Processo penal, memória e transcurso de tempo
21 de setembro de 2024, 8h00
É importante sempre lembrar de estudos como os realizados pelo Innocence Project nos Estados Unidos, que revelam que aproximadamente 70% das condenações errôneas são decorrentes de erros de identificação por testemunhas oculares [1]. A maioria dessas condenações foi revertida por meio de exames de DNA, confirmando que tais erros desempenharam um papel central na falha dos julgamentos [2].
Assim, até mesmo como forma de mitigação de erros judiciais, um estudo responsável e aprofundado pela perspectiva da psicologia do testemunho importa para todos os envolvidos no sistema processual penal.
A constatação de que, no processo penal brasileiro, a prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado, fundamentando a maioria das sentenças penais [3] reforça a seriedade do assunto. As testemunhas e vítimas são ouvidas primeiramente na delegacia de polícia – normalmente em um período curto de tempo após o fato – e, posteriormente, em audiência, perante a autoridade judiciária e as partes no processo –, fase que normalmente ocorre muitos meses até anos após o fato presenciado.
No entanto, apesar de a prova testemunhal desempenhar papel central no processo penal, estudos demonstram que a memória está exposta a inúmeros fatores de influência durante e após o fato delitivo, o que pode gerar erros severos na lembrança do fato criminoso e contaminação do processo penal que decorre do inquérito policial. Já fizemos algumas considerações sobre o assunto, em artigos aqui na coluna (aqui e aqui, por exemplo).
Também explicamos sobre a conformidade de memória, uma das formas de alterações mnemônicas, em que os relatos testemunhais são influenciados a partir da conversa entre duas ou mais pessoas. Assim, em determinado caso, mesmo que os depoimentos se revelem coerentes entre si, isso não necessariamente significa que os fatos relatados representem a reconstrução, em alto nível de credibilidade, do fato bruto ocorrido [4].
Transcurso do tempo
Atualmente, um dos fatores que necessita de estudos mais aprofundados, dada a realidade brasileira, é o transcurso do tempo e como o esquecimento pode levar as pessoas a distorcerem as experiências vividas. Em um estudo conduzido pela Universidade Federal de Minas Gerais [5], foi analisada a ocorrência de conformidade de memória após oito meses. É notório que, frequentemente, entre o ato criminoso e a audiência de instrução, ou até mesmo a sessão do tribunal do júri, podem transcorrer vários anos.
No entanto, mesmo em um intervalo de apenas oito meses, 88,89% dos participantes apresentaram alterações significativas na memória da cena criminosa observada, evidenciando a alta falibilidade das provas, mesmo em elementos centrais e claramente identificados. Esses resultados comprovam uma modificação significativa na memória das testemunhas ao longo do tempo, provavelmente relacionada ao esquecimento natural e às influências externas.
Para ilustrar o ponto, observamos que em experimento realizado por Mori & Kishikawa em 2014 [6] foram identificados índices da ocorrência da conformidade de memória de 15% logo após o estímulo e de 66% uma semana após.
Informações errôneas
Por outro lado, no mesmo experimento realizado pela UFMG, também foram examinados os índices de confiança nas respostas fornecidas pelos participantes. Os resultados são igualmente preocupantes do ponto de vista da credibilidade probatória, visto que os participantes frequentemente relataram informações errôneas com alta confiança. De forma estatística, 37,5% dos participantes que aderiram à informação falsa demonstraram um índice de confiança alto ou muito alto, confirmando que as testemunhas podem relatar eventos não experimentados com grande convicção, como se realmente tivessem vivenciado o fato.
Essa conclusão também é compatível com outras pesquisas que demonstram que testemunhas oculares podem estar erradas (mesmo sem ter recebido qualquer tipo de falsa informação) e, ainda assim, apresentar um alto grau de confiança [7].
Tais estudos científicos apresentam grande relevância para o sistema criminal, pois as pessoas em geral, juízes e jurados acreditam que a memória humana é imune a falhas, levando, inclusive, à falsa percepção de que a nossa memória funcionaria como uma câmera filmadora [8].
