A fome de quem entrega a sua comida: ideias legislativas para os entregadores
3 de junho de 2025, 8h00
Eles e elas estão presentes em todas as vias, nas cidades brasileiras. Personagens do possível normal, durante a pandemia asseguraram a alimentação no trabalho remoto. Hoje, continuam conectando a força de trabalho nacional com a sua fonte.
A relação entre trabalho, alimentação e saúde dos trabalhadores plataformizados revela um padrão estrutural de precarização ainda negligenciado por políticas públicas e instrumentos legislativos. À medida que o trabalho plataformizado cresce, especialmente no setor de entregas de alimentos, surgem evidências consistentes de um ciclo de vulnerabilidades: longas jornadas, ausência de direitos trabalhistas e condições adversas que resultam em insegurança alimentar e deterioração da saúde. Os impactos da má alimentação à saúde, ,das condições ecológicas nos centros urbanos são já conhecidos pelo trabalho de pesquisa desenvolvido por universidades brasileiras, como por exemplo, no estudo longitudinal sobre saúde cardiovascular do Elsa Brasil, pelo Nupens.
Se precisamos discutir qualidade do gasto em saúde pública, precisamos falar sobre os obstáculos à efetividade do direito à alimentação e mais uma vez, como as políticas públicas de oferta de alimentos, nutrição devem ser incluídas no planejamento de ações para prevenção de doenças.
Pesquisas brasileiras recentes sobre os trabalhadores plataformizados revelam indicadores que expressam não apenas retratos fragmentados do cotidiano, mas um quadro sistêmico que exige análise crítica e urgente formulação de respostas regulatórias. O estudo conduzido por Birchal (2024) expõe as dinâmicas sociais dos trabalhadores plataformizados em torno da precariedade, assédio, jornadas sem interrupções, riscos nas suas jornadas laborativas.
Por sua vez, Entregas da Fome (2024) é o relatório de pesquisa dedicado aos marcadores de insegurança alimentar domiciliar em trabalhadores de aplicativos de entrega de comida nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro que apresenta números alarmantes. A figura de linguagem exposta no título não poderia ser mais pungente: paradoxalmente, os que entregam alimentação diariamente atravessam a insegurança alimentar em suas próprias rotinas. Com base em 1.700 entrevistas nas capitais São Paulo e Rio de Janeiro, a pesquisa revela que 68% das famílias dos entregadores estavam em insegurança alimentar (SA) e 13,5% em insegurança alimentar moderada ou grave (Iamg).
Outra pesquisa recente, publicada em 2023, intitulada Plataformas digitais de entrega de alimentação: condições de trabalho e riscos para a saúde, desnuda outros meandros desse cenário. Por meio de entrevistas temáticas, os pesquisadores identificaram a precarização da saúde física e mental dos entregadores, acentuada por condições de trabalho que negam o direito básico a uma alimentação digna. Entre relatos de entregadores, como “almoçar não almoça porque não tem tempo, come um lanche, um cachorro, um xis” e “eu pego um potinho em casa e trago, como enquanto espero o pedido”, está a denúncia não apenas da qualidade da alimentação desses trabalhadores, mas também a ausência de pausas, mesas e refeitórios. O comer na calçada, sem a convivialidade que afasta o isolamento e seus males faz um combo com a pressa de um direito à água no fim da jornada.

A pesquisa também evidencia outra prática comum no segmento. O corpo, para suportar a dinâmica das entregas, passa a depender de bebidas estimulantes, elevando riscos metabólicos e cardiovasculares. Mais do que uma questão individual, trata-se de um problema coletivo, estruturado, que remete ao desequilíbrio entre remuneração e tempo adequado.
