Opinião

Direito antitruste está na moda: fashion law e operações de fusão e aquisição

Autores

  • Juliana Oliveira Domingues

    é secretária nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor membro do Comitê Executivo do Consu e professora doutora de Direito Econômico da FDRP-USP com pesquisa de pós-doutorado realizada como visiting-scholar na Universidade de Georgetown (EUA).

  • Fernanda Lopes Martins

    é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Pesquisadora em Direito Antitruste. Integrante da Women in Antitrust (WIA) atuante na Diretoria Acadêmica. Consultora não-governamental (NGA) na International Competition Network (ICN).

  • Lauren Thaís Petter

    é graduanda em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Intercambista no 42º PinCade. Mentorada no Women in Antitrust e membro do Women in Antitrust Júniors. Estagiária na Procuradoria Federal Especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PFE-CADE).

25 de março de 2024, 7h04

Há dez anos, de forma inédita, criou-se um grupo permanente de pesquisa sobre Fashion Law na Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto. O tema também originou um curso de extensão, na mesma unidade da USP, que teve como um dos seus frutos mais conhecidos o livro “Fashion Law: O Direito está na Moda [1]

Há oito anos, na mesma “onda” de crescimento dos olhares jurídicos à cadeia produtiva da moda, ofertou-se formalmente um curso de extensão de fashion law (pela primeira vez) na USP. Na ocasião, houve lotação em sala de aula de alunas e alunos vindos de diversas localidades do país.

No mundo, o primeiro centro de estudos dedicado ao Fashion Law teve incentivo do Council of Fashion Designers of America sob presidência de Diane von Furstenberg, na Fordham Law School (NY).

No Fashion Law Institute a professora e advogada Susan Scafidi, passou a ser conhecida por disseminar o termo “fashion law” por meio da criação de um curso em 2006. Desde então, tivemos a criação de outros cursos ao redor do mundo, especializações e, atualmente, contamos com várias comissões em seccionais distintas da OAB.

A cadeia produtiva da moda, o varejo e os canais de e-commerce sempre tiveram uma relação estreita com os temas concorrenciais (isto é, tanto em casos “clássicos” de concorrência desleal como casos famosos no direito concorrencial).

Casos envolvendo importações paralelas [2], concorrência parasitária e sham litigation são apenas alguns exemplos da comunicabilidade dos diferentes ramos jurídicos envolvidos dentro do universo do fashion law. Na prática, não são raros os casos de fusão e aquisição e acordos societários, com diferentes desenhos, envolvendo a indústria da moda.

Parte desses acordos passam pela análise da autoridade da concorrência, por meio do controle de estruturas realizado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

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As recentes notícias envolvendo os grupos da moda Arezzo&Co e o Grupo Soma, movimentou a mídia e, ao mesmo tempo levantou a pergunta: Por que o Cade precisa analisar essa operação? Ou seja, surgiram dúvidas sobre os motivos que levaram a necessidade de uma operação como essa a ser notificada ao Cade.

De acordo com o comunicado oficial, a empresa pós-fusão contará com mais de 30 marcas e mais de 20 mil funcionários divididos em quatro eixos de negócios segmentados pelas empresas como: i) calçados e bolsas; ii) vestuário e lifestyle feminino; iii) vestuário e lifestyle masculino; iv) vestuário democrático.

Atribuições do Cade

Nesse sentido, vale lembrar que o Cade é a autarquia federal responsável por analisar os atos de concentração empresarial no Brasil. Contudo, muitos desconhecem as atribuições da autarquia, assim como “quais casos” devem ser notificados e os riscos de uma eventual decisão de não notificação.

A legislação 12.529/2011 estabeleceu critérios objetivos, relacionados ao faturamento das empresas (e/ou seus grupos econômicos), para determinar quais operações devem ser obrigatoriamente notificadas ao Cade.

De acordo com a Portaria Interministerial nº 994, de 30 de maio de 2012, ainda em vigor, são submetidas à análise da autarquia os atos de concentração econômica em que, cumulativamente: (i) pelo menos uma das empresas ou grupos econômicos tenham atingido o faturamento, no ano anterior a operação, de R$ 750 milhões e; (ii) pelo menos uma das empresas ou grupos econômicos tenham atingido o faturamento, no ano anterior a operação, de R$ 75 milhões.

