Interesse Público

Sistema de Registro de Preços e adesões federativas: contradição aparente

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12 de setembro de 2024, 8h00

O Sistema de Registro de Preços (SRP) é um dos principais procedimentos auxiliares da licitação, atualmente previsto nos artigos 78, IV, 82 a 86 da Lei 14.133/2021. Sob a égide da Lei 8.666/93, que trazia no artigo 15 tímidas regras a respeito do sistema, sua utilização foi acelerada a partir da primeira regulamentação federal, mediante o Decreto nº 3.931, de 19 de setembro de 2001.

O SRP é um conjunto de procedimentos administrativos com o objetivo de registrar formalmente, perante a administração pública, preços relativos à aquisição de bens e prestações de serviços, para fins de futuras contratações.

A utilização do SRP acontece basicamente quando:

a) pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contrações rotineiras e frequentes;

b) não for possível definir previamente o quantitativo do objeto a ser demandado pela administração pública;

c) destinar-se à aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida ou em regime de tarefa;

d) a licitação for realizada para o atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou programa de governo.

A implantação do SRP ocasionou ao longo do tempo intensos debates jurídicos: necessidade de previsão de quantitativos mínimos e máximos e o grau de vinculação do fornecedor ao montante estimado de contratação; cotação no procedimento de quantidades inferiores ao total, com preços registrados diferentes; previsão de registros de preços distintos, conforme as características do fornecimento ou da prestação; utilização do SRP para a contratação de obras e serviços de engenharia.

Carona

Mas a questão que mais gerou controvérsias sobre o SRP foi a figura da adesão à Ata de Registro de Preços (ARP), ordinariamente denominada de “carona”. Na redação originária do Decreto 3.931/2001, a figura encontrava-se prevista no artigo 8º, conforme segue:

“Art. 8º. A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.

§1º. Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.

§2º. Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.”

É verdade que a utilização do carona abreviava bastante a licitação dos órgãos e entidades que aderiam à ARP de outros, o que sempre se alegava para justificar o uso intensivo. Mas havia problemas jurídicos nisso. Primeiro porque a regulamentação primitiva não estabelecia limites à adesão, tampouco cogitava das limitações quantitativas do objeto; segundo porque não existia previsão legal a respeito, e se bem compreendida a natureza jurídica da adesão, tratava-se de hipótese de dispensa de licitação, a exigir, portanto, previsão legal.

Spacca

Os defeitos da regulamentação original federal foram sendo corrigidos e aprimorados ao longo do tempo, impondo-se limites ao uso desenfreado das adesões; primeiramente pela edição do Decreto 4.342, de 23 de agosto de 2002; secundariamente pela edição do Decreto 7.892, de 23 de janeiro de 2013, que consolidou entendimentos do TCU, revogando o Decreto 3.931/2001.

A despeito da admissibilidade do uso do carona tanto pelos decretos quanto pela jurisprudência do TCU [1], a ausência de previsão legal somente veio a ser solucionada com o advento da Lei 14.133/2021 (artigo 86, §3º), mesmo assim com problemas.

Com efeito, a redação originária do dispositivo previa que a faculdade de utilização do carona estaria limitada a órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal que, na condição de não participantes da licitação, desejassem aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital.

É dizer que a nova lei limitava a utilização da figura da adesão às atas federais, estaduais e distritais, vendando, via de consequência, que a adesão pudesse ser admitida por órgãos ou entidades gerenciadores municipais.

Contradição aparente

A Lei 14.770, de 22 de dezembro de 2023, alterou a redação do §3º do artigo 86 da Lei 14.133/21 para prever que a faculdade de aderir à ata de registro de preços na condição de não participante poderá ser exercida (= regra permissiva):

a) por órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, relativamente a ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital; ou

b) por órgãos e entidades da administração pública municipal, relativamente a ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora municipal, desde que o sistema de registro de preços tenha sido formalizado mediante licitação.

Todavia, mesmo após a mudança legislativa, manteve-se inalterada a regra do §8º do artigo 86 da Lei 14.133/21, segundo a qual é vedado que órgãos e entidades da administração pública federal praticassem adesão à ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital ou municipal.

Conjugando-se o §3º, I do artigo 86 com o §8º do mesmo dispositivo, percebe-se que as regras apresentam entre si uma contradição aparente. A primeira a permitir que órgãos e entidades da administração pública federal adiram às Atas de Registro de Preços estaduais e distritais (não às municipais), a segunda a proibir que eles adiram a tais atas (?).

O conflito é resolvido com base nas competências constitucionais para legislar sobre licitações e contratos administrativos, nos termos do artigo 22, XXVII da Constituição. Enquanto a regra do §3º do artigo 86 da Lei 14.133/2021 veicula uma norma geral de licitações e contratos, de caráter nacional, autorizando a adesão em todos os níveis federativos, a do §8º do artigo 86 é regra exclusivamente federal, que impõe proibição a que os órgãos e entidades da União peguem carona em Atas de Registro de Preços estaduais e distritais e municipais.

 


[1] Ver, por todos, TCU – Acórdão 2842/2016-Plenário: “A utilização do sistema de registro de preços deve estar adstrita às hipóteses autorizadoras, sendo a adesão medida excepcional. Tanto a utilização como a adesão devem estar fundamentadas e não podem decorrer de mero costume ou liberalidade.”

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