Metralhadora de ofensas

Humorista Leo Lins é condenado à prisão por discriminar minorias em show de stand-up

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3 de junho de 2025, 17h45

Por constatar que as falas do réu causam constrangimento, humilhação, vergonha, medo e exposição indevida a negros, idosos, portadores do vírus HIV, homossexuais, judeus, indígenas, pessoas com deficiência, nordestinos e pessoas gordas, a 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo condenou o humorista Leo Lins a oito anos e três meses de prisão no regime fechado por discriminação e preconceito em um show de comédia stand-up.

Humorista Leo Lins falando ao microfone

Leo Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão no regime fechado

Lins foi condenado pela prática dos crimes do artigo 20 da Lei do Racismo (praticar e incitar “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”) e do artigo 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (“discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”).

Ele também precisará pagar uma multa equivalente a 1.170 salários mínimos (no valor da época em que o show ocorreu) e indenização de R$ 303,6 mil por danos morais coletivos.

Contexto

A apresentação em questão aconteceu em Curitiba em 2022 e foi disponibilizada no YouTube. A exibição do vídeo foi suspensa no ano seguinte por decisão liminar, após o Ministério Público Federal denunciar o comediante. À época, já contava com mais de três milhões de visualizações.

O órgão alegou que Lins fez comentários “odiosos, preconceituosos e discriminatórios” contra diversos grupos vulneráveis, “reproduzindo discursos e estereótipos que incentivam a perseguição religiosa, a exclusão das minorias e discriminação contra pessoas com deficiência”.

Em sua defesa, o humorista alegou que apenas interpretou um personagem no palco, sem intenção de incitar discriminação ou preconceito. A defesa disse que as piadas “proporcionam um ponto de vista diferente às pessoas, fazendo-as se sentirem incluídas”.

Na ocasião, Lins disse que alguns nordestinos têm “aparência primitiva” e que um deles — visto pelo comediante em um avião — seria apenas “72%” humano.

Ele ridicularizou pessoas gordas e sugeriu que elas “comessem” homossexuais sem camisinha com o objetivo de contrair Aids e emagrecer. Nesse momento, o próprio humorista admitiu que a piada era preconceituosa.

Lins ainda comparou pessoas gordas a aparelhos de musculação e aos robôs da franquia de brinquedos e filmes Transformers.

Em outro momento do show, o comediante ironizou a ideia de que pessoas negras não conseguem arrumar emprego: “Na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim.”

Na sequência, ele disse que a Quarta-Feira de Cinzas deveria ser um feriado para os judeus. Na mesma apresentação, o humorista se referiu ao “índio” como “uma coisa primitiva que não devia mais existir”.

Lins também afirmou que não respeita as testemunhas de Jeová, “imitou” pessoas mudas de forma pejorativa, disse já ter contratado intérprete de Libras “só para ofender surdo-mudo”, caçoou dos movimentos corporais de cadeirantes, simulou atirar pessoas com nanismo no chão e zombou de pessoas com autismo.

Fundamentação

A juíza Barbara de Lima Iseppi lembrou que a Lei 14.532/2023 alterou a Lei do Racismo e passou a prever que qualquer “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” direcionado a pessoas ou grupos minoritários em razão da cor, etnia, religião ou procedência deve ser considerado como uma atitude discriminatória.

Ela viu incitação à discriminação e ao procenceito “em razão de procedência nacional ou regional” nas falas sobre nordestinos, além de “declarações depreciativas e injuriosas” contra idosos, pessoas gordas, portadores do vírus HIV, homossexuais, judeus, evangélicos, indígenas e negros — “inclusive exaltando o período escravagista como época em que negros gozavam de privilégios”.

Todas essas ofensas foram suficientes para enquadrá-lo na Lei do Racismo. Já as falas, os gestos, as imitações e humilhações quanto a pessoas com deficiências auditivas e físicas, com nanismo e autismo justificaram a condenação pelo crime previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Iseppi verificou dolo no conteúdo das falas do comediante, já que ele próprio disse “saber ser preconceituoso” e fez piada de tal fato. “O réu, ao criar as falas de seu show, reflete sobre a real possibilidade de ofender pessoas e, mesmo assim, além de decidir prosseguir com a ‘piada’, demonstrando inclusive descaso com possível reação das vítimas.”

Na visão da magistrada, se Lins não tivesse plena consciência de que promovia discuros discriminatórios, “nada diria a respeito de ser preso, processado, ‘cancelado’”. Ela entendeu que a ação foi “livre e voluntária”.

Ainda segundo a juíza, a tese de que ele não deveria ser punido devido à intenção de causar humor ou diversão — o chamado “animus jocandi” — vem de uma época em que piadas com referências a minorias eram toleradas “sob o fundamento da liberdade ilimitada do humor”.

Mas, atualmente, esse recurso argumentativo é “dissonante da dignidade da pessoa humana” e não pode ser usado como um “Habeas Corpus perpétuo” para a prática de ofensas. Isso já foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (AREsp 2.326.818).

“A sociedade chegou em um ponto de evolução de direitos em que não se pode admitir retrocessos como a prática de crimes sob pretexto de humor”, disse Iseppi. Para ela, as falas do réu “manifestam ideias preconceituosas e discriminatórias que não podem ser toleradas ou normalizadas sob o escudo de ‘humor'”.

A magistrada ainda afirmou que o contexto de “descontração e diversão”, na verdade, é uma causa de aumento para o crime, trazida pela Lei 14.532/2023 com o intuito de punir o chamado “racismo recreativo”.

A norma prevê duas hipóteses qualificadoras do crime de preconceito e discriminação aplicáveis ao caso: o crime foi cometido por intermédio da internet e no contexto de atividades artísticas e culturais.

Embora a defesa dissesse que as falas eram parte de um personagem restrito ao ambiente reservado de um show de comédia, a juíza lembrou que o vídeo foi divulgado pelo próprio réu na internet, “cujo alcance é incontrolável”.

De qualquer forma, ela considerou “não se tratar de personagem, mas sim da pessoa, o comediante Leo Lins quem ali está a proferir os discursos”.

Algumas testemunhas alegaram que não se sentiram ofendidas ou discriminadas pelas falas do humorista. Mas Iseppi afirmou que isso não interfere na sua conclusão, pois os crimes em questão não dependem de “um resultado específico ou dano material”. Basta a intenção de discriminar.

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Processo 5003889-93.2024.4.03.6181

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