Opinião

Fundos de investimento e configuração de grupo econômico segundo o Cade

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30 de março de 2024, 7h04

Na última sessão ordinária de julgamento (226ª SOJ), no dia 20 de março de 2024, o Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) voltou suas atenções para a discussão acerca dos critérios de configuração de grupo econômico envolvendo operações com fundos de investimento e da interpretação orientativa do Cade quanto aos parâmetros de verificação de controle compartilhado relacionado aos direitos de acionistas minoritários, nos termos do artigo 4º, §§ 1º e 2º da Resolução Cade nº 33/2022 (Resolução nº 33).

No julgamento do Procedimento Administrativo de Apuração de Ato de Concentração (Apac) nº 08700.000641/2023-83, o Cade investigou a prática de gun jumping pelas empresas Digesto Pesquisa e Banco de Dados S.A. (Digesto) e Goshme Soluções para a Internet Ltda. (Jusbrasil).

A operação tratou da aquisição da totalidade das ações de emissão da Digesto pelo Jusbrasil, nos termos do contrato de compra e venda de ações celebrado em 28 de outubro de 2021. Tal operação foi concluída na data da assinatura do contrato e, à época, não foi submetida ao Cade, visto que, no entendimento das requerentes, os grupos econômicos envolvidos não satisfaziam os requisitos de faturamento mínimo estabelecidos pelo artigo 88 da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência ou LDC).

Motivos alegados no pedido de não conhecimento da operação

A aquisição de ações só foi notificada ao Cade em fevereiro de 2023, tendo as requerentes solicitado o não conhecimento da operação. O pleito foi baseado no argumento de “ausência de controlador” de acordo com os seguintes fundamentos:

“a) As Partes argumentaram que a redação da Resolução não indica claramente que uma empresa deva ser considerada integrante do grupo econômico de um investidor titular de participação societária superior a 20% quando este investidor não exercer controle (e.g., controle minoritário ou controle conjunto). Ponderaram que a leitura do dispositivo indicaria a necessidade de se identificar o controlador “final” de uma estrutura de investimentos. Nesse sentido, apontaram que antes da Operação a maioria das ações de emissão da Digesto eram detidas pelo acionista Tomás. Para fins do art. 4º da Resolução Cade n° 2/2012, vigente à época, afirmaram que Tomás não controlava ou integrava um grupo econômico. Deste modo, como o faturamento da Digesto no ano anterior à Operação foi de apenas R$ [ACESSO RESTRITO], de forma que não estaria satisfeito o critério do referido art. 88.

b) No mesmo sentido, expuseram que nenhum dos acionistas do Jusbrasil controlava a companhia na data da Operação, quer de forma unitária, quer em estrutura de controle comum ou conjunto. Para fins do art. 4º, §1º, Resolução Cade n° 2/2012, vigente à época, elas entendem, portanto, que o Jusbrasil não estava sob controle comum, direta ou indiretamente, de nenhum acionista e, portanto, não poderia ser considerado integrante de seus respectivos grupos econômicos. Portanto, na data da Operação, defendem as Requerentes que o Jusbrasil deveria ser considerado como controlador de seu próprio grupo econômico (Grupo Jusbrasil, como referido acima) e o faturamento do Grupo Jusbrasil em 2020 não superou a cifra de R$ 75 milhões” [1].

Na análise do caso, nos autos do Ato de Concentração nº 08700.001465/2023-05, a SG/Cade frisou que a argumentação pelo não conhecimento da operação trazida pelas requerentes se amparou nos ditames do § 1º do artigo 4º, o qual não se aplica a fundos de investimento, mas sim a empresas. Além disso, destacou que o § 2º do artigo 4º da Resolução Cade nº 33/22 estabelece que, no caso dos fundos de investimento, para configuração dos respectivos grupos econômicos para fins de cálculo do faturamento de que trata o artigo, deveriam ser considerados três fatores:

(1) o grupo econômico de cada cotista que detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 50% das cotas do fundo envolvido na operação via participação individual ou por meio de qualquer tipo de acordo de cotistas (inciso I): trata-se de hipótese “para cima” em que, além do próprio fundo, fazem parte de seu grupo todas as empresas e fundos desse cotista que preencherem as regras de participação;

(2) as empresas controladas pelo fundo envolvido na operação (inciso II): trata-se de hipótese “para baixo” em que se estabelece que todas as empresas controladas pelo fundo devem ser consideradas como parte de seu grupo, independentemente do nível de participação societária do fundo, mesmo que abaixo de 20%;

(3) as empresas nas quais o referido fundo detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 20%  do capital social ou votante (inciso II): também consiste em hipótese “para baixo” em que se prevê que todas as empresas nas quais o referido fundo detenha tal participação devem ser consideradas como parte de seu grupo, independentemente de qualquer avaliação sobre se o fundo mantém sobre elas qualquer tipo de controle.

