Nomeação de juízes por decreto: contra a Constituição, contra a democracia
27 de fevereiro de 2025, 12h18
A nomeação por Javier Milei de dois juízes para a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina por decreto não deixa dúvidas: é uma medida completamente inválida, absolutamente inconstitucional.

É difícil e, devo admitir, incômodo também, argumentar contra certas medidas do governo — neste caso, a pretendida nomeação por decreto de dois juízes para a Suprema Corte — quando o principal interlocutor, ou seja, o governo, está ciente de que o que fez é errado do ponto de vista político, moral e jurídico. De qualquer forma, e para aqueles leitores que, de boa fé, querem pensar sobre o assunto, sugiro aqui brevemente algumas ideias para reflexão e debate.
Em primeiro lugar, vou destacar um princípio interpretativo da Constituição, que para mim é o mais importante e que, pessoalmente, defendo há mais de 30 anos. Faço isso com a convicção de que ele nos permite encerrar a discussão neste momento, mas, ao mesmo tempo, anuncio que todos os argumentos que apresentarei posteriormente são independentes deste (portanto, quem compartilha deste meu “princípio interpretativo principal” pode esperar para ver se os argumentos seguintes o convencerão).
O “princípio interpretativo” que defendo é aquele que a Suprema Corte dos Estados Unidos tem defendido desde 1938 (desde o caso Carolene Products), quando — em um exercício absolutamente excepcional em sua história — meditou (na famosa nota de rodapé nº 4 da sentença) sobre o escopo e os limites de sua própria tarefa.
A Suprema Corte então sustentou, basicamente, que a tarefa da mais alta corte exige que ela seja muito deferente (ou seja, assuma uma atitude de autocontenção) em relação às políticas públicas substantivas estabelecidas por órgãos representativos (ou seja, política ambiental ou de segurança), mas ao mesmo tempo seja muito ativista em relação às decisões políticas que afetam os procedimentos ou as regras do jogo da democracia constitucional. E isso, com uma reviravolta adicional e crucial: a ideia é que a Suprema Corte deve, fundamentalmente, estar preparada para fulminar (ou seja, invalidar, declarar inconstitucional) decisões políticas que afetem as regras do jogo de uma forma que beneficie o próprio governo que as promove.
Isso implica que, em princípio, a Suprema Corte deve considerar com a mais alta suspeita ou presunção de inconstitucionalidade — em termos jurídicos, deve submeter a um escrutínio rigoroso — todas as medidas promovidas pelo governo sobre as regras processuais e destinadas a fortalecer sua posição e/ou dificultar a posição de seus oponentes para controlá-lo ou substituí-lo no futuro. A menos que haja um argumento muito forte em contrário, essas medidas devem ser declaradas inconstitucionais.
Deixo claro que defendo essa posição não porque ela apareceu há muito tempo em uma decisão famosa ou porque a Corte dos EUA “disse isso uma vez”, mas porque me parece ser uma posição absolutamente razoável para ler a Constituição em casos difíceis ou complexos.
Não é preciso dizer que há décadas existe um enorme apoio doutrinário para essa posição na teoria constitucional (desde o procedimentalismo de Carlos Nino ou John Ely até o neoprocedimentalismo que muitos de nós defendemos hoje, ou seja, Stephen Garbaum; Rosalind Dixon; Aileen Kavanagh; etc.) e até mesmo — notavelmente — na teoria política (Jurgen Habermas em sua famosa obra Faticidade e Validade).
De um prisma como o descrito acima — o princípio interpretativo procedimentalista — um caso como o que surgiu na Argentina, com a nomeação de dois juízes para a Corte por decreto, não há a menor dúvida: é uma medida completamente inválida, absolutamente inconstitucional. Estamos lidando, na verdade, com uma medida promovida pelo governo contra as regras do jogo democrático já estabelecidas na Constituição e com o objetivo puro de fortalecer sua própria posição. Fim da discussão.
Em todo caso, e para aqueles que — por boas ou más razões — querem complicar as coisas ou não estão satisfeitos com o que um princípio como o mencionado acima sustenta, vou agora entrar em algumas referências sobre a dogmática argentina, tendo em vista o caso em questão. A esse respeito, há muito a dizer, mas aqui me contentarei em apontar apenas alguns pontos que considero básicos.
Em primeiro lugar, o artigo constitucional que está em questão é o 99 inciso 19 (e vale a pena prestar atenção em cada uma de suas palavras), que afirma que o Poder Executivo “poderá preencher vagas em cargos que exijam o consentimento do Senado, e que ocorram durante seu recesso, por meio de nomeações em comissão que expirarão no final da próxima Legislatura”.
Vejamos as principais ideias do artigo
Em primeiro lugar, a Constituição autoriza nomeações em comissão se as vagas ocorrerem “durante seu recesso” (o do Senado). Isso se baseia em um temor do passado, que hoje é pouco relevante ou inexistente: o de que durante o longo “recesso” que o legislativo tinha no passado (quase meio ano, de dezembro a maio, digamos) ocorressem vagas importantes que afetariam o funcionamento adequado do governo.
Embora não tenhamos esse temor hoje, o que é fundamental é o seguinte: as vagas no caso não ocorreram “durante o recesso” do Senado (a juíza Highton deixou o cargo em 2021), de modo que não estamos em uma situação de “angústia constitucional” gerada nesse (breve) período de recesso (angústia que nos move a preencher as vagas agora, rapidamente, abertas). Pelo contrário, estamos discutindo a questão há meses.