Mais recentemente, o Dossiê das violações dos direitos humanos no trabalho uberizado (Unicamp, 2024), entrevistou motofretistas de Campinas para avaliação das condições gerais de trabalho. A alimentação, na análise, aparece como elemento central do desgaste orgânico e emocional: quase metade dos entrevistados relatou pular refeições; 38% não tomavam sequer um litro de água por dia, mesmo sob calor intenso, roupas pesadas e jornadas longas. Quando perguntados, muitos entregadores confessaram limitar a ingesta hídrica por medo de não encontrar banheiros disponíveis.
Há, nesse dado, uma denúncia sutil, mas poderosa: a eliminação de uma infraestrutura física mínima para o trabalho. Como sintetiza o relatório, a deterioração da saúde desses trabalhadores não é apenas a soma de fatores de risco, mas um processo articulado de desgaste físico, mental e social, que captura suas forças vitais, seus reflexos, suas atenções, suas memórias — elementos exigidos para a vida no trânsito em condições de segurança.
Os trabalhadores que movem as engrenagens de uma economia de consumo acelerado, que garantem eficiência e agilidade para as relações de consumo, mas que são excluídos dos bens materiais mais elementares desse sistema. Não é apenas a falta de tempo para comer ou a renda insuficiente para comprar alimentos nutritivos: trata-se de uma precarização integrada, que abarca alimentação, descanso, saúde física, saúde mental e segurança no trânsito.
No Informe de 2025 da Oficina Internacional do Trabalho, foram reunidas contribuições de governos, empregadores e representantes dos trabalhadores sobre as condições laborais na economia de plataformas. Entre os temas debatidos, destacou-se a questão do acesso a instalações sanitárias e água potável para trabalhadores de aplicativos, considerando as especificidades do trabalho móvel e exposto. Enquanto os governos, em sua maioria — incluindo o brasileiro —, reconheceram a necessidade de garantir infraestrutura mínima proporcional à quantidade de trabalhadores por área, os representantes dos trabalhadores defenderam que tais garantias fossem obrigatórias, por envolverem riscos diretos à saúde e à segurança no trabalho.
Já os empregadores manifestaram oposição unânime, argumentando que o provimento dessas condições não deveria ser responsabilidade das plataformas, mas sim do Estado, por se tratar de uma meta global de desenvolvimento sustentável, e não de uma obrigação setorial.
Essa divergência explicita um impasse estrutural. Ainda que trabalhadores protestem sistematicamente por melhores condições — como evidenciam os sucessivos breques de apps —, o campo institucional segue marcado pela omissão patronal e pela lentidão regulatória. O resultado é a manutenção de um cotidiano de trabalho em que nem mesmo necessidades fisiológicas básicas são asseguradas. A persistência desse quadro revela não apenas uma lacuna normativa, mas uma negligência estrutural diante da dignidade de quem sustenta, com o próprio corpo, os fluxos cotidianos da economia digital.
Se queremos pensar reformas — como aponta a coluna Fábrica de Leis —, precisamos mirar além da superfície e reconstruir as condições materiais que permitam a esses trabalhadores existirem enquanto sujeitos de direitos trabalhistas. A primeira reforma talvez seja a do olhar: enxergar, nomear e enfrentar as ausências que o direito implementa em relação a um contingente que pode ser estimado em cerca de meio milhão de trabalhadores [1].
A ausência de qualquer regulamentação trabalhista ou previdenciária que reconheça, proteja ou ampare esses trabalhadores (marginais nas redes formais de proteção jurídica) vulnerabiliza parte vital da cadeia de consumo urbano.
As balizas para concretização do rol das políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), previsto na Lei nº 11.346/2006 — Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) —, são apenas o ponto de partida para um enfrentamento efetivo do problema. A aplicação dessas políticas à realidade dos trabalhadores de aplicativo exige sua implementação em chave distributiva e protetiva, reconhecendo a alimentação como direito inegociável vinculado ao patamar civilizatório mínimo no trabalho. Mais do que ampliar a cobertura de programas sociais, trata-se de reconstruir os alicerces da proteção trabalhista em contextos de plataformização.
