Trabalho Contemporâneo

Revolução digital e a alteração de tudo no 'tesarac' trabalhista

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12 de dezembro de 2023, 8h00

Conheci o termo assistindo a uma entrevista do publicitário e especialista em inovação e transformação digital Walter Longo (@wlongo), que, de forma muito feliz, utiliza a expressão para resumir o sentimento que vivemos quanto à galopante alteração de tudo em função da revolução digital.

“Tesarac” significa basicamente a percepção de que o passado já foi, o presente está totalmente desconstruído e ainda não sabemos como construir o futuro. Serve para vários campos da experiência humana.

De dramas pessoais, como o que acometeu o autor do neologismo, Shel Silverstein, acerca da perda primeiro da esposa e depois da filha, à confusão que vivemos pela rápida inserção da inteligência artificial em todos os campos da vida, passando pela reorganização das instituições e da própria sociedade.

Sabemos a causa, percebemos a destruição do mundo conhecido e ignoramos as soluções. Assim se encontra, também, a área trabalhista.

Como nada acontece isoladamente, e o fenômeno do trabalho necessariamente está ligado ao ser humano, tudo que afeta o comportamento em sociedade vai abalar as estruturas trabalhistas, daí possuirmos nosso próprio “tesarac”.

As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal quanto à natureza jurídica do vínculo mantido por trabalhadores de plataformas digitais revelam exatamente o que estamos sentindo em termos de proteção trabalhista: o antigo não serve mais, o presente não existe e não sabemos o que fazer para o futuro.

O ápice do STF até aqui, amanhã tudo pode mudar, foi a decisão da 1ª Turma que, por unanimidade, concluiu não haver vínculo de emprego entre um motorista e a empresa “Cabify”, fixando não existir a subordinação jurídica típica da relação de emprego e, de quebra, mencionando que o mesmo se daria para outras plataformas digitais, como as das empresas “Uber” e “Ifood”.

O estranhamento, sejamos sinceros, não se deu tanto pelo mérito da decisão que, como escrevi em diversas colunas anteriores, já se antevia, até porque sempre entendi não haver mesmo a subordinação prevista na legislação brasileira (artigos 3º e 6º, parágrafo único da CLT) e, sejamos mais sinceros ainda, subordinação algorítmica simplesmente não existe em nosso ordenamento jurídico.

A perplexidade se dá, por um lado, pelo fato de finalmente estar chegando ao fim o desgastado debate sobre o tema, com um resultado que não agrada à maioria dos atores trabalhistas, retirando a proteção sonhada, a sempre mesma fórmula da CLT.

De outra parte, o caminhar das coisas (e dos recados de alguns ministros do Supremo) leva à percepção de que não adianta mais insistir no vínculo de emprego, finalmente escancarando as portas da área trabalhista para novas legislações a novas formas de trabalhar. Nada mais óbvio, certo? Em nossas bandas, não.

O “establishment” trabalhista, aqui entendido pela ordem ideológica, política e legal que sempre dominou nossa área, jamais quis aceitar o novo e, sob uma narrativa de não reduzir a proteção ao trabalhador hipossuficiente, acarretou o atraso de cerca de no mínimo uma década para a construção de um novo modelo de direitos trabalhistas.

Essa elite, composta por todas as facetas de quem atua sobre o fenômeno do trabalho humano, da teoria à pratica nos tribunais, sob uma retórica progressista produz o avanço do atraso, anulando, de forma violenta, qualquer um que pense diferente. Eu sou testemunha. E vítima.

A vontade de manter o modelo que tanto interessa impediu a razão de ser do próprio Direito do Trabalho, garantir direitos mínimos para a sobrevivência digna do trabalhador, propiciando o implemento do valor social do trabalho e o desenvolvimento econômico para o bem estar de todos, através da livre iniciativa e da liberdade econômica.

E como a tentativa de segurar à força as mudanças do mundo do trabalho precisavam de um fator coercitivo, naturalmente a questão seria travada dentro do Poder Judiciário, que se viu por quase uma década em um verdadeiro jogo de torcidas, pró e contra vínculo, com placar conforme cada caso ia sendo julgado até chegar ao Tribunal Superior do Trabalho.

Não contava a elite trabalhista, entretanto, com o “VAR” do Supremo Tribunal Federal, que inovou a forma de julgar as reclamações constitucionais para atingir o fim que agora se delineia para o campeonato: a CLT foi rebaixada.

E coerção por coerção, ainda sobrou para a magistratura do Trabalho, que ao julgar conforme seu entendimento, pode agora sofrer algum tipo de punição administrativa, pois após julgar o caso acima mencionado, a 1ª Turma do STF encaminhou ofício ao CNJ para providências diante das reiteradas decisões que não observam os precedentes da corte.

Em breve termos mais um capítulo dessa história, pois novo recurso será apreciado, agora pelo Plenário do STF, envolvendo o trabalho por aplicativos com a empresa Rappi, imaginando-se, na banca de apostas, que novamente o vínculo de emprego será afastado.

O que precisamos extrair de todo esse emaranhado de “tesaracs” é simples, e daí o presente artigo.

Primeiro, não se pode criar punições administrativas a magistrados pela forma como julgam. Caso contrário, a magistratura se enfraquece e o próximo passo será a criação de crime por julgamento equivocado.

Segundo, não se trata do fim do Direito do Trabalho, mas a maior possibilidade de sua renovação desde a criação da CLT. Está na hora de, além da proteção típica do vínculo de emprego, evoluirmos para um novo modelo que possa se adaptar às novas formas de trabalho humano, que a rigor nem sabemos quais serão.

Podemos não entender exatamente o que precisamos construir, mas perceber que o passado não responde mais ao presente permite a chegada do futuro. Precisamos parar de, artificialmente, querer emoldurar todas as formas de trabalho no quadro celetista, há muito mais por vir e necessitamos de nos preparar.

Se adotarmos a ideia de que a cada nova forma de trabalho que surgir iremos ficar uma década debatendo no Poder Judiciário se há ou não vínculo de emprego, simplesmente não conseguiremos construir a tempo a proteção ao trabalhador, pois quando a discussão acabar provavelmente também já haverá mudado a forma de se trabalhar.

A inteligência artificial, segundo o já citado Walter Longo, dobra de capacidade a cada 3,8 meses. Simplesmente não dá para esperar. Ao invés de ficarmos debatendo teorias e inventando subordinações, em breve chegaremos na “espiritual”, devemos sair do pedestal e abraçar o mundo real.

Nunca foi tão verdadeira a frase que aprendi no primeiro período da faculdade de Direito, atribuída a Georges Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.

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