A derrota da Constituição argentina
5 de março de 2025, 12h15
A Constituição é a forma inicial de todo o direito positivo do Estado. A grande maioria dos estados do mundo tem uma Constituição escrita; a Argentina tem um dos textos mais antigos, concretos e concisos do mundo desde 1853. Um fato normativo e político que desperta grande atenção no concerto do Direito Constitucional Comparado. Viver sob uma Constituição é uma declaração: haverá tanto Estado quanto aquele constituído, determinado e estabelecido pela Lei Fundamental; o além é o próprio abismo do mundo sem regras escritas: um Estado fora da Constituição.
A Constituição tem partes pelas quais projeta diferentes processos que sustentam as instituições políticas; entre esses processos públicos, a governança, as competências e os itinerários das autoridades criadas e seus poderes inerentes. Todas as autoridades são criação da Constituição; nenhuma pessoa nasce ou nascerá com autoridade constitucional desde o nascimento. Os poderes das autoridades, por um tempo limitado, são concedidos a elas pela Constituição.
No entanto, em várias ocasiões, diferentes autoridades públicas têm a intuição de que a normalidade decorrente de uma realidade somente percebida por sua própria individualidade apoiaria sua ânsia de deixar a normatividade da Constituição sem ser cumprida. A respiração natural da Constituição, como nos seres humanos, é aquela reconhecida na força da vida, nesse caso, no respeito à sua força normativa. Anular a respiração natural da escritura fundamental significa uma manifestação aberta contra sua supremacia constituinte, tanto política quanto jurídica, seja por sufocamento, asfixia ou qualquer forma miserável de massacrar a institucionalidade cidadã de um país. Em outras palavras: a derrota da Constituição, o sepultamento de sua linguagem da razão. Isso aconteceu no dia 25 de fevereiro de 2025, por meio do Decreto 137 do Poder Executivo Nacional. Vejamos.
Rumo à demolição
O presidente da República Argentina nomeou duas pessoas “em comissão” para a Suprema Corte de Justiça (CSJ) em caráter interino. Desde que seu primeiro caso foi julgado em 1863, a corte foi composta por pouco mais de 100 magistrados. Nunca, desde 10 de dezembro de 1983, data da restauração da democracia constitucional na Argentina, um presidente nomeou um juiz para a Suprema Corte “em comissão“. Assim, o atual presidente está se movendo de forma firme e constante em direção à demolição da Constituição. Ele tomou a decisão de nomear duas pessoas comissionadas como juízes da Suprema Corte até o final da próxima legislatura, ou seja, juízes comissionados pelo presidente. O poder de julgar as questões essenciais e vitais do Estado é entregue pelo presidente a um comissionado nomeado por decreto. O presidente, de acordo com a Constituição, tem autorizações, proibições e obrigações. Ele está proibido de nomear juízes em comissão e tem a obrigação de cumprir detalhadamente todos os processos formalizados pela Constituição, por exemplo, que o Senado dê seu veredito sobre a aceitação ou rejeição da nomeação das mesmas pessoas que o presidente agora nomeia antecipadamente por decreto.
A reforma constitucional de 1994 introduziu um novo artigo 99, inciso 4. Ele estabelece que o presidente nomeia os juízes da Suprema Corte com a concordância do Senado por dois terços de seus membros presentes, em uma sessão pública convocada para esse fim. Além disso, para ser juiz da corte, o candidato deve demonstrar qualificações legais e solvência teórica, prática e moral. A nomeação de um juiz da CSJ faz parte do processo público autorizado pela Constituição. Os únicos processos públicos são regidos pela Constituição; enquanto eles forem violados, não haverá constitucionalidade.

Essa nova regra foi inspirada para estimular a negociação política: não há força que possa reunir dois terços, no entendimento de um corpo de 72 senadores que representam a totalidade do pacto federal argentino. A reforma constitucional de 1994 é um novo instrumento de Direito. É por isso que, desde então, existe um novo, único e adequado sistema de nomeação, determinado normativamente pelo artigo 99, inciso 4, primeiro parágrafo. Não deveria haver mais comissionados no universo determinado pela Lei Fundamental da Argentina para preencher vagas temporárias na Corte Suprema de Justiça. Se isso acontecesse, seria um abuso de Direito e um mau desempenho.
Além disso, a reforma constitucional de 1994 eliminou a função de “nomeação de juízes em comissão” da corte. O poder constituinte em 1994 apresentou um novo modelo no Artigo 99, inciso 4, primeiro parágrafo: a sessão pública e a maioria extrema são indisponíveis. O presidente não tem poderes para nomear em comissão, em detrimento da Lei Suprema fundamental e de sua divisão de poderes.
A concretização da Constituição deve ser o resultado da interpretação dinâmica, harmônica e coerente de suas normas. Por essa razão, a clara determinação da reforma constitucional, como “lei suprema posterior no tempo”, agora instalada na redação do artigo 99, inciso 4, põe fim a qualquer tentativa presidencial de fazer nascer uma competência para nomear juízes para a Suprema Corte de Justiça com base no artigo 99, inciso19. Essa autorização não pode incluir juízes da Corte Suprema de Justiça, porque, repito, há uma lei posterior, a reforma de 1994, que instalou uma especificidade jurídica nova.

Além dessa proibição de nomeação de juízes em comissão, também devemos acrescentar os princípios e as regras do direito internacional dos direitos humanos que, com a hierarquia constitucional, introduziram um novo conjunto de regulamentos, especialmente para salvaguardar a imparcialidade, a independência e a transparência do judiciário.
Atualmente, os comissionados mencionados no texto de 1853 não podem ser nomeados de acordo com o sistema constitucionalmente estabelecido, porque esse sistema deixou de existir em 22 de agosto de 1994, com a entrada em vigor da reforma constitucional. As nomeações comissionadas de juízes da Corte Suprema fazem parte da história do direito constitucional argentino, não de seu regime regulatório atual.
O presidente age com evidente autocracia. Esse comportamento implica uma negação da Lei Fundamental. Além disso, os cidadãos são completamente privados de seu direito de serem ouvidos e de participar.
Os juízes da Corte Suprema de Justiça, nomeados e com a concordância do Senado, devem deixar de servir aos 75 anos de idade. Um juiz delegado pelo presidente possuirá apenas uma designação precária e frágil que expirará ao término das sessões ordinárias da próxima “Legislatura”, qualidades que serão transmitidas à natureza de todos os que decidem na jurisdição durante os meses da comissão. Diga-me a designação que você possui e lhe serão informadas as propriedades que podem ser atribuídas à doutrina e à autoridade de seu julgamento para o caso específico apresentado. A Constituição exige que um juiz da Corte Suprema julgue “bem e legalmente”. Como um juiz nomeado por um caminho proibido exercerá essa função?
A Constituição institui regras de conformidade para a integração e o funcionamento de cada um dos poderes do Estado. Desviar-se desses processos institucionalmente configurados é o início da demolição do argumento democrático. A inconsistência com o caminho constitucional leva à derrota da lei suprema como uma norma jurídica fundamental. Em Tlön, Borges [1] disse, em uma das mais imaginativas de suas ficções, que a base da geometria visual é a superfície, não o ponto, enquanto essa geometria ignora as paralelas e declara que o homem que se move modifica as formas que o cercam. Aqui, na Argentina, é o presidente que desloca a forma constitucional.
– Tradução: Carolina Cyrillo
[1] “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” é um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges.
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