A partir da previsão legal e do estabelecimento de um critério objetivo de notificação, a autoridade antitruste avalia se existem preocupações concorrenciais. O primeiro passo é sempre a definição dos mercados relevantes dos Grupos Econômicos envolvidos (inclusive do ponto de vista geográfico) e dos produtos em questão (se complementares ou substituíveis) [3].

A partir de uma boa e aprofundada compreensão do(s) mercado(s) envolvido(s) é que o Cade avalia se a operação pode ser integralmente aprovada, ou se será aprovada com restrições ou, eventualmente, reprovada [4]. É a análise de mercado que garante o equilíbrio da livre concorrência e da livre iniciativa, princípios que balizam o antitruste.

Lei antitruste

A lei antitruste é clara ao destacar a necessidade de análise prévia da operação (ex ante). Ou seja, as empresas não podem trocar informações concorrencialmente sensíveis. A consumação prévia da operação resulta no chamado “gun jumping”, que nada mais é do que a prática de atos de consumação da operação antes que autoridade antitruste se manifeste pela aprovação total, aprovação com restrições ou reprovação (que ocorre em menos de 1% dos casos).

A LDC (Lei de Defesa da Concorrência) e a jurisprudência são claras: gun jumping é uma infração processual, e sendo assim, constatada sua hipótese de ocorrência, deverá ser instaurado um procedimento administrativo para apuração de ato de concentração (Apac). É dentro do Apac que também se averigua a necessidade de imposição de sanção, na forma de pagamento de uma contribuição pecuniária.

De acordo com a Resolução n. 24/2019, a multa deverá ser calculada a partir de uma pena-base de R$ 60 mil, que poderá chegar à R$ 60 milhões, sendo majorada da seguinte forma: (i) pelo decurso do prazo, no valor equivalente a 0,01% do valor da operação por dia de atraso, contado da data da consumação até a notificação do ato de concentração ou da emenda, caso houver; (ii) pela gravidade da conduta, em até 4% do valor da operação e; (iii) pela intencionalidade, em até 0,4% do faturamento médio dos grupos econômicos envolvidos, conforme a boa-fé do infrator [5].

Nesse sentido, qualquer operação deve ser apresentada ao Cade quando as partes (ou seus grupos econômicos) cumprem com os requisitos objetivos fixados na LDC. Isto se aplica à cadeia industrial e varejo da moda nacional, tal como aconteceu nos casos já analisados historicamente.

Dessa forma, tanto a consumação de uma operação de notificação obrigatória que tenha sido notificada ao Cade (mas sem decisão final), como uma operação não notificada (que deveria ser em razão do critério de faturamento), abrem espaço para a configuração do gun jumping e imposição de uma sanção pecuniária que vai variar de R$ 60 mil até R$ 60 milhões.

Reprodução

Existem diversas operações notificadas que envolvem o mercado fashion. Um exemplo interessante que ganhou destaque em 2020 foi a aquisição da Nike do Brasil pelo Grupo SBF, controlador da empresa Centauro. A operação foi aprovada com restrições uma vez que, segundo o ex-Conselheiro Luis Braido, Relator do caso, a aquisição apresentava preocupações de integração vertical, considerando que a SBF se tornaria a distribuidora exclusiva dos produtos Nike do Brasil.

Para enfrentar esta preocupação concorrencial, foi negociado um Acordo em Controle de Concentrações (ACC) [6], válido por três anos (e renovável por mais dois), com a fixação de remédios comportamentais visando mitigar condutas anticompetitivas de clientes da Nike do Brasil.

O Acordo também teve o intuito de evitar que as duas empresas acessassem informações sensíveis de concorrentes. O Tribunal do Cade seguiu o entendimento do Conselheiro Relator, aprovando a aquisição condicionada ao cumprimento do referido Acordo.

Em 2016, outra fusão que chamou a atenção midiática envolveu grandes holdings do mercado da moda. Devido ao cumprimento do critério objetivo de notificação, o caso passou pela análise do CADE: o caso Restoque e InBrands, que envolveu marcas como Le Lis Blanc, Rosa Chá, Dudalina, Ellus, Bobstore, Alexandre Hershcovitch, e cuja fusão foi aprovada sem restrições.

