Opinião

Vale a pena correr o risco de exercer o direito de ser feliz?

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26 de março de 2024, 17h22

Recentemente a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça absolveu, em condição excepcionalíssima (1), um homem acusado de estuprar uma menina de 12 anos de idade.

Tal decisão chama a atenção porque relações sexuais com menores de 14 anos gera automaticamente uma presunção absoluta de vulnerabilidade, que independe da vontade da menor, devendo o agente responder pelo crime do artigo 217-A (2) do Código Penal.

No caso, em questão, tanto a vítima quanto o réu correram um sério risco ao exercer seus direitos de serem felizes (3).

A questão que se pretende levantar, para além do julgado divulgado, é: vale a pena correr o risco de exercer o direito de ser feliz?

A nossa atual Constituição e nossas Leis são resultado da vontade do povo. O poder constituinte e o Parlamento representam a vontade do povo. Daí a legitimidade e a eficácia de nossas Constituições e leis durante suas vigências.

A verdade, no entanto, é que essa vontade do povo é uma ficção jurídica porque nenhuma de nossas constituições ou leis foram fruto da vontade de todos, mas tão somente de uma parcela da sociedade que conseguiu se fazer prevalecer.

Só queremos dizer com isso que sempre houve divergências na sociedade em que alguns direitos foram reconhecidos e outros não pelas constituições e leis. Na vigência de nossa atual Constituição e leis, não é diferente, pois existem direitos reconhecidos e protegidos, e outros não. Mas todos os cidadãos entendem ter direitos, mesmo aqueles rebeldes que insistem em exercer direitos não reconhecidos e/ou protegidos.

Crimes contra a dignidade

Um exemplo bem contundente consiste nos crimes contra a dignidade sexual. Houve uma época em que ter relações sexuais com menores de 18 anos era crime, mas mesmo assim muitos acreditavam poder exercer esse direito de ser feliz não reconhecido pelo nosso ordenamento jurídico e corriam o risco de serem punidos criminalmente.

No entanto, de 2009 para cá, com o advento da Lei 12.015/2009, esse direito das minorias discriminadas e criminalizadas, por terem relações sexuais com maiores de 14 anos, tiveram seus direitos finalmente reconhecidos. E deixou de ser crime o relacionamento amoroso e sexual com maiores de 14 anos, desde que estes últimos tenham condições de consentir.

Spacca

Do ponto de vista legislativo, com a promulgação da referida Lei 12.015/2009, parece que tanto para a vítima maior de 14 anos quanto para o até então criminoso valeu a pena correr o risco de ser feliz, já que os pretendidos direitos das vítimas e dos agressores sexuais tornaram-se reconhecidos, desde que o relacionamento sexual seja consensual, repita-se.

Mas valeria a pena, para vítimas e agressores sexuais, correrem o risco de serem felizes quando apenas os direitos das vítimas são reconhecidos pelo nosso ordenamento jurídico?

Do ponto de vista do sujeito ativo dos crimes contra a dignidade sexual, sejam as vítimas de estupro vulneráveis ou não é bem definida a situação. Qualquer forma de violência ou grave ameaça para constranger uma pessoa a realização de relações sexuais contra a vontade dela é crime, devendo o agente ser severamente punido, desde que respeitados os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

O risco que os criminosos sexuais atuais correm pelo direito que acreditam terem de serem felizes é a perda de suas liberdades. Tendo em vista que a existência de leis severas com punições pesadas pelo Judiciário não é capaz de inibir os crimes de natureza sexual contra as pessoas vulneráveis ou não na sociedade, parece que para essa parcela da sociedade vale a pena o risco de ser feliz a custa da sua privação da liberdade e do sofrimento alheio.

A visão das vítimas

E do ponto de vista das vítimas? Vale a pena correr o risco de ser feliz?

Toda pessoa, de qualquer sexo, com menos ou mais idade, tem o direito e a liberdade de expressar a sua individualidade, a sua beleza, e a sua sensualidade. Tais pessoas devem se conter, se reprimir apenas porque pode incitar os desejos sexuais de pessoas que não tem o senso de responsabilidade e de limites na sociedade? Tais pessoas devem pautar suas relações sociais na desconfiança de todos, no perigo de ser agredida a qualquer momento, beirando a paranoia?!

A resposta não é tão simples. É óbvio que toda pessoa tem direito de ser feliz, de cultivar a sua autoestima. De se vestir como quiser e mostrar ao mundo o quanto pode ser desejada e de poder escolher quem quiser para ser o seu parceiro(a) sexual. No entanto, há um risco a ser assumido em exercer esse direito de ser feliz.

A razão é que existe na sociedade uma parