Luta inglória

'A sociedade não compreende a missão do criminalista', diz presidente da Abracrim

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8 de abril de 2023, 8h48

De todas as especialidades da advocacia, a criminal é aquela que encara o braço punitivo do Estado e, muitas vezes, enfrenta variados níveis de arbítrio. Além disso, é o ramo que mais tem suas prerrogativas vilipendiadas e o que sofre mais preconceito, até mesmo entre os colegas de profissão.

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Esse cenário desalentador foi traçado pelo advogado Sheyner Asfóra, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim). E ele é irrefutável. Casos de violações às prerrogativas de profissionais que atuam na área criminal não faltam. 

Em 2020, advogados foram agredidos a socos e pontapés na delegacia central da Polícia Civil da Paraíba. Em junho de 2021, o advogado Ismael Santos Schmitt foi abordado e detido de forma abusiva na sede da Cadeia Pública de Porto Alegre simplesmente por estar parado dentro de seu veículo. Os policiais militares o imobilizaram com violência, algemaram-no e quebraram sua carteira da OAB. E, em janeiro deste ano, dois advogados foram agredidos e presos ilegalmente após um deles ter sido acionado por um cliente que havia sido abordado pela polícia. E muitos outros exemplos poderiam ser citados, porque eles não faltam.

"Lidamos com o braço armado do Estado. Servidores responsáveis pela intervenção mais forte do Estado na vida de um cidadão. Muitas vezes, ao buscar coibir o crime, alguns profissionais da segurança pública, do Ministério Público, da magistratura, confundem a pessoa do acusado com o profissional da advocacia", resumiu Asfóra em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.  

Para mitigar o problema, a Abracrim tem promovido campanhas de valorização da advocacia criminal e quer dialogar com todos os atores do sistema de Justiça Criminal, inclusive com aqueles que atuam na formação das polícias.

Na conversa com a ConJur, Asfóra também falou sobre a disformidade da jurisprudência brasileira em alguns temas como reconhecimento de suspeitos e tráfico privilegiado.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista: 

ConJur — Qual o principal problema enfrentado atualmente pela advocacia criminal no Brasil? 
Sheyner Asfóra — A advocacia criminal sofre reiterados ataques e tentativas de criminalização. E a grande dificuldade é exatamente isso. O advogado deve ter tranquilidade para exercer a advocacia de maneira livre e independente. E ele merece o mesmo respeito que os demais atores do nosso sistema de Justiça. Esse é o grande desafio dos nossos tempos.

A Abracrim trabalha para demonstrar para a sociedade a grande contribuição, o grande protagonismo da advocacia criminal para o fortalecimento do Estado de Direito. 

ConJurO senhor acredita que o advogado criminalista ainda é vítima de preconceito por sua atividade profissional? 
Sheyner Asfóra — Infelizmente ainda vivenciamos um preconceito. Avançamos muitas vezes dois passos e retrocedemos três nesse preconceito, nessa tentativa de criminalização. Eu entendo que hoje há um trabalho até maior de conscientização do advogado criminalista, que pouco a pouco, ainda muito aquém do ideal, vai superando essa barreira do preconceito.

ConJurQual o principal papel da Abracrim? O que a associação faz que não pode ser feito por outra entidade, como a OAB, por exemplo? 
Sheyner Asfóra — A OAB desenvolve um trabalho muito sério na defesa das prerrogativas profissionais, mas ela não cuida apenas da advocacia criminal, mas da advocacia ampla, da advocacia como um todo. E o papel da Abracrim é focar nesse profissional que é o advogado criminalista, que é quem mais sofre em suas prerrogativas. 

Também atuamos para conscientizar o próprio advogado criminalista da necessidade de qualificação constante. Pensando nisso, instituímos a nossa Comissão Nacional de Defesa e Valorização da Advocacia Criminal, que é presidida hoje pelo Aury Lopes Júnior, e também instituímos no âmbito da Abracrim a Escola Brasileira da Advocacia Criminal.

A OAB, no sentido lato, protege, defende as prerrogativas da advocacia brasileira; já a Abracrim, de forma complementar, busca aperfeiçoar o exercício da advocacia criminal no Brasil.

ConJur — Por que o advogado criminalista é o que sofre mais violações de suas prerrogativas? 
Sheyner Asfóra — Lidamos com o braço armado do Estado. Servidores responsáveis pela intervenção mais forte do Estado na vida de um cidadão. Muitas vezes, ao buscar coibir o crime, alguns profissionais da segurança pública, do Ministério Público, da magistratura, confundem a pessoa do acusado com o profissional da advocacia. 

E, infelizmente, a gente sofre preconceito até de colegas advogados que militam em outras áreas e perguntam se temos coragem de advogar para esse ou aquele bandido.

Recentemente, a morte de Rui Barbosa completou cem anos, e ele dizia que não há em matéria criminal ninguém indigno de defesa. E é exatamente isso. E o advogado e a advogada criminalista sofrem isso no momento em que se posicionam na defesa de um acusado da prática de um crime. 

E as redes sociais proporcionam amplo espaço para esses ataques. Alguns colegas advogados vão à imprensa para conceder uma entrevista na defesa de determinado acusado e são atacados nas redes sociais. 

No momento em que chega à delegacia, no momento em que está em uma audiência criminal, em todos esses momentos ele é incompreendido. A sociedade não compreende a missão que tem o advogado criminalista.

ConJur — Como o senhor enxerga a discrepância de entendimentos que existe entre as cortes superiores e os TJs em alguns aspectos do Direito Penal? Por exemplo, na questão do tráfico privilegiado…
Sheyner Asfóra — Vivemos no Brasil uma certa insegurança jurídica. Temos entendimentos diferentes de juízes, dos Tribunais de Justiça e das cortes superiores. A questão do tráfico privilegiado, por exemplo, demonstra bem essa discrepância. O advogado pode estar antenado com a jurisprudência para defender o cidadão que está ali acusado, mas a aplicação dessa minorante segue sem uniformidade. O advogado, então, é obrigado a provocar os tribunais superiores para ter a justiça concretizada. É importante lembrar que muitas vezes não é só a absolvição que o advogado criminalista busca, mas, sim, uma pena justa. 

ConJur — Um dos maiores problemas enfrentados pela advocacia criminal no Brasil é o abuso policial. Qual é o caminho para eliminar esse obstáculo? 
Sheyner Asfóra — É preciso haver uma maior conscientização de todos os atores do nosso sistema de Justiça. E existe preconceito, sim, na Justiça, e isso não é de agora. 

O nosso sistema penitenciário é abarrotado de pessoas pobres, de pessoas negras, de pessoas que não têm instrução. A melhor maneira de mitigar essa violência estatal e o preconceito é com informação e conscientização. É isso o que temos buscado com a nossa campanha "Eu Respeito a Advocacia Criminal".

Queremos lançar agora uma segunda fase, que é buscar ampliar o diálogo com servidores da segurança pública, com o Ministério Público, a magistratura e a Defensoria Pública para mostrar a necessidade de que cada ator do nosso sistema de Justiça cumpra bem a sua missão institucional. 

Queremos dialogar com as pessoas que atuam nas academias de polícia, queremos ocupar esse espaço. É importante que a advocacia possa falar das prerrogativas para que as delegacias sejam um espaço mais humanizado e acolha o cidadão. 

E eu não falo só da advocacia, mas de acolher mais o cidadão que praticou o crime. A força estatal para impor a lei é legítima, mas não a tortura. Não podemos mais admitir tortura, não podemos mais admitir o racismo que vem do próprio Estado por meio de policiais agindo de maneira preconceituosa. 

É isso o que temos de combater, e isso não é uma missão só da advocacia, não é só da Abracrim: tem de ser uma missão de todos os atores, de toda a sociedade, da imprensa, para que cada vez mais se tenha um ambiente humanizado, com mais respeito no sentido de buscar controlar a criminalidade.

ConJur — Como o senhor avalia o papel da imprensa na cobertura de julgamentos de grande repercussão no Tribunal do Júri? Ela é capaz de prejudicar o trabalho da advocacia criminal? 
Sheyner Asfóra — A mídia é essencial na divulgação da Justiça Criminal quando leva em consideração o contraditório e a ampla defesa. Mas, muitas vezes, na cobertura de um crime, a imprensa não escuta a defesa, aí entra aquela questão do preconceito, a questão de achar que, diante de um crime tão grave, de um crime "indefensável", o advogado não tem o que falar sobre o fato.

E, muitas vezes, o advogado não está ali necessariamente para pedir a absolvição, mas para garantir uma aplicação correta da lei penal e para que a imprensa não distorça os fatos. Nesses casos do Tribunal do Júri, o advogado advoga nos autos do processo e advoga também fora dos autos, perante a imprensa. Quando a imprensa escuta as duas versões, faz um grande papel.

ConJur — Temos visto muitos julgamentos do Tribunal do Júri anulados por causa de irregularidades diversas, sobretudo em casos midiáticos. Como evitar que isso ocorra? Falta bom senso aos outros atores do júri, como o Ministério Público e o próprio juiz?
Sheyner Asfóra — Eu vejo que a legislação tem de ser observada em todas as fases processuais. O Estado de Direito deve ser respeitado e não se pode, em nome de combater a criminalidade, partir para o vale-tudo. 

Muitas vezes, membros do Ministério Público e magistrados, na ânsia de dar uma resposta à sociedade sobre um crime, passam a atuar de modo inadequado. Querendo punir por punir. É aquela sanha punitivista que ainda está arraigada no nosso sistema criminal. 

É assim que se atropela o formalismo para condenar. E cabe aos tribunais superiores revogar julgamentos em que não se observou o contraditório, a ampla defesa, em que se julgou com provas ilícitas… Isso gera um retrabalho para o Judiciário. Não defendo a impunidade, mas um processo penal justo. E, para se chegar a um processo penal justo, um processo penal democrático, é necessário observar o nosso regramento. Não é a vontade do magistrado, não é a vontade do promotor de Justiça, não é a vontade do delegado, é a vontade da Constituição Federal. 

ConJur — Como acabar com a epidemia de condenações com base na gravidade abstrata do crime?
Sheyner Asfóra — A gravidade abstrata do crime tem sido muito usada para decretar prisões preventivas, mesmo com o Superior Tribunal de Justiça já tendo definido que isso não é requisito para esse tipo de medida.

Essa situação é bem complicada e explica o número enorme de Habeas Corpus que os tribunais superiores têm de julgar. Em um Estado democrático de Direito, no processo penal que buscamos, não se pode ter prisões que claramente correspondem a uma antecipação da pena. 

ConJur — Outro problema recorrente é o reconhecimento irregular de suspeitos. É possível encontrar uma saída para evitar que esse tipo de demanda tenha sempre de chegar ao STJ para que seja garantido o cumprimento da lei?
Sheyner Asfóra — Essa é uma luta de muito tempo. O artigo 226 do Código de Processo Penal diz claramente quais os requisitos, qual o procedimento a ser adotado para esse reconhecimento. Só que muitos magistrados não observavam isso, como não observam até hoje, e se faz o reconhecimento fora da determinação legal. Tanto é que foi necessário, diante de tantos recursos apresentados por criminalistas, que o tema fosse tratado pelo CNJ. 

Recentemente, relatórios coordenados pelo ministro Rogério Schietti (do STJ) definiram os parâmetros sobre como se deve proceder o reconhecimento de suspeitos. Isso também é uma luta, é um desafio de toda a advocacia criminal, e também da sociedade.

Temos muitos erros judiciais comprovados, de reconhecimento irregular de pessoas, que geraram muitas condenações. Quantos estão presos e cumprindo pena por um falso reconhecimento? É preciso haver mais rigor nesse procedimento. E não se pode só com base nisso condenar quem quer que seja. Ainda é muito falho o sistema de reconhecimento de pessoas no Brasil.

ConJur — Qual deve ser o papel do Direito Penal no Estado democrático de Direito? E esse papel tem sido cumprido atualmente no Brasil? 
Sheyner Asfóra — Hoje há um movimento no Brasil que prega que tudo deve ser resolvido pelo Direito Penal. Na verdade, o Direito Penal deve ser reservado para casos graves. É preciso haver um filtro processual desde o inquérito policial. Não são todos os fatos levados à delegacia de polícia que devem ser transformados em inquérito policial, que devem ser transformados em ação penal, em condenação e, depois, gerar recursos. 

Está havendo um excesso na utilização do Direito Penal para a solução dos problemas do nosso país. Hoje os tribunais superiores já não dão conta da demanda de Habeas Corpus, de recursos criminais. 

A gente tem de refletir muito, enquanto atores da Justiça Penal. E, quando digo nós, eu quero dizer delegados, advogados, promotores, juízes e ministros. Todos nós temos de repensar esse formato porque daqui a pouco não teremos mais como julgar toda a demanda. É preciso criar um filtro processual mais rigoroso para termos uma Justiça Criminal mais eficiente.

ConJur — Por que muitos magistrados, na condução da audiência de instrução e julgamento, resistem a obedecer ao artigo 212 do CPP, que diz que as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha? O que é preciso fazer para eliminar esse fenômeno do juiz que cumpre papel de inquisidor?
Sheyner Asfóra — É necessário entender que o magistrado tem de estar equidistante das partes. O magistrado, no processo penal, não é parte. Ele está ali para julgar. Quem produz as provas são o Ministério Público e a defesa.

É preciso que o criminalista esteja sempre atento e não deixe que o magistrado deixe o seu papel de lado. Ele está ali para presidir a audiência, não para ir em busca da prova. Ele não está ali para ir em busca da verdade, ele está ali para saber se aquela tese arguida pelo promotor de Justiça na denúncia será corroborada pelos elementos de prova produzidos na instrução criminal. 

Nós ainda temos resquícios de um sistema inquisitorial, é preciso que o sistema acusatório seja implantado em nosso país de maneira definitiva. Não é que o magistrado não tenha mais função. Ele tem uma função importantíssima, que é julgar com base no que foi produzido pelo Ministério Público, com base no que foi produzido pela defesa. Ele não pode complementar. Se a acusação não foi perfeita, ele não pode complementar a acusação do Ministério Público. Se a defesa, por outro lado, não fez o seu papel, o magistrado também não pode tentar fazer a defesa.

Só juízes independentes, imparciais e equidistantes das partes podem concretizar uma Justiça justa.

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