Na ocasião, o Tribunal do Cade entendeu que a concentração dos mercados relevantes envolvidos não geraria efeitos concorrenciais. Em 2021, a própria Soma incorporou a centenária marca Hering, sem sofrer a imposição de quaisquer restrições na sua aprovação pelo Cade.

Portanto, há muito tempo “o antitruste está na Moda”. Há uma relação permanente entre o mundo da moda e o direito aplicado à cadeia produtiva da moda (Fashion Law). O Direito Concorrencial ou Antirtruste, é apenas mais um dos Direitos que permeia essas relações.

Um bom exemplo para destacar a importância da análise antitruste em todos os desenhos societários foi a recente fusão das empresas Arezzo&Co e o Grupo Soma, notificada ao Cade diante dos faturamentos das respectivas empresas/grupos econômicos. Se a notificação não tivesse sido realizada, certamente veríamos a abertura de um Apac com eventual aplicação de sanção pecuniária pela prática de gun jumping. É por isso que é sempre melhor prevenir do que remediar.

 

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[1] : DOMINGUES, Juliana Oliveira (coord) et. all. Fashion Law: o Direito está na moda. São Paulo: Singular, 2019.

[2] DOMINGUES, Juliana Oliveira; MIELE, Aluísio de Freitas. Importação paralela e concorrência desleal: a importância para o Fashion Law – do debate teórico a uma análise jurisprudencial. In: DOMINGUES, Juliana Oliveira (coord). Fashio Law: o Direito está na moda. São Paulo: Singular, 2019.

[3] DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan. Direito Antitruste. 5ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.101-108.

[4] Nesse contexto, de acordo com o Anuário do CADE de 2023, a autarquia analisou 611 operações, sendo que 592 foram aprovadas sem restrições, o que corresponde a, aproximadamente, 96,90% das operações analisadas pela autarquia em 2023. Além disso, 5 operações foram analisadas mediante a realização de um Acordo de Controle de Concentrações (ACC), 8 não foram conhecidos, 4 perderam o objeto e apenas 2 foram reprovados. Assim, vê-se que o CADE apenas propõe remédios ou reprova as operações em casos excepcionais, dado que esses casos correspondem a 0,82% e 0,32% das operações, respectivamente, onde verifica que realmente existem problemas concorrenciais.

[5] DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan. Direito Antitruste. 5ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.92

[6] “Em suma, pode o CADE decidir [à respeito de um ato de concentração] de três formas: pela aprovação incondicional, pela imposição de restrições (ou adoção de remédios), ou pela rejeição (ou veto) da operação de concentração econômica. Na hipótese de aprovação com restrições, o CADE pode adotar “remédios” estruturais (como venda de ativos tangíveis e intangíveis) e/ou comportamentais (como a imposição de obrigações de não discriminar preços, de fornecer relatórios ao CADE etc).  […] Nos casos submetidos à análise do CADE nos quais é constatada possibilidade de geração de efeitos negativos à concorrência, as Requerentes têm a prerrogativa de, antes mesmo do julgamento final de mérito, buscar Acordo em Ato de Concentração (ACC), o qual é celebrado diretamente com o CADE. Por meio do ACC, busca-se firmar antecipadamente um remédio já previsto na Comunicação de Objeções de modo a viabilizar a aprovação da operação por meio da mitigação dos potenciais efeitos negativos que dele poderiam ocorrer”. Ib. p, 121 e 122.

Autores

  • professora doutora de Direito Econômico da USP (FDRP-USP). Procuradora-chefe do Cade. Ex-secretária nacional do consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública (2020/2022). Ex-presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (2020/2022) e do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP).

  • é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Pesquisadora em Direito Antitruste. Integrante da Women in Antitrust (WIA), atuante na Diretoria Acadêmica. Consultora não-governamental (NGA) na International Competition Network (ICN).

  • é graduanda em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Intercambista no 42º PinCade. Mentorada no Women in Antitrust e membro do Women in Antitrust Júniors. Estagiária na Procuradoria Federal Especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PFE-CADE).

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