estrutura pronta para colocá-las em prática. A lei traz avanços sem que estejamos preparados para eles. Reformas só florescem onde há cultura institucional comprometida com os direitos individuais”, critica o advogado Fernando Cesar de Oliveira Faria.
Prisões preventivas
Uma reclamação recorrente de advogados é sobre a manutenção e a duração das prisões preventivas. O pacote “anticrime” modificou o artigo 316 do Código de Processo Penal para estabelecer que o juiz deve revisar a necessidade de manutenção da preventiva a cada 90 dias, por meio de decisão fundamentada, sob pena de tornar a prisão ilegal.
Essa regra foi flexibilizada pelo STF em março de 2022. A corte decidiu que a falta dessa reavaliação no prazo de 90 dias não provoca a revogação automática da preventiva. Segundo os advogados, a decisão foi um sinal verde para o descumprimento da norma.
“Como resultado daquela decisão, o Poder Judiciário se fechou um pouco mais para essa revisão nonagesimal. Hoje a gente percebe que está havendo uma relativização muito grande desse prazo”, opina o criminalista Marcos Victor Vasconcelos Paiva.
“O que nós temos visto é um carimbo automático de renovação da prisão a cada 90 dias, com os mesmos fundamentos. Com isso, as pessoas vão ficando três, quatro, cinco anos na preventiva”, afirma Sheyner Ásfora, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).
Juiz das garantias
A criação do juiz das garantias foi freada pelo Supremo logo no nascedouro do pacote “anticrime”. Em janeiro de 2020, assim que a lei entrou em vigor, o ministro Luiz Fux suspendeu a implantação da novidade a pedido de associações de magistrados e de partidos políticos, que defendiam a derrubada da medida.
Foi só em agosto de 2023 que o STF decidiu sobre o assunto. A corte validou e regulou a criação do juiz das garantias e determinou sua implantação em até dois anos. A três meses do fim do prazo, porém, muitos tribunais ainda não aderiram: um estudo da FGV Justiça, publicado em março, apontou que apenas 24% dos Tribunais de Justiça já tinham o juiz das garantias regulamentado e implantado. Entre os Tribunais Regionais Eleitorais, a taxa era de 28%.
“A criação do juiz das garantias foi um avanço gigantesco. Com ele, o Brasil se alinha a importantes Estados da Europa e da América Latina que têm esse instrumento. Nós não temos como garantir que o juiz responsável pelo inquérito policial, aquele que determina prisões e quebras de sigilos, julgará a ação penal sem estar ‘contaminado’ por essa visão. O juiz das garantias é uma forma de enfrentar esse problema”, avalia Fernando Faria.
Questionamentos no STF
Um levantamento da ConJur aponta que pelo menos dez ações contra trechos do pacote “anticrime” chegaram ao Supremo desde 2020. De forma geral, entidades da advocacia questionaram dispositivos de endurecimento penal ou restrição ao direito de defesa.
Pelo menos duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) continuam pendentes de julgamento. Uma delas foi movida pela Abracrim no início de 2020, ainda antes de a lei “anticrime” entrar em vigor, e não foi julgada até o momento. Outra mais recente, de dezembro do ano passado, partiu do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB).
A ADI de autoria da Abracrim questiona três mudanças: a previsão de perdimento de bens decorrentes de crimes (artigo 91-A do Código Penal); regras mais duras para a progressão de regime por crimes hediondos (artigo 112 da Lei de Execução Penal); e a exigência de confissão do crime para assinatura do acordo de não persecução penal (ANPP) — artigo 28-A do Código de Processo Penal.
Já o processo da OAB contesta os trechos da lei que permitem o monitoramento das conversas entre presos e advogados nos parlatórios das penitenciárias de segurança máxima.
Derrotas da advocacia
Algumas inovações da lei já foram analisadas e mantidas pelo Supremo. A mais contestada foi a que autorizou a prisão imediata de condenados pelo Tribunal do Júri. A mudança foi alvo da Abracrim, da OAB e do Ministério Público de Santa Catarina, mas acabou validada pelo Plenário da corte em setembro do ano passado.
Os ministros fixaram, na ocasião, a tese de que “a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.
O Supremo também rejeitou uma ADI da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) que pedia a derrubada de cinco artigos que endureceram a legislação penal. A ação destacou o dispositivo que aumentou de 30 para 40 anos o tempo máximo de penas privativas de liberdade (artigo 75 do Código Penal), além de outros pontos também contestados pela Abracrim e pela OAB.
Nesse caso, porém, o caso sequer chegou a ser julgado no mérito. O relator, ministro Luiz Fux, não conheceu da ação por considerar que a Anadep não tinha legitimidade para propor a ação.
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