Em outras palavras, não temos uma crise aberta nesses últimos dias, quando o Senado não está “em sessão”. Então, mais uma vez, fim de papo: o risco que a Constituição quis evitar (a paralisação do governo, em razão de uma vacância gerada durante o recesso legislativo de quase meio ano) é hoje um risco que não existe, que não ocorreu. Fim da discussão.
Para aqueles que ainda têm dúvidas sobre esse argumento, vale esclarecer que seria inusitado pensar — sob qualquer interpretação minimamente sensata da Constituição — que o texto quisesse abrir uma janela de oportunidade para que o “presidente ansioso” aproveitasse o período em que o Senado “não está aqui” (“o Senado em férias”) e, então, realizasse todos os desejos não realizados, ou todos os caprichos que não pudesse realizar, enquanto o Senado estivesse em sessão: completamente absurdo.
Para aqueles que ainda não estão convencidos, também podemos dizer algo sobre a ideia de “empregos que requerem o acordo do Senado”, de que fala o artigo 99 inciso 19. Nesse caso, é sensato pensar que a Constituição está se referindo a “empregos” como os dos militares ou diplomatas, que requerem “o acordo do Senado”.
Por exemplo, é razoável argumentar que a Constituição não quer que um exército fique “sem cabeça” por muitos meses porque o general morreu e o Senado está em recesso: é totalmente sensato, então, que o presidente nomeie um novo general “em comissão” e por um curto período.
Entretanto, da mesma forma, é altamente contra-intuitivo pensar que a Constituição também se refere, com essa noção de “cargos”, aos juízes da Corte. Dessa forma, o juiz que é nomeado em “comissão” passa a depender da confirmação dos poderes políticos para permanecer no cargo. Isso significa que — naturalmente, obviamente — esse juiz fará todo o possível para se entrosar durante seu “mandato” com o poder do dia, o poder dominante. Que ideia de independência judicial! (É aqui que a interpretação “procedimentalista”, mencionada acima, mais uma vez demonstra toda a sua força).
Para aqueles que ainda duvidam: o que foi dito até agora deixa de lado outra questão fundamental. Desde 1994, temos uma Constituição “diferente”, que estabeleceu de forma muito clara, explícita e contundente novas regras e procedimentos para a nomeação de juízes: a intervenção do Conselho da Magistratura para juízes “inferiores”, maiorias agravadas de dois terços para juízes da Corte.
Como meu amigo e colega Gustavo Arballo argumentou, “o que era um ‘caso geral’ de ’emprego’ é agora um caso especial que foi introduzido na reforma constitucional, e o objeto específico de dois pontos explícitos do Pacto de Olivos, alterando a forma como os juízes de todas as instâncias são nomeados”.
Em outras palavras, a tentativa de continuar a ler o termo “emprego” no artigo 99.19 como se referindo a juízes de instâncias inferiores ou da Corte não leva em conta que o processo de nomeação mudou radicalmente desde 1994. Isso também significa que as alegações sobre decisões anteriores ou experiências comparativas, que antes da reforma poderiam ter sido usadas como desculpa ou razão para defender a inclusão de “juízes” nessa categoria, perdem sua força.
Finalmente, para aqueles que não estão convencidos, e como um argumento decisivo, gostaria de fazer uma breve referência à questão democrática. Como acabei de dizer, desde a reforma de 1994, temos um processo de nomeação de juízes para a Corte que exige a concordância do Poder Executivo com uma maioria agravada de “dois terços dos presentes” no Senado (!).
Isso nos leva a duas questões fundamentais (que nos convidam a retornar às considerações processualistas descritas acima). Por um lado, a Constituição de 94 fez um movimento explícito e muito firme com o objetivo de limitar os poderes presidenciais, que considerava excessivos (limitar o hiperpresidencialismo de que falava Carlos Nino foi, sem dúvida, uma das razões que explicam e justificam a reforma constitucional de 1994).
Em outras palavras, as mudanças feitas na forma como os juízes são nomeados não podem deixar de ser lidas de acordo com a busca constitucional por uma limitação dos poderes presidenciais. Portanto, se tivermos dúvidas sobre como interpretar uma determinada decisão, encontraremos a resposta ali: contra a maximização dos poderes do presidente.
Em um sentido semelhante, e por outro lado, a mudança constitucional também deve ser lida em referência às demandas democráticas renovadas da Constituição. Ou seja: hoje, mais do que nunca, a Constituição exige um “consenso federal” muito forte em relação a certas nomeações e decisões. A Constituição introduziu essas mudanças (essa nova “ênfase democrática”) com a convicção de que as medidas em questão exigem o mais forte apoio em nível nacional. À luz de tais apelos (muito) democráticos à Constituição, o argumento ensaiado pelo governo no comunicado que busca respaldar sua manobra é insultante: o Senado não é o “corretor” do governo.
Tendo estabelecido o acima exposto, valeria a pena dedicar algum tempo agora para discutir a inconcebível e repudiável “teoria constitucional” resumida nas últimas linhas do comunicado oficial. No momento, entretanto, deixo essa tarefa empolgante para outra oportunidade: muitos danos já foram causados….
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