Opinião

Lei 14.754: tributação de investimentos pessoa física no exterior por meio de fundos

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10 de abril de 2024, 16h23

Desde os primeiros dias de exercício do atual mandato eletivo, o governo federal se empenha em encontrar ferramentas para o aumento de arrecadação tributária.

Uma das ferramentas escolhidas foi a alteração de sistemáticas de tributação que postergam a exigência tributária a um evento futuro e incerto de realização de riqueza, para garantir à União a arrecadação tributária periódica, desconectada desse evento de realização.

A Lei nº 14.754, de 12.12.2023 concretiza esse intuito arrecadatório, conforme se verificará mais à frente.

O preâmbulo da lei bem sintetiza o seu objeto: “dispõe sobre a tributação de aplicações em fundos de investimento no País e da renda auferida por pessoas físicas residentes no País em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior […]”.

As duas situações objeto da disciplina legal se submetiam a regras de tributação da renda no mencionado futuro incerto: na alienação/resgate/amortização de cotas ou na realização do investimento no exterior/recebimento de dividendos.

A lei em análise foi objeto de conversão de medida provisória em projeto de lei de conversão, que assim justificava sua inovação legislativa:

“41. A relevância e a urgência da medida são justificadas em função das perdas de arrecadação tributária que o Brasil experimenta ano após ano devido à deficiência existente na legislação dos imposto de renda que permite a utilização desse tipo de estrutura por contribuintes dotados de elevada capacidade contributiva como forma de evitar ou postergar a tributação no Brasil, deficiências estas que, se corrigidas, tornarão o sistema tributário mais justo e permitirão a arrecadação das receitas necessárias para fazer frente aos gastos que o Estado brasileiro deve realizar, razão pela qual se submete também à deliberação o pedido de que haja a solicitação de urgência para tramitação do projeto de lei, nos termos do art. 64, §1º, da Constituição Federal.”

Se havia dúvida, o legislador as afastou. A intenção da norma é antecipar a arrecadação tributária. E é justamente isso que deve pautar toda a interpretação exposta na sequência.

Ressalve-se que o objeto do presente trabalho parte do pressuposto de que a tributação é constitucional. Não há análise da compatibilidade da tributação com os parâmetros constitucionais.

Capítulos I e II da Lei nº 14.754: finalidade arrecadatória da regra geral de tributação

Como adiantado, a Lei nº 14.754 disciplina a tributação dos investimentos realizados por pessoas físicas no exterior em seu capítulo I. Também regula a tributação dos rendimentos em fundos de investimento, em seu capítulo II.

A divisão topológica e estanque da lei por objetos faz crer que as normas relativas a cada um de seus objetos seriam aplicadas a fatos subsumíveis a um ou outro, jamais pertinente a ambos os conjuntos normativos.

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Não seria difícil prever que a prática apresentaria fatos que, a princípio, se mostram pertinentes às duas normatizações.

Num cenário ideal, portanto, a lei deveria trazer a disciplina específica para essa situação. Não é o que se vê na norma posta.

A lei não prevê especificamente a tributação dos investimentos que contemple as duas situações: investimento realizado por pessoa física no exterior; por meio de fundos de investimento localizados no Brasil.

As pessoas físicas podem realizar investimentos diretamente no exterior. Contudo, podem também concentrar seus investimentos em fundos de investimento, inclusive para realizar os investimentos no exterior.

A falta de tratamento normativo específico desencadeia um conflito aparente de normas: deve-se aplicar as normas pertinentes aos investimentos de pessoa física no exterior; ou aos investimentos em fundos de investimento?

A interpretação sistemática das normas, paripasso ao entendimento da finalidade das normas, resolve a questão e confirma que o conflito é meramente aparente — em verdade, as normas coexistem harmonicamente entre si e a construção hermenêutica soluciona o problema sem necessidade de derrogação de normas.

O presente trabalho objetiva propor solução ao problema por meio interpretativo. É o que fará adiante.

Solução interpretativa ao conflito aparente de normas dos capítulos I e II da Lei 14.754

A princípio, o investimento feito por pessoa física em fundo de investimento no Brasil, que por sua vez faz investimentos em ativos no exterior, reclama aplicação das normas contidas no capítulo II da Lei nº 14.754.

Por outro lado, sabe-se que as autoridades fiscais jamais veem as operações realizadas no Brasil de forma tão simples quanto elas são: podem entender que, em verdade, os investimentos dos fundos localizados no Brasil em ativos financeiros no exterior são investimentos feitos pela pessoa física no exterior, hipótese em que a normatização aplicável seria aquela do capítulo I.

A posição do presente trabalho é que a segunda alternativa não faz sentido, partindo-se da finalidade da lei e da interpretação sistemática das normas em estudo.