Diversos projetos de lei, atualmente em tramitação, são tímidos e fragmentários. O Projeto de Lei Complementar nº 12/2024, apresentado pelo governo federal, ignora a existência do vínculo de emprego e restringe-se aos motoristas de veículos de quatro rodas, excluindo a categoria dos entregadores e replicando um modelo regulatório limitado, que desconsidera a diversidade do trabalho plataformizado. Ainda que iniciativas como o Projeto de Lei nº 1.579/2025, de autoria da deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), proponham significativos avanços pontuais — como a oferta de vale-refeição pelas empresas de aplicativo —, elas permanecem aquém das necessidades materiais e estruturais atinentes aos direitos trabalhistas em termos mais amplos, a começar pela omissão em relação ao reconhecimento do vínculo de emprego, aos derivados intervalos remunerados para refeição.
Relevância do julgamento do RE 1.446.336
Nesse sentido, são urgentes releituras institucionais que ultrapassem o marco da omissão legislativa. O julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.446.336 pelo Supremo Tribunal Federal, que definirá o enquadramento jurídico-laboral dos trabalhadores de plataformas digitais, torna-se uma inflexão estatal decisiva sobre a matéria. O Estado terá nesse momento a oportunidade — e a responsabilidade — de redefinir o lugar desses trabalhadores no sistema jurídico brasileiro, abrindo caminho para enquadramentos que reforcem o acesso a direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição da República.
Além disso, é fundamental que se abandone a lógica de benefícios voluntários e se avance na afirmação de direitos fundamentais impositivos. Intervalos obrigatórios para refeições, acesso à alimentação adequada, durante a jornada, a cobertura compulsória das plataformas digitais pelo Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) devem ser garantidos por norma jurídica vinculante. No caso dos entregadores, o simples reconhecimento do vínculo de emprego não é suficiente se a questão alimentar for deixada a cargo de programas como o PAT, cuja adesão patronal é atualmente facultativa e cujos parâmetros não foram concebidos para o tipo de trabalho móvel, fragmentado e intermitente que caracteriza o setor de entregas por aplicativo.
Quaisquer que sejam, contudo, os caminhos adotados no âmbito da definição legislativa, é imprescindível recordar as possibilidades do consensualismo que permitiria uma visão realista e transversal sobre os efeitos da falta de cuidado com quem cuida da alimentação de outros trabalhadores. O debate adequado deve considerar o princípio do diálogo social, conforme orienta a Convenção nº 144 da OIT, ratificada pelo Brasil, sobre Consultas Tripartites para a Aplicação de Normas Internacionais do Trabalho.
A experiência brasileira recente, contudo, tem revelado a inoperância desse princípio no processo de reformulação de leis trabalhistas. A reforma trabalhista de 2017, exemplo recente de maior alcance, foi conduzida sem consulta efetiva às entidades representativas de trabalhadores e empregadores, atraindo críticas nos âmbitos doméstico e internacional [2]. Tais omissões não constituem apenas vícios procedimentais, mas revelam um déficit democrático na elaboração de normas que incidem diretamente sobre as relações de trabalho. A construção de uma regulação legítima e procedimentalmente válida exige, nos termos da previsão convencional, a participação efetiva das representações sindicais e coletivos autônomos de entregadores nas etapas de formulação, implementação e fiscalização de normas.
Superar a insegurança alimentar dos trabalhadores plataformizados não é apenas uma questão de reconstrução do próprio pacto civilizatório que sustenta o direito do trabalho, mas de saúde pública em termos mais amplos. A alimentação precisa ser reconhecida como o que de fato é: condição da existência, suposto para o trabalho e expressão elementar de justiça social.
[1] De acordo com a Pnad, em 2022 havia 1,5 milhão de trabalhadores em aplicativos de serviços como transporte de passageiros ou entrega de comida. Do total, 589 mil eram trabalhadores de aplicativos de entrega de comida ou produtos
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