Sendo assim, a SG/Cade, a partir da análise das participações societárias, entendeu que as partes integravam os grupos econômicos dos fundos de investimento, que, por sua vez, haviam atingido o critério de faturamento, tratando-se, portanto, de operação de notificação obrigatória. Nesse sentido, concluiu pelo conhecimento da operação e pela aprovação sem restrições.

Entendimento do relator

Contudo, nos autos do Apac nº 08700.000641/2023-83, o conselheiro relator Victor Fernandes apresentou suas preocupações com a ausência de (1) clareza na orientação interpretativa do Cade quanto às regras de configuração de grupo econômico aplicável a fundos de investimento para operações em que fundos são apenas cotistas da empresa-alvo ou empresa vendedora no que se refere ao artigo 4º, § 2º da Resolução nº 33 e (2) publicização e sistematização de parâmetros objetivos para aferição de controle compartilhado a partir da análise do acordo de acionistas de acordo com o artigo 4º, § 1º da mencionada resolução.

Spacca

Em seu voto, o conselheiro relator alegou que a operação se enquadraria na espécie de ato de concentração do inciso II do artigo 90 da Lei 12.529/11, sendo uma “aquisição direta de controle de empresa por compra de ações”, contudo haveria uma discussão quanto à aplicação do critério de faturamento do artigo 88 da LDC e do artigo 4º, §§ 1º e 2º da Resolução nº 33.

Isso porque, enquanto as Requerentes defenderam a ausência de caracterização de grupo econômico pela tese da ausência de controle comum, a SG/Cade não analisou a subsunção da operação a esse parágrafo nos autos do AC nº 08700.001465/2023-05, uma vez que entendeu pela obrigatoriedade da notificação da operação a partir da aplicação do § 2º, isto é, a partir da avaliação do percentual de participação nas hipóteses “para cima” ou “para baixo”, independentemente de qualquer análise de controle comum.

Em primeiro lugar, o conselheiro afirmou que, em razão da escassez de precedentes no contexto de aplicação de regras de configuração de grupo econômico aplicável a fundos de investimento, não seria possível se extrair uma orientação interpretativa clara do Cade em relação a se o artigo 4º, § 2º da resolução seria aplicável para operações em que fundos eram apenas cotistas da empresa-alvo ou empresa vendedora.

Uma solução apresentada pelo relator seria a diferenciação entre os casos em que o fundo de investimento é parte direta da operação e os casos em que o fundo está apenas indiretamente relacionado ao ato de concentração.

Conservadoramente, pontuou que seria razoável concluir que o artigo 4º, § 2º só seria aplicável aos casos em que os fundos figuram como partes diretamente envolvidas na operação, isto é, quando se trata de uma sociedade compradora, sociedade-alvo ou sociedade vendedora. Nesse sentido, não seria adequado, em sede de Apac, concluir que essa interpretação deveria ter sido antecipada pelas representadas no momento da operação.

Em segundo lugar, o conselheiro Victor Fernandes destacou a falta de publicização e sistematização de critérios objetivos para verificação de controle compartilhado a partir da análise do acordo de acionistas nos termos do artigo 4º, § 1º da mencionada resolução. Além da escassez de casos envolvendo a discussão, a confidencialidade das cláusulas desses acordos, que são analisadas pelo Cade e não se tornam públicas, aumenta a dificuldade da comunidade empresarial em antecipar a interpretação do órgão antitruste.

Com isso, o conselheiro realizou um levantamento jurisprudencial acerca do tema e apresentou uma lista de direitos de minoritários que geram presunção de controle compartilhado, de acordo com o entendimento da SG/Cade, quais sejam:

(1) direito de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação em assembleia geral de matérias como: aprovação de planos de negócio ou de orçamento anual, qualquer alteração no estatuto social que afetem os direitos dos acionistas independentemente da matéria, dentre outros;

(2) direito de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação em conselho de administração de matérias como: aprovação de planos de negócio ou de orçamento anual, eleição de diretores da companhia, aprovação de políticas de negócio, dentre outros;

(3) direito de indicar membros para o conselho de administração, especialmente quando combinado com direitos de veto sobre matérias concorrencialmente estratégicas;

(4) direito de veto sobre decisões relacionadas a investimentos, empréstimos, contratações e outras operações acima de determinados valores;

(5) direito de veto sobre a aprovação de relatórios gerenciais, demonstrações financeiras e indicação de auditores independentes.

