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Da condenação de Cristina Kirchner: a demolição do Poder Judiciário argentino

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11 de dezembro de 2024, 8h00

Penso que o grave — ainda que previsível — episódio da condenação de Cristina Kirchner ainda deve ser devidamente dimensionado, sendo necessário, para tanto, chamar a atenção, em especial, para alguns aspectos.

Spacca

1) A encenação na Câmara de Cassação [1] não é aquela de um teatro da rua Corrientes, mas de Hollywood. Não nos confundamos: não se trata de uma cena de política pequena, mas de política internacional; isto é, da “verdadeira política”, como dizia Perón. A criminalização de líderes populares (Castillo, Correa, Evo, Lula, Cristina e outros), chama-se Lawfare, ou, como se prefira, ocupa-se de demolir as magistraturas de nossos países, a fim de paralisar toda resistência nacionalista ou de defesa de nossa soberania contra a depredação do atual colonialismo financeiro transnacional.

2) Se ainda resta alguma dúvida, basta verificar a reiteração — ou plágio — do mesmo modelo típico de sentença: centenas de páginas, relatos intermináveis, amontoado de advérbios (“obviamente”, “claramente”, “indubitavelmente”, “inquestionavelmente”) que “dão por provada” com “total certeza” a responsabilidade penal. O exemplo mais acabado dessa “sentença” é o “caso Sobornos”, dos juízes “interinos” nomeados pelo delinquente Lenin Moreno no Equador, onde havia também um “caderno” de memórias [2].

3) Concentrar o foco em considerações jurídicas e de política local é perigoso, porque minimiza o caso, deixando de se considerar a sua verdadeira dimensão. O mesmo ocorre quando fala de “direita” ou de “esquerda”. A demolição institucional que sofremos não é uma questão de como se sentaram os revolucionários franceses do norte global no século 18 (enquanto transportavam milhares de escravos à América e nenhum deles se importava), mas uma opção entre soberania nacional ou dependência colonialista. O jogo que aqui é jogado não é aquele de um “torneio de várzea”, mas de geopolítica mundial e regional.

4) Não se deve perder a dimensão real do fenômeno, que, ao evidenciar o caos institucional e a enorme perda de confiança pública na magistratura, lança dúvidas acerca da própria viabilidade do republicanismo, da democracia e do liberalismo político (não “econômico”, Deus nos guarde!) no atual momento mundial e regional de financeirização econômica e consequente colonialismo financeiro. Sabemos que esse valores não são perfeitos, mas devemos defendê-los porque, até o momento, não conhecemos outros melhores.

5) A “lei da ficha limpa” é outra iniciativa inconstitucional e também plagiada, não é original. Fizeram Lula promulgá-la e depois a aplicaram para mantê-lo cativo. Deve ser respeitada a nossa Constituição e o direito internacional, segundo os quais ninguém pode ser considerado culpado até que assim seja declarado por uma sentença definitiva, isto é, não suscetível de submissão a outra instância interna.

6) A cassação de pensões, adequada o não, é uma decisão judicial e que nunca pode afetar direitos adquiridos; de modo algum pode Administração decidir a questão. O problema também extrapola — e muito — a cassação da pensão de Cristina: o executivo, desde que assumiu, está legislando por decretos e vetos, sem que isso seja motivo de escândalo, mas de aplausos. Não é de se estranhar, agora, que a administração assuma funções judiciais: talvez mereça um brinde.

7) A sentença contra Cristina revela que carecemos de um verdadeiro Poder Judiciário: nenhum cidadão ou habitante da Nação está a salvo de ver aplicada contra si uma lei inconstitucional ou que o submeta a qualquer sanção porque, a um juiz, lhe ocorreu interpretar de forma desatinada uma lei.

8) Todos nós habitantes da Nação estamos submetidos ao risco de uma arbitrariedade: se é isto que fazem à líder da oposição, o que não poderia ser feito ao vizinho da esquina? Existe no mundo algum Poder Judiciário que não garante a supremacia da constituição e não unifique interpretações? Sim, o nosso e, por isso, é uma magistratura, não um Poder Judiciário.

9) Nossa magistratura conta com muitíssimos juízes que nada tem a ver com essas manipulações em função de imperativos geopolíticos, mas quando aqueles que estão em posições chave concordam com tais imperativos, a situação institucional pode ser ilustrada como uma partida de futebol sem árbitro ou juiz de linha: o resultado não pode ser outro que não várias pernas fraturadas.

10) A sentença contra Cristina nos recorda que, no atual caos institucional, qualquer direito nos pode ser privado, pois não temos a quem reclamar sua eficácia, sua vigência, sua observância. Os direitos declarados na Constituição e nas leis, quando não existe a quem reclamar sua eficácia, tornam-se meros papeis impressos.

* originalmente publicado no Página12 (Buenos Aires), em 17 de novembro de 2024
** traduzido por Marcus Vinícius Fernandes Bastos, doutorando na Faculdade de Direito da USP sob a orientação do professor Gilberto Bercovici. Mestre em Direito pela UnB (Universidade de Brasília). Assessor de ministro no STF (Supremo Tribunal Federal)

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[1] Nota do tradutor: o autor se refere à recente decisão da Câmara Federal de Cassação Penal da Argentina que confirmou, em segunda instância, a condenação da ex-presidente e líder peronista da oposição Cristina Kirchner a seis anos de prisão em caso conhecido como “Vialidad”, em que são apuradas acusações de corrupção, associação criminosa e fraudes contra a administração pública.

[2] Nota do tradutor: o “caso Sobornos”, a que se refere o autor, consiste na persecução penal promovida no Equador em face do ex-presidente Rafael Correa e outros membros de sua administração pela suposta prática de crimes de corrupção. As investigações se iniciaram a partir da publicação, pela mídia, de um caderno de anotações alegadamente mantido por uma ex-assessora de Rafael Correa.

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