Na verdade, os estudos sobre a memória indicam que o esquecimento: (a) é algo normal e natural; (b) que, com o passar do tempo, a própria memória é readequada para manter um nível de precisão; (c) também se relaciona com a fonte da informação, fazendo com que as testemunhas relatem dados que não foram vivenciados por não saberem de onde vem a informação original.
Soluções
Um dos fatores que poderia diminuir esse problema, além de entrevistar individualmente as testemunhas presenciais antes de qualquer conversa com outras testemunhas ou terceiras pessoas, seria a busca pelo desenvolvimento de ferramentas que permitam ouvir os envolvidos no menor período de tempo possível após o crime. Isso porque a prova testemunhal pode ser confiável, desde que colhida em condições ideais. E isso envolve soluções para diminuir o tempo de tramitação processual.
De qualquer maneira, sempre deve-se separar as testemunhas e adverti-las para não conversarem sobre os fatos presenciados (inclusive antes do depoimento em si, para evitar a inserção de falsas memórias), bem como utilizar métodos de extração de relatos mais fidedignos (inclusive com gravação por áudio e vídeo de todo o procedimento, para controle posterior), como a entrevista cognitiva aprimorada [9] e a entrevista autoadministrada (SAI – self administered interview)[10]. Além do mais, compreender os fenômenos do esquecimento, permitindo às testemunhas que respondam “eu não sei” ou “eu não me lembro”, também impede que as perguntas sejam um dos vetores de criação de falsas informações, em atendimento ao princípio da transferência de controle da narrativa [11].
Diversas metodologias para análise da credibilidade do testemunho podem ser utilizadas para identificar, analisar e avaliar as distorções mnemônicas, ou inerentes ao relato, sendo conveniente separá-las em: técnicas verbais, não-verbais e mistas. As primeiras relacionadas à análise do conteúdo das narrativas, vale dizer, das informações obtidas a partir do relato dos narradores (sejam eles testemunhas, acusados, vítimas ou declarantes) [12]; a segunda posicionada no exame de comportamentos físicos, espaços, características do ambientes e até mesmo das reações dos afetados [13]; e a terceira ligada à consideração de ambas situações (narrativas e comportamentos)[14].
Primazia e recência
Importante destacar, para finalizar esse breve escorço, um efeito da memória usualmente observado nos ambientes judiciais e que apresenta estreita correlação com o transcurso do tempo: a curva de posição serial.
Em 1962, refinando um conceito que já fora exposto muito antes por Hermann Ebbinghaus, Bennet B. Murdoch escreveu um artigo intitulado The serial position effect in free recall, em que postulava a ideia de que, na tentativa de recordar uma lista de palavras, as pessoas tendem a lembrar melhor das primeiras (efeito de primazia) e das últimas (efeito de recência), olvidando-se do restante [15].
A justificativa para a recordação das primeiras palavras parece estar localizada na presença do ensaio, termo alusivo à repetição da palavra pelo próprio voluntário, enquanto não se verifica uma interferência proativa (novas palavras), ou algum efeito distrator (novas tarefas pensadas ou sugeridas ao decorrer do experimento); e, quanto às últimas, a recência parece se justificar pelo fato de que se encontram mais presentes nas memórias de curto prazo, ou de trabalho, podendo ou não ser convertidas em memórias de longo prazo.
Então, por exemplo, se a uma vítima for mostrada a foto de um suposto agressor e essa pessoa lembrar de alguém que viu pela última vez antes do incidente, que chamou sua atenção por algum motivo peculiar (como usar uma gravata laranja), é muito provável que ela faça uma transferência inconsciente (no contexto da psicologia do testemunho, não no sentido psicanalítico) [16] e o identifique erroneamente como o agressor. A situação pode se complicar ainda mais dependendo de como o evento ocorreu; se foi com muita violência, a título de exemplo, poderia gerar um bloqueio de memória na vítima [17]. Se isso acontecer, a última imagem que permanecerá em suas lembranças será a da pessoa com a gravata laranja, que, por coincidência, também consta no banco de dados policial e, por isso, poderá ser erroneamente reconhecida pela vítima.
Vários são os fatores relacionados ao funcionamento da memória, percepção dos encadeamentos fáticos e análise dos relatos produzidos pelos afetados quando em foco o transcurso do tempo. A tomada de decisão pelo Direito do século 21 não pode prescindir de avaliação mais aberta, não apenas estreitamente vinculada às diretrizes dogmáticas fixadas na legislação, processual civil e penal, que se revelam lacunosas em relação aos atuais estudos pertinentes ao tema.
Principalmente levando em consideração a realidade brasileira, não há como menosprezar a importância da prova testemunhal para o esclarecimento do fato criminoso. No entanto, a prova testemunhal é baseada na memória, havendo ampla comprovação científica de sua falibilidade. Entender sobre os fenômenos que impactam a memória e seu funcionamento, permite que todos os envolvidos com a justiça criminal atuem de maneira mais equilibrada e com vistas a mitigação de injustiças.
[1] Innocence Project: https://www.innocenceproject.org/causes/eyewitness-misidentification/. Acesso em: 18 set. de 2024.
[2] WELLS, Gary L.; SMALL, Mark; PENROD, Steven; MALPASS, Roy S.; FULERO, Salomon M.; BRIMACOMBE, C. A. E. (1998). Eyewitness Identification Procedures: Recommendations for Lineups and Photospreads. Law and Human Behavior, 22, 603-647.
[3] Avanços Científicos em Psicologia do Testemunho Aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativo; Ipea, 2015.
[4] WRIGHT, Daniel; SELF, Gail; JUSTICE, Chris. (2000) Memory conformity: exploring misinformation effects when presented by another person. British Journal of Psychology, 91, 189-202.
[5] Publicada na Revista Brasileira de Ciências Criminais, volume 171, em 2020, de autoria de Rodrigo Faucz e Antonio Jaeger, intitulado “Memória e Conformidade: a confiabilidade da prova testemunhal e o transcurso de tempo”.
[6] MORI, Kazuo; KISHIKAWA, Takeshi. (2014). Co-Witness Auditory Memory Conformity Following Discussion: A Misinformation Paradigm. Perceptual & Motor Skills, 118 (2), 533-547.
[7] ROEDIGER, Henry L.; WIXTED, John H.; DESOTO, K. Andrew. (2013). The Curious Complexity between Confidence and Accuracy in Reports from Memory. Memory and Law. 84-118.
[8] LACY, Joyce W.; STARK, Craig E. L. (2013) The Neuroscience of Memory: Implications for the courtroom. Nature Reviews Neuroscience, 14, 649-658.
[9] FISHER, Ronald P.; GEISELMAN, R. Edward. Memory-enhancing techniques for investigative interviewing: The cognitive interview. Springfield: Charles C Thomas Publisher, 1992.
[10] GABERT, Fiona; HOPE, Lorraine; FISHER, Ronald P. Protecting eyewitness evidence: Examining the efficacy of a self-administered interview tool. Law and Human Behavior, v. 33, n. 4, p. 298-307, 2009.
[11] WHITE, Michael; EPSTON, David. Narrative means to therapeutic ends. New York: W.W. Norton & Company, 1990.
[12] Exemplos, em rol aberto: CBCA, como parte integrante do protocolo SVA, SCAN, PEACE, HELPT.
[13] Também em rol aberto: FACS, NBAM etc.
[14] RM, técnica da detecção de intenções enganosas, da declaração modelo, da análise semântica etc.
[15] MURDOCH, Bennet B. The serial position effect in free recall. Journal of Experimental Psychology, v. 64, n. 5, p. 482-488, 1962.
[16] LOFTUS, E. F. Unconscious transference in eyewitness identification. Law and Psychology Review, v. 2, p. 93-98, 1976.
[17] REISBERG, Daniel. The Science of Perception and Memory: A Pragmatic Guide for the Justice System. Oxford University Press, 2014.
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