Tribunal do Júri

Lei 14.752/2023: uma vitória da advocacia

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Sérgio Leonardo

    é presidente da OAB-MG advogado criminalista e conselheiro federal da Abracrim.

15 de dezembro de 2023, 10h12

Como se sabe, ultimamente a advocacia brasileira vem sofrendo constantes ataques. Ataques contra suas prerrogativas profissionais (como a limitação do direito de sustentação oral) e agressões contra o próprio direito de defesa e de seus clientes (como o uso indiscriminado de prisões preventivas, a mitigação do juiz de garantias, dentre outros).

Neste cenário avassalador para o Estado democrático de Direito, as vitórias precisam ser celebradas. Nesta semana, dia 12 de dezembro, foi sancionada, publicada e entrou em vigor a Lei 14.752/2023, derivada do Projeto de Lei nº 4.727/2020 apresentado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que extinguiu a multa por abandono de processo do artigo 265 do Código de Processo Penal. A redação anterior estava totalmente incompatível com a norma constitucional, vez que a Ordem dos Advogados do Brasil é o único órgão correcional competente para processar e julgar eventuais infrações ético-disciplinares contra seus membros.

Spacca

O (agora) antigo dispositivo legal asseverava que “o defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários-mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis”. A redação concedia competência ao juiz de decidir por sanções contra o advogado que optasse por não continuar na causa, ou seja, o magistrado, caso não acolhesse o motivo imperioso ou mesmo o momento em que o advogado agiu para não mais patrocinar a defesa, poderia simplesmente aplicar uma severa punição financeira.

Havia claramente uma violação da competência da OAB, a qual cabe velar pela ética profissional. Ademais, constituía uma discrepância de tratamento em relação aos próprios magistrados e membros do Ministério Público que podem, a qualquer tempo, abandonar o processo inclusive por motivo de foro íntimo — isto é, sem declinar qualquer fundamentação.

A nova redação, em respeito à Constituição de 1988 assenta que “o defensor não poderá abandonar o processo sem justo motivo, previamente comunicado ao juiz, sob pena de responder por infração disciplinar perante o órgão correicional competente”. Destarte, o advogado, poderá: (1) abandonar o processo com justo motivo, comunicando o magistrado de sua decisão, ocasião em que este deverá mandar intimar o acusado para constituir novo defensor e, caso não constitua, nomear defensor público ou dativo para a sua defesa (§3º do artigo 265 do CPP); (2) abandonar o processo sem justo motivo, situação na qual o magistrado poderá submeter o fato para a seccional da OAB respectiva para apurar eventual infração disciplinar. Também neste último caso, o acusado deverá ser intimado para constituir novo defensor e, caso não constitua, deverá ser nomeado defensor público ou dativo.

De qualquer maneira, lembramos que o artigo 16 do Código de Ética e Disciplina da OAB, estipula que “a renúncia do patrocínio deve ser feita sem menção ao motivo que a determinou”. Desta forma, quando da comunicação do justo motivo ao juiz da causa, não se poderá, infringir outras regras disciplinares, como violar sigilo profissional ou prejudicar seu próprio cliente, por exemplo.

Sérgio Leonardo, presidente da OAB-MG

Especificamente para o tribunal do júri, a alteração legislativa também terá um impacto relevante. Isso porque o antigo artigo 265 do CPP era interpretado de forma a possibilitar a aplicação da multa de 10 a 100 salários-mínimos para os advogados que abandonassem o Plenário do júri.

Mas, o que é o abandono de plenário? Trata-se de uma “decisão unilateral de uma das partes de se retirar da sessão”, conduta que “se justificaria quando da ocorrência de graves violações no decorrer do julgamento”. [1]

Por conta do antigo artigo 265, tal conduta era sancionada, vez que considerada como injustificável e equivalente ao abandono do processo. Aliás, a jurisprudência sempre atacou o fato de o advogado se retirar da sessão, utilizando expressões como afronta ao judiciário, desídia injustificada, desrespeito ao Estado.