Nos termos do artigo 2º da Lei nº 14.754, “a pessoa física residente no País declarará, de forma separada dos demais rendimentos e dos ganhos de capital, na Declaração de Ajuste Anual (DAA), os rendimentos do capital aplicado no exterior, nas modalidades de aplicações financeiras e de lucros e dividendos de entidades controladas”.

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O parágrafo 1º do mesmo dispositivo prevê a incidência do IRPF à alíquota de 15% no ajuste anual sobre a parcela anual dos rendimentos. O artigo 5º da lei determina que “os lucros apurados pelas entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no País […] serão tributados em 31 de dezembro de cada ano, na forma prevista no art. 2º desta Lei’.

Resumidamente, ditos rendimentos passarão a ser tributados em 31.12 de cada ano, independentemente de distribuição de dividendos ou eventos de realização que passem a titularidade dos rendimentos ao investidor pessoa física no Brasil.

Dessa forma, a União garante a tributação periódica, anual, de rendimentos que podem jamais se realizar.

Portanto, pode-se dizer que a finalidade do grupo de normas do capítulo I da Lei nº 14.754 é antecipar a tributação de valores que poderiam jamais se submeter à tributação pela sistemática anterior.

O capítulo II da Lei nº 14754, por sua vez, inova no ordenamento jurídico ao adotar como regra para os fundos fechados o que antes era exceção: a tributação periódica dos rendimentos dos cotistas de Fundos de investimento, naquilo que se convencionou chamar de “come-cotas”.

Por tal sistemática, conforme dispõe o artigo 17 da Lei nº 14.754, os rendimentos dos cotistas ficarão sujeitos à tributação na fonte no último dia útil dos meses de maio e novembro e na data da distribuição de rendimentos, da amortização ou do resgate de cotas, caso ocorra antes.

Anteriormente, ditos rendimentos seriam tributados exclusivamente na ocorrência de eventos de realização, como a distribuição de rendimentos, amortização ou resgate/alienação de cotas.

A exemplo da tributação dos investimentos das pessoas físicas no exterior, os investimentos em fundos de investimento passam a ser tributados antecipada e periodicamente.

Chega-se, então, aos investimentos no exterior e em fundos de investimento no Brasil.

Situação dos investimentos feitos por pessoas físicas em fundos de investimento localizados no Brasil que investem no exterior a partir da interpretação sistemática e finalística

Consoante dito acima, é possível que as autoridades fiscais pretendam tributar os valores como rendimentos auferidos no exterior por pessoas físicas residentes no Brasil.

Nesse caso, questiona-se a necessidade de aplicação das normas contidas no capítulo I, cuja finalidade é a antecipação da tributação para garantir arrecadação periódica.

Ora, considerando que o investimento, ainda que realizado em ativos no exterior, foi feito por intermédio de fundos de investimento localizados no Brasil, a regra específica desse fato (investimento em fundo localizado no Brasil) já cumpre a finalidade pretendida pela norma do capítulo I, o que esvazia a necessidade de sua aplicação.

Aplicar ambas as normas (do capítulo I e II) criará confusão absolutamente desnecessária, ao se considerar a teleologia normativa: o contribuinte será obrigado a submeter seus rendimentos advindos do fundo (e dos ativos no exterior) em maio e novembro de cada ano, via retenção na fonte, e em 31.12 via inclusão na declaração de ajuste anual.

O presente trabalho não entrará em detalhes da harmonização das duas tributações, mas o procedimento poderia acarretar dupla tributação das mesmas riquezas, caso não se abata os valores submetidos à tributação na fonte do capítulo II da tributação na declaração de ajuste anual do capítulo I; e problemas na forma de abatimento da base tributável de uma e de outra, considerando a distinção das formas de contabilização dos investimentos na pessoa física e nos fundos de investimento.

Como se viu, todavia, nenhum dos dois problemas é necessário ao se adotar interpretação sistemática das normas. A análise conjunta das duas normas aplicáveis deixa claro que a aplicação da norma específica dos investimentos no exterior tem sua finalidade esvaziada pela própria tributação dos rendimentos das aplicações nos fundos, que já antecipa tributação e arrecadação à periodicidade anual (em verdade, duas vezes ao ano).

Na prática, então, se a norma de tributação das aplicações nos fundos cumpre o papel da norma de tributação dos investimentos de pessoas físicas no exterior, tem-se uma norma específica que afasta a aplicação de outra, menos adequada ao caso concreto.

E os fundos de investimentos excetuados do sistema “come-cotas”?

O leitor, então, pode indagar: e a situação dos fundos de investimento excepcionados da tributação do “come-cotas”?

De fato, se uma pessoa física investe em fundo de investimento em ações localizado no Brasil, e o fundo investe no exterior, a rigor a finalidade da norma de tributação do investimento no exterior não se concretizaria — a tributação ocorreria apenas num dos eventos de realização mencionados acima (distribuição de rendimentos, amortização de cotas, resgate/alienação de cotas).

Uma conclusão apressada levaria à aplicação da tributação nos termos do capítulo I da Lei nº 14.754.

Fato é: o investimento continua a ser realizado em um fundo de investimento, a manter pertinente as regras contidas no capítulo II; e não procede a ideia de que a finalidade da tributação do Capítulo I não se concretiza em situação como essa. Explica-se.

Nesse ponto, é necessário dar um passo atrás para em sequência retomar o avanço no raciocínio.

Viu-se de forma reiterada que a finalidade das novas normas de investimento no exterior e de aplicações em fundos de investimento no Brasil é antecipar a tributação e garantir arrecadação periódica.

Apesar disso, a mesma lei que instituiu a sistemática concretizadora dessa finalidade excetuou, por vontade deliberada, certos fundos de investimento dessa lógica de tributação.

Para os fundos de investimento não incluídos na regra geral, o legislador entendeu que havia outras finalidades mais importantes que a arrecadatória que deveriam ser preservadas pelo regramento tributário.

Por essa lógica, todos os investimentos dos fundos de investimento excetuados da sistemática “come-cotas” realizados no Brasil serão tributados exclusivamente no evento de realização.

Não há qualquer critério de discrímen que justifique os investimentos realizados por esses fundos no exterior não se submetam à mesma regra.

Pode-se adotar, por isso, um passo-a-passo:

  1. A lei quer antecipar a tributação dos investimentos realizados por pessoas físicas no exterior;
  2. Essa finalidade já é preenchida pela tributação no nível dos fundos, caso o investimento seja realizado por intermédio deles; e
  3. No caso de investimentos realizados por fundos excetuados da sistemática de “come-cotas”, a exemplo dos fundos de investimento em ações, em direitos creditórios e em participações e índice de mercado configurados como entidades de investimento, há uma finalidade adotada pela própria lei que se sobrepõe à arrecadatória;
  4. Logo, a interpretação sistemática e finalística leva à não aplicação da tributação do capítulo I para os investimentos feitos pelas pessoas físicas no exterior via fundos de investimento localizados no Brasil.

O que diz a interpretação literal?

Deve-se considerar que as duas sistemáticas de tributação estão previstas na mesma lei. Se a Lei optou por não antecipar a tributação de rendimentos de aplicações em determinados fundos, escolheu fazê-lo tanto para os seus investimentos no Brasil como para os do exterior.

O presente trabalho ponderou anteriormente que não seria difícil prever que determinado fato poderia envolver tanto um investimento no exterior como a aplicação num fundo.

Justamente pela sua previsibilidade, entende-se que o silêncio da norma foi intencional e eloquente: o legislador escolheu aplicar a norma que teria aplicação direta. Se a aplicação é realizada via fundo de investimento localizado no Brasil, aplica-se-lhes as normas pertinentes ao fundo.

Noutros termos, a norma considera que o fato é “aplicação em fundos de investimento”, em vez de “investimentos no exterior”.

Então, além da interpretação sistemática e teleológica, a própria interpretação literal ratifica a conclusão de que se aplica aos investimentos realizados no exterior por fundo de investimento localizado no Brasil as normas pertinentes às aplicações nos fundos.

Conclusão

Do cenário abstrato ao caso concreto, não deveria haver qualquer dúvida sobre a aplicação das normas atinente a fundos de investimento nos casos em que tais fundos de investimento realizam investimentos no Brasil e no exterior, concomitantemente.

As autoridades fiscais não poderiam argumentar, com o mínimo de plausibilidade, que a pessoa física interpôs o fundo exclusivamente com o intuito de usufruir de tratamento tributário privilegiado.

Mesmo assim, nos casos de investimentos dos fundos apenas no exterior, não há norma proibitiva que o contribuinte pessoa física se valha da estrutura que lhe faz mais sentido, notadamente porque a legislação poderia ter remediado a situação a partir da aplicação expressa das normas do capítulo I para os investimentos no exterior realizados por intermédio de fundos, mas não o fez.

Mais do que isso, o contribuinte pode adotar dita estrutura com o intuito exclusivo de economizar tributo; o intuito particular do contribuinte não altera o fato de que a própria legislação quer a utilização desses fundos — tanto que os excetuou da sistemática do “come-cotas”.

Se o legislador não quis combater essa escolha e, mais do que isso, talvez tenha a incentivado, não há nada que impeça o contribuinte de fazê-la.

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