Opinião

O capitalismo de plataforma pôs fim à subordinação?

Autor

  • Ilan Fonseca de Souza

    é doutor em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) especialista em Processo Civil e procurador do Trabalho.

28 de dezembro de 2023, 15h16

Este artigo tem a finalidade de refletir sobre argumentos que defendem que a morfologia do trabalho inaugurada pelo capitalismo de plataforma estaria pondo um fim à subordinação jurídica enquanto elemento típico da relação de emprego. Em outras palavras, tem a função de perquirir se profecias doutrinárias de mitigação da subordinação e de maior igualdade nas relações de trabalho têm sido verificadas nas formas de trabalho associadas a plataformas digitais como Uber, Rappi ou Ifood.

Para iniciar tal reflexão, em primeiro lugar, é preciso observar se as últimas décadas de acompanhamento do sistema capitalista têm testemunhado um maior equilíbrio de poderes entre os agentes sociais. No nosso sentir, ao contrário, o poder se intensifica e, com isso, a precarização do trabalhador é muito mais acentuada nas relações trabalhistas, em especial no Brasil. Sindicatos de trabalhadores perderam importantes fontes de financiamento, foram desmoralizados politicamente e sofreram grandes impactos decorrentes da reforma trabalhista, ao passo que empresas proprietárias de plataformas digitais assumiram a liderança econômica e tecnológica nos últimos tempos.

Acreditar que o trabalhador tem gozado de mais autonomia e, como consequência, que surgem novas formas de contratação inseridas em zonas cinzentas da legislação pode ser parte do problema hermenêutico das cortes judiciais e de espaços acadêmicos que têm o dever de interpretar tais fenômenos.

O direito do trabalho sempre atendeu a uma lógica binária entre autonomia e subordinação, e isso tem uma razão de ser. A subordinação é um elemento tão singular e poderoso, do ponto de vista da legitimação da sujeição do obreiro, que, quando constatada a sua presença, tudo aquilo que não é relação de emprego pode ser descartado da apreciação desse ramo do direito.

Sempre atento ao princípio da primazia da realidade e, ainda, ao princípio protetivo, o direito do trabalho surge para realizar, a priori, essa especificação subordinativa e, também, para transformar a realidade a partir do momento em que os direitos do trabalhador são reconhecidos. A razão de ser do direito do trabalho não é apenas assegurar o funcionamento da dinâmica capitalista, mas sim conferir direitos humanos a todos aqueles que trabalham.

Se a propriedade dos meios de produção confere efetivos poderes aos empregadores, é o direito do trabalho que confere aos trabalhadores prerrogativas, por meio da atuação do Estado, nas esferas executiva, legislativa e judicial.

Assim, toda leitura que se faça de fenômenos contemporâneas, sem o necessário filtro do princípio da proteção, mostra-se enviesada ou comprometida com interesses estranhos a tal ramo do direito.

A relação de emprego é uma relação social intrinsecamente conflituosa. Os interesses dos sujeitos envolvidos são antagônicos e podem levar à mútua destruição — econômica ou mesmo física — se não forem regulados. Os casos difíceis — hard cases — com que se deparam os tribunais são a pedra de toque do Poder Judiciário, daí porque estudar os elementos da relação de emprego e sua presença, nos casos concretos que são apresentados através de reclamações trabalhistas, faz parte do cotidiano dos operadores do direito do trabalho.

Pessoalidade, onerosidade, subordinação, não eventualidade são o abecedário que todo e qualquer estudante neófito da disciplina sabe reproduzir. Dentre esses, sobreleva a subordinação. A subordinação é algo que pode ser percebido a olhos vistos pelos trabalhadores, mas quem julga se há subordinação ou se as narrativas empresariais têm sustentação no mundo dos fatos é sempre um terceiro (magistrado), de forma que é preciso se valer de conceitos e de métodos hermenêuticos formulados pela doutrina, e consolidados pela jurisprudência, com base em critérios com relativa tecnicidade, para tal finalidade. Assim, a interpretação e a formulação do conceito de subordinação constituem uma construção do conhecimento jurídico em um formato relativamente científico.

As aparências e formas da subordinação são, necessariamente, mutáveis, por serem também construtos culturais. A lei, a jurisprudência e a doutrina sempre ajudaram nesta tarefa e também foram obrigadas a se adaptar às realidades dos novos tempos. Como a ciência se move por paradigmas e modelos que são superados, também o direito se move pela força de narrativas que se mostram vencedoras ou derrotadas.

A subordinação teve — e ainda tem — contornos que se apresentam como vitoriosos no sentido de impor sua modelagem jurídica a relações sociais concretas. Alguns dos seus parâmetros nunca foram abandonados. Pilares analíticos como a hierarquia, supervisão, poder disciplinar e poder regulamentar têm resistido ao longo de décadas como categorias válidas para que se entenda a subordinação em seu sentido mais amplo.

No entanto, o capitalismo do século 21, no contexto da uberização do trabalho, promove um cerco a todos os conceitos e categorias jurídicas que dialogam com a proteção dos trabalhadores, apresentando como fatos consumados: a superação de elementos caracterizadores da relação de emprego e do poder diretivo; e a reconfiguração dos eixos que constituem a autonomia laboral. Somente resta aos operadores do direito do trabalho retomarem essa discussão.

O capitalismo de plataforma sequestra a subjetividade de seus empregados, impõe a precificação como regra salarial, consagra o direito civil como baliza hermenêutica, alarga o poder diretivo regulamentar, intensifica a dependência econômica dos trabalhadores, estimula o conflito com consumidores e demais concorrentes digitais e torna a precarização uma deliberada estratégia de gestão. O que sobra, depois disso tudo, é uma discussão restrita sobre os contornos da subordinação.

É preciso, no entanto, que o direito do trabalho erga a cabeça e faça uma nova reflexão a fim de analisar, detidamente, todas as características predatórias do trabalho uberizado. A fixação de horário de trabalho, a definição de um local de prestação de serviços, a impossibilidade de recusa a comandos empresariais não são (e nunca foram) características definidoras da subordinação e, consequentemente, da relação de emprego.

Como patrão e empregado não se encontram em uma posição de igualdade de poderes na relação social que se instaura entre eles, toda e qualquer conduta do trabalhador passa por um juízo de conveniência e oportunidade do empregador, seja para referenda-la seja para reprimi-la. É o patrão — e somente ele — quem pode autorizar jornadas de trabalho flexíveis, trabalho externo e níveis aceitáveis de indisciplina. Não é, porém, o tipo de jornada que define um trabalho como autônomo ou subordinado, mas, antes disso, como pressuposto, é o poder empregatício que estabelece todos os parâmetros da prestação de serviços, definindo-a como uma relação de trabalho subordinada.

Neste debate, não estão em jogo as origens ou causas da subordinação do empregado em relação ao seu patrão. A origem desse poder patronal pode ser defendida pela teoria da dependência econômica como sendo aquela que decorre da titularidade dos meios de produção, ou pode ser defendida, de forma mais positivista, pela teoria da subordinação jurídica, como aquela decorrente do contrato de trabalho. O fato, porém, é que essa desigualdade de variadas ordens entre os sujeitos engendra a subordinação, algo que nenhuma dessas teorias contesta.

O avanço tecnológico, ao invés de servir como uma trincheira para que o trabalhador diminua seu ritmo de trabalho e possa gozar de uma vida mais plena, tem servido aos interesses empresariais e somente tem acelerado a precarização do trabalho. A uberização representaria uma radicalização na utilização da tecnologia para o controle dos empregados. A plataformização do trabalho se aproveita não apenas da tecnologia, mas também do fato de que as instituições justrabalhistas encontram-se atônitas ou frouxas.

Fordismo, toyotismo e uberismo são frutos do seu tempo. Os padrões de contratação e gestão da força de trabalho modificam-se, mas mantêm características uniformes e homogêneas, como a sujeição do trabalhador. Em uma sociedade ávida por tecnologia e informação, a dinâmica dos serviços oferecidos por empresas proprietárias de plataformas digitais precisa funcionar com perfeição, algo que somente pode ser obtido através de uma intensa hierarquização do trabalho.

O algoritmo está presente no interior de um aplicativo cuja estrutura é complexa. Como este aplicativo funciona em um aparelho celular ou smartphone, isto significa que são camadas de tecnologia que se sobrepõem para o funcionamento de um serviço que envolve ao menos três agentes: empregador, empregado e consumidor. Mas pesquisas empíricas evidenciam (SOUZA, 2023) que são seres humanos que controlam, desde a configuração do algoritmo — que não é um autômato — até a sua possível reconfiguração para parâmetros mais humanizantes. Assim, todo e qualquer determinismo precisa ser afastado, sendo certo que as mais importantes decisões empresariais não são tomadas por inteligência artificial, mas sim por presidentes de empresas (CEOs) com nomes e endereços.

Veja-se o caso da Uber. Pensada inicialmente como forma de facilitar a vida do consumidor que, anteriormente, para gozar de serviço de transporte individual de passageiros, contava apenas com a oferta de táxis, referida plataforma aliou-se à tecnologia para oferecer um aplicativo que oferece mais informações aos usuários, permite o pagamento através de cartão de crédito e promete menor tempo de espera para o início das corridas. Como toda empresa capitalista, no entanto, o móvel de plataformas digitais é o lucro, de forma que os altos investimentos do capital financeiro foram conjugados com a clássica exploração do trabalho dos seus motoristas. Mas somente tais fatores não foram suficientes para uma disruptura neste setor econômico.

Uma política clara de desafiar a regulamentação estatal — que de muitas formas protegia positivamente motoristas de táxi autônomos — também foi necessária, como ficou evidente através dos “Arquivos Uber” vazados pelo periódico The Guardian (DAVIES et al., 2022). A Uber contratou lobistas que tiveram sucesso em convencer os legisladores de diferentes países de que eles deveriam dar às empresas de transporte privilégios e direitos especiais sobre outras atividades econômicas concorrentes. No entanto, tais governos (ainda) podem ter a correta compreensão do quão exploradoras essas políticas são para os motoristas.

Os principais gestores da companhia também estimulavam agressões mútuas entre motoristas de aplicativo e taxistas, realizavam reuniões extraoficiais com altas autoridades europeias e asiáticas, como forma de regulamentar favoravelmente os interesses da empresa, usavam estratégias tecnológicas, como forma de ocultar dados dos órgãos de fiscalização, custeavam, de forma antiética, estudos acadêmicos para que se fizesse a defesa e se apresentassem as vantagens desse novo modelo de transporte individual de passageiros.

Ainda que tudo isso seja negado pelos presidentes corporativos, ou que a atual direção da companhia afirme que tais fatos não mais fazem parte da cultura empresarial, o que resta é que sempre houve muita indiferença em relação ao interesse público ou, principalmente, ao sofrimento dos motoristas de app. Presente em mais de 70 nações, contando com mais de 3 milhões de motoristas e 110 milhões de usuários, a estratégia global deu certo. Não por acaso, os países que mais sofrem com um desemprego estrutural são aqueles mais lenientes com esse modelo de contratação.

A uberização respondeu aos anseios de um capitalismo, pós crise mundial de 2008, que não mais aceita qualquer formalização na contratação de empregados e que defende, abertamente, um mercado de trabalho absolutamente informal e sem qualquer direito trabalhista. A centralidade de seus negócios, e a principal fonte de extração dos seus lucros, está longe de ser identificada com a tecnologia: a ocultação da relação de emprego em uma escala massiva foi a tônica do sucesso empresarial de plataformas digitais. Mas não foi só o direito do trabalho que precisou ser afastado.

O direito do consumidor, o direito ambiental, o direito administrativo e constitucional e, principalmente, o direito antitruste também foram repelidos. A uberização parece não se sustentar quando enfrenta qualquer freio regulatório ou civilizatório. Todo esse debate tem sido trazido para as esferas estatais e acadêmicas, mas ainda não há uma solução pacificadora de conflitos coletivos, e o respeito à dignidade da pessoa humana dos trabalhadores ainda parece distante.

Enquanto no âmbito jurisprudencial alienígena, as plataformas digitais de trabalho têm sofrido muitos revezes, no plano nacional, contrariamente, elas têm se beneficiado de uma interpretação jurídica que enxerga na interação entre trabalhadores e plataformas uma relação exclusiva do direito civil, ainda que na esfera acadêmica sejam preponderantes os trabalhos que enxergam na uberização do trabalho uma relação de emprego extremamente precarizada.

Essa precarização tem sido descrita em países ocidentais desenvolvidos, mas, particularmente, na América Latina esse quadro é agravado. Vivencia-se um trabalho com jornadas exaustivas, baixos salários, constantes riscos de acidentes e assaltos, prejuízos à saúde dos trabalhadores e, finalmente, uma gestão e comunicação extremamente opressora e pouco democrática: um modelo brutal de relacionamento.

Para resumir, a subordinação é evidente na relação entre plataformas digitais e seus trabalhadores, pois as empresas proprietárias são capazes de ditar termos, incluindo baixos salários e horários de trabalho que incluem até 16 horas de labor por dia. Como resultado, os trabalhadores têm pouco poder para negociar com seu empregador, incrementando tal vulnerabilidade. Esses empregados assumem um trabalho que a maioria das pessoas não seria capaz de fazer e ganham a vida dessa forma, reclamando muito pouco dos desafios cotidianos. Fazem muito em prol do consumidor e da empresa, com o pouco que têm e com muito investimento de tempo e recursos financeiros a que são obrigados a arcar antecipadamente. O prejuízo para suas famílias, para a saúde física e mental, ou para os seus bolsos são evidentes. É preciso coragem para se trabalhar por tantas horas, muitas vezes dormindo nos próprios automóveis (no caso dos motoristas), realizando corridas mesmo quando estão doentes, e desbravando localidades conhecidas por sua criminalidade. Tudo isto sem sequer serem pagos de maneira suficiente para cobrir o custo real de possuir um automóvel.

No capitalismo de plataforma, a subordinação consistiria, assim, no estado de sujeição em que se encontra o trabalhador perante seu empregador, diante do conjunto de fatores que impedem sua autonomia, estado de sujeição este que se encontra materializado na metodologia de trabalho que é necessária para o desempenho da atividade profissional, o que envolve a técnica do ofício, o ritmo de trabalho, o maquinário manuseado, a tecnologia utilizada para gestão ou execução de tarefas, além de condições exógenas, interações humanas, quadro normativo regulador, e, principalmente, a hierarquia, a supervisão e o poder punitivo.

O amálgama de tais condições é que permite a conclusão por um trabalho subordinado. A quase totalidade de tais exigências subordinativas advém de um único fator e agente, que vem a ser o empregador, ainda que condições de trabalho peculiares tornem essas especificidades um fator quase atávico ao desempenho de determinadas atividades.

Referências

DAVIES, H. et al. Uber broke laws, duped police and secretly lobbied governments, leak reveals. The Guardian, 11 jul. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2022/jul/10/uber-files-leak-reveals-global-lobbying-campaign. Acesso em: 9 set. 2022.

SOUZA, Ilan Fonseca. Na pista com a Uber: uma etnografia. Revista Direito e Práxis, 2022.

Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UBC), especialista em Processo Civil pela Faculdade Jorge Amado (Unijorge) e procurador do Trabalho.

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