Entretanto, o abandono do plenário precisa ser visto pelo viés estratégico da defesa (não obstante haver casos em que o abandono ocorre pelo membro do Ministério Público). A ponderação precisa levar em conta que, quando da ocorrência de graves violações das prerrogativas ou de nulidades processuais que inviabilizam o exercício da defesa, dois são os possíveis caminhos:

O abandono do plenário, em que o advogado deverá constar em ata todas as suas razões antes de consumar o extremado ato. A consequência imediata é que a sessão não poderá prosseguir em nenhuma hipótese, devendo o juiz presidente dissolver o Conselho de Sentença e oficiar a OAB, à Defensoria Pública do Estado ou a Procuradoria Geral de Justiça respectiva para que apure eventual sanção administrativa;

A continuação do julgamento, em que, como já foi manifestado aqui nesta coluna, a parte que foi prejudicada “apodera-se de uma dupla chance. Se o julgamento continuar, tem a chance de conseguir o resultado que almeja. Caso o resultado seja desfavorável, terá uma tese coerente para anulação da sessão”. [2]

Também, sempre que a defesa se retirar da sessão de maneira unilateral, a sessão deverá ser redesignada. Se, além do abandono do plenário, o advogado (expressamente) abandonar a causa — ou seja, renunciando aos poderes conferidos pelo cliente –, o magistrado deverá intimar o acusado para que constitua novo defensor (se estiver presente na sessão, o fará imediatamente). Caso não deseje, não se manifeste ou não tenha condições para contratar um advogado, a defensoria pública ou um defensor dativo deverá ser nomeado.

Outro ponto fundamental é o reconhecimento dos efeitos retroativos da alteração da norma processual penal em discussão.

A retroatividade pode ser analisada sob três vertentes principais. Primeiramente, por constituir uma lei de conteúdo processual-penal ou híbrido, que combina elementos do direito processual penal com aspectos do direito penal sancionatório, deverá ser aplicada também para os processos anteriores à sua vigência. Assim, como o antigo artigo 265 do CPP previa uma sanção, as regras estão sujeitas às disposições temporais do direito penal. Em outras palavras, a natureza mista da norma exige o reconhecimento de seu caráter retroativo, em conformidade com o estabelecido no artigo 5º, XL, da Constituição.

Por um segundo prisma, tal entendimento se coaduna com a doutrina que, da mesma forma, destaca que a lei processual penal mais benéfica tem o potencial de retroagir para favorecer o acusado, independentemente da discussão sobre a natureza processual ou penal. Na visão de Aury Lopes Jr. “impõe-se discutir se a nova lei processual penal é mais gravosa ou não ao réu, como um todo. Se prejudicial, porque suprime ou relativiza garantias — v.g., adota critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares ou amplia os seus respectivos prazos de duração, veda a liberdade provisória mediante fiança, restringe a participação do advogado ou a utilização de algum recurso etc. —, limitar-se-á a reger os processos relativos às infrações penais consumadas após a sua entrada em vigor”. [3]

Pela terceira vertente, se houver a interpretação de que a questão em pauta também envolve o âmbito do direito administrativo sancionador, destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem respaldado a retroatividade em favor do indivíduo, reforçando a coerência com o princípio fundamental de proteção aos direitos do acusado. [4]

Portanto, seja considerando (i) uma norma processual de natureza mista, (ii) tratar-se de lei processual penal mais benéfica ao sancionado, (iii) ou ainda constituir norma de direito administrativo sancionador, as normas de direito intertemporal precisam ser aplicadas, atestando a retroatividade da Lei 14.752/2023 com a consequente extinção da penalidade também aos processos já terminados ou às multas anteriormente aplicadas.

Frisamos que “cabem a todos os envolvidos (defesa, acusação e magistrado), quando instalada uma controvérsia e considerando a dinâmica própria de uma sessão do júri, que tenham bom-senso e ponderação para encontrar um ponto de equilíbrio e um espaço de diálogo com vistas a continuidade da sessão”. [5] Não temos notícias de abandonos em sessões em que os direitos e princípios legais, constitucionais e convencionais tenham sido respeitados.

Por fim, é de se destacar o papel de Congresso na defesa das pautas democráticas. Sem a disposição e vontade política dos congressistas, continuaríamos absortos na violação contínua das prerrogativas profissionais e expostos a sanções arbitrárias que invadiam a competência da OAB. A voz da cidadania merece ser sempre respeitada e nós, advogados, somos essa voz!

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[1] FAUCZ, Rodrigo; AVELAR, Daniel. Manual do Tribunal do Júri, 3a. ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 78.

[2]O abandono do Plenário no júri”, publicado em 12 de junho de 2021.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17a. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[4] STJ, AgInt no REsp n. 2.024.133/ES, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, j. em 13/3/2023.

[5] FAUCZ, Rodrigo; AVELAR, Daniel. Manual do Tribunal do Júri, 2a. ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 555.

Autores

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é presidente da OAB-MG, advogado criminalista e conselheiro federal da Abracrim.

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