Papa Francisco, a liderança da resistência cultural (parte 2)
30 de abril de 2025, 8h04
Continuação da parte 1

6. Crime econômico. “Uma das omissões frequentes do direito penal, consequência da seletividade da punição, é a pouca ou nenhuma atenção dada aos crimes dos mais poderosos, em particular o macrocrime das empresas”. O capital financeiro global está na raiz de crimes graves não apenas contra o patrimônio, mas também contra as pessoas e o meio ambiente… é o crime organizado o responsável, entre outras coisas, pelo superendividamento dos Estados e pelo fim dos recursos naturais de nosso planeta”. O exemplo é o caso dos chamados “fundos abutres”, descritos como “crimes contra a humanidade, quando levam à fome, miséria, migração forçada e morte por doenças evitáveis, desastres ambientais e etnocídio de povos indígenas”.
7. Meio ambiente. Ao solicitar a punição de condutas empresariais consideradas como “ecocídio”, ou seja, “poluição maciça do ar, da terra e dos recursos hídricos, destruição em larga escala da flora e da fauna, e qualquer ação capaz de produzir um desastre ecológico ou destruir um ecossistema”, ele considera que “esta é uma quinta categoria de crimes contra a paz, que deve ser reconhecida como tal pela comunidade internacional”, e considera que “esta é uma quinta categoria de crimes contra a paz, que deve ser reconhecida como tal pela comunidade internacional”, está ciente de que ‘a resposta penal ocorre após o crime ter sido cometido, que ela não repara o dano nem evita a repetição e que raramente tem um efeito dissuasivo’. Também é verdade que, devido à sua seletividade estrutural, a função punitiva tende a recair sobre os setores mais vulneráveis. Tampouco ignoro que existe uma corrente punitivista que busca resolver os mais variados problemas sociais por meio do sistema penal”. Com essas palavras, Francisco se distancia daqueles que beiram o dogma pela suposta onipotência do poder punitivo e, além disso — o que não é pouca coisa, aliás —, adverte contra a seletividade criminalizadora, que é ignorada por juristas muito inteligentes.
8. Problemas que se agravaram. Nos anos entre esse discurso e o anterior, Francisco observa que alguns problemas, longe de serem resolvidos, pioraram. O primeiro que lhe chama a atenção é o “uso arbitrário da prisão preventiva”. Ele observa, com relação a essa forma de condenação antecipada: “a situação piorou em vários países e regiões, onde o número de prisioneiros não condenados já excede em muito 50% da população carcerária. Esse fenômeno contribui para a deterioração das condições de detenção e é a causa do uso ilegal das forças policiais e militares para esses fins. A prisão preventiva, quando imposta sem circunstâncias excepcionais ou por um período excessivo, prejudica o princípio de que toda pessoa acusada deve ser tratada como inocente até que um julgamento final determine sua culpa. É bastante claro que essa referência é dirigida especialmente aos países de nossa América, onde, precisamente, a maioria de nossos prisioneiros não é condenada”.
O que preocupava Francisco é uma série de reformas legislativas que buscam garantir que qualquer lesão ou morte infligida pela polícia seja coberta por uma presunção de cumprimento de um dever legal. Sobre essa questão, ele estava claramente ciente dos dados aterrorizantes de alguns países de nossa região. Por exemplo, na Cidade Autônoma de Buenos Aires, a taxa geral de homicídios oscila em torno de 3,50 por 100 mil habitantes por ano e, se subtrairmos as favelas (cerca de 170 mil habitantes), a taxa cai para 2,20, enquanto no Rio de Janeiro chega a 11 por 100 mil habitantes por ano, apenas nas mortes causadas por balas da polícia [1]. Concluiu conclamando a comunidade jurídica a “defender os critérios tradicionais para evitar que a demagogia punitiva degenere em incentivos à violência ou ao uso desproporcional da força.