Além disso, indicou uma lista de situações que indicam direitos de minoritários que tratam de mera proteção de investimento, tais como:

(1) direito de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação de outras matérias em assembleia geral, tais como: operações societárias relevantes, fusões, incorporações, aquisições, emissões de títulos da sociedade a terceiros, aprovação de dividendos e remuneração máxima, pedidos de falência, dentre outros;

(2) direito de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação de outras matérias pelo conselho de administração;

(3) direito de indicar membros para o conselho de administração, desde que não combinado com direito de veto sobre matérias estratégicas;

(4) direito de veto sobre contratos entre companhia do controlador ou sociedades que o acionista controlador tem interesse;

(5) direito de veto sobre avaliações de bens destinados à integralização de aumento de capital.

No caso concreto, haveria a configuração de controle compartilhado, segundo a jurisprudência da SG/Cade, tratando-se de operação de notificação obrigatória. Não obstante, o cerne da questão seria avaliar se a aplicação da sanção se mostraria proporcional e razoável diante das imensas particularidades que permeiam o caso concreto e da profunda controvérsia jurídica subjacente sobre controle compartilhado na jurisprudência do Conselho.

Diante de todas as controvérsias na aplicação dos dispositivos da resolução e da ausência de orientação interpretativa do Cade sobre a matéria, o conselheiro afirmou que as requerentes teriam motivos razoáveis para entender que a operação não atingia os requisitos obrigatórios de notificação.

Dessa forma, tendo em vista os princípios da proporcionalidade e razoabilidade que norteiam a atividade administrativa, bem como o comando do artigo23 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb), seria desproporcional a aplicação de multa pela prática de gun jumping.

O mencionado dispositivo da Lindb determina que a decisão administrativa, que estabelece interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado e impõe novo dever ou condicionamento de direito, deverá prever algum regime de transição para que o novo dever possa ser cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo dos interesses.

Embora no caso concreto não se trate de orientação nova, a falta de sistematização e publicização dos entendimentos dificultaria a compreensão das hipóteses em que determinados direitos de minoritários são considerados como elementos de configuração de controle compartilhado.

A fixação de teses jurídicas acerca da interpretação do artigo 4º, § 1º pela orientação dos precedentes, bem como a consolidação de parâmetros objetivos para aferição de controle compartilhado a partir da análise do acordo de acionistas revela-se como uma orientação normativa, não propriamente nova, mas que não poderia ser antecipada pelas representadas.

Desse modo, a aplicação de sanção contrariaria os princípios da segurança jurídica, além de que se mostraria pouco eficiente para fins de prevenção geral.

Por fim, o conselheiro trouxe para o debate do tribunal recomendações para adoção de abordagens temáticas e pragmáticas do Cade para o tratamento dos direitos de acionistas minoritários no controle de estruturas, seja através da revisão da Resolução Cade nº 33/2022 com o intuito de estabelecer critérios quantitativos e qualitativos para a identificação de casos notificáveis envolvendo tais direitos, seja, eventualmente, através da elaboração de um guia de orientação aos agentes econômicos.

Decisão do tribunal

A solução ofertada pelo relator encontrou o respaldo de todo o tribunal, que decidiu, de forma unânime, pelo reconhecimento da prática de gun jumping, mas pela não aplicação da multa em virtude das controvérsias em torno da aplicação dos requisitos de notificação de operações envolvendo direitos de acionistas minoritários e as divergências da jurisprudência do Cade relacionados ao caso, nos termos do artigo 23 da Lindb.

Essa decisão do Tribunal do Cade lança luz à discussão acerca dos critérios de configuração de grupo econômico envolvendo operações com fundos de investimento, bem como sistematiza e publiciza a atual interpretação orientativa quanto aos parâmetros de verificação de controle compartilhado relacionado aos direitos de acionistas minoritários, nos termos do artigo 4º, §§ 1º e 2º da Resolução nº 33, o que demonstra as preocupações do Conselho com a uniformização da jurisprudência e a garantia de segurança jurídica e previsibilidade às decisões da autarquia.

Em contrapartida, a comunidade antitruste fica na expectativa para verificar se o Cade dará outros passos no sentido de estabelecer, de forma pragmática, pública e sistematiza, critérios quantitativos e qualitativos para a identificação de casos notificáveis envolvendo fundos de investimento, configuração de grupo econômico e análise de direitos de acionistas minoritários, seja através de revisão da resolução, seja, eventualmente, através da elaboração de um guia de orientação aos agentes econômicos.

 


[1] Vide § 19 do Parecer SG nº 112/2023 (SEI 1213859) no AC nº 08700.001465/2023-05.

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