E. Raúl Zaffaroni, professor emérito da Universidade de Buenos Aires
Esse tipo de comportamento é inaceitável em um estado governado pelo estado de direito e geralmente anda de mãos dadas com o preconceito racista e o desprezo por grupos sociais marginalizados. Esse é um forte argumento contra aqueles que preferem se refugiar no direito penal idealista e no conforto judicial burocrático.
9. A cultura do descarte e do ódio. Francisco estava muito preocupado com um certo reaparecimento de discursos típicos do nazismo, a ponto de, naqueles anos, ter recomendado a leitura da “Síndrome de 1933”, de Siegmund Ginzberg, na qual ele encontrou uma identidade discursiva na condição de que os “judeus” fossem substituídos por “cidadãos não europeus”. É por isso que, nesse discurso, ele diz: “Confesso que, quando ouço um discurso de alguém encarregado da ordem ou do governo, me vêm à mente os discursos de Hitler em 1934 e 1936. Hoje, essas são as ações do nazismo, que, com sua perseguição a judeus, ciganos e pessoas de orientação homossexual, representa o modelo negativo por excelência da cultura do descarte e do ódio. Era assim que se fazia na época, e hoje essas coisas estão sendo revividas. É necessário prestar atenção, tanto na esfera civil quanto na eclesiástica, para evitar qualquer possível — presumivelmente involuntário — compromisso com essas degenerações”.
10. Lawfare. Francisco surpreendeu os juízes em 2019 ao afirmar, com total contundência: “verifica-se regularmente que são feitas acusações falsas contra líderes políticos, em conjunto com a mídia, opositores e órgãos judiciais colonizados. Dessa forma, com os instrumentos do lawfare, instrumentaliza-se a sempre necessária luta contra a corrupção para combater governos indesejáveis, reduzir direitos sociais e promover um sentimento de antipolítica do qual se beneficiam aqueles que aspiram a exercer o poder autoritário”. Sabemos que ele estava perfeitamente informado sobre os casos de Lula, Correa, Castillo, Cristina, Glas, Boudou, Milagro Sala, etc., o que, com certa ironia, o faz escrever o seguinte parágrafo: “E, ao mesmo tempo, é curioso que o recurso aos paraísos fiscais, que servem para ocultar todo tipo de delitos, não seja percebido como uma questão de corrupção e crime organizado. Da mesma forma, os desvios maciços de fundos públicos passam despercebidos ou são minimizados como meros conflitos de interesse”. Talvez a maior ironia seja a frase final do parágrafo: “Convido todos a refletirem sobre isso” [2].
11. Justiça restaurativa. É surpreendente que o papa — talvez não quando o papa é Francisco — conclua afirmando que “certamente devemos avançar em direção a uma justiça penal restaurativa. Em todo crime há uma parte lesada e dois vínculos prejudicados: o do criminoso com sua vítima e com a sociedade. Ressaltei que há uma assimetria entre a punição e o crime e que a execução de um mal não justifica a imposição de outro mal em resposta. Trata-se de justiça para a vítima, não de execução do infrator”. Obviamente, com tal aspiração a uma virada restaurativa, ele não poderia deixar de condenar a pena de morte e a prisão perpétua, fechando até mesmo a última brecha de possibilidade deixada aberta por alguns de seus predecessores.
O discurso termina com frases que parecem evocar algo como “Seja realista, peça o impossível”: “Nossas sociedades são chamadas a avançar em direção a um modelo de justiça baseado no diálogo, no encontro, de modo que, na medida do possível, os vínculos danificados pelo crime sejam restaurados e os danos causados sejam reparados. Não acredito que isso seja uma utopia, mas certamente é um grande desafio. Um desafio que todos nós devemos enfrentar se quisermos lidar com os problemas de nossa convivência civil de maneira racional, pacífica e democrática.

12. Modelos de justiça. Esse último parágrafo é um desafio, embora todos acima também o sejam. Ele nos aponta para nossos pecados mais graves: permanecer com um direito penal especulativo; não incorporar dados da realidade; ignorar o funcionamento adequado do poder punitivo; não esgotar nossos esforços para conter a irracionalidade punitiva; permitir que prisões preventivas sejam distribuídas com total arbitrariedade; admitir reformas que facilitem execuções sem julgamento; normalizar casos claros de “lawfare”; garantir a impunidade de crimes econômicos em larga escala; omitir a punição de ecocídios, considerados crimes contra a paz; Em suma, ressalta que muitas vezes nos escondemos atrás de conhecimentos falsos ou parciais para garantir a impunidade dos excessos do poder financeiro, o que impulsiona o punitivismo populista para neutralizar o risco do crescente acúmulo de materiais descartáveis.
Por que Francisco quer nos mostrar nossos pecados? Por que ele quer nos tirar de nossa longa sesta idealista ou normativista? Por que ele quer que pensemos em um modelo de justiça que funcione melhor, se estamos confortáveis neste? Será que ele não percebe que, se fizermos o que ele quer, seremos linchados pela mídia e por aqueles que distorcem opiniões? É inquestionável que Francisco era uma pessoa irritante! Nem mesmo os juristas foram deixados em paz! Seu título de líder da resistência na “batalha cultural” é merecido.
* tradução: Carolina Cyrillo
[1] Cfr. João Guilherme Leal Loorda, Mandato policial e o uso letal da força: o sistema penal subterrâneo como produção material da raça, in Vera Malaguti Batista (orga.), “Sem polícia”, São Paulo, 2024, p. 61.
[2] Discurso na Cúpula de Juízes Pan-Americanos sobre Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, junho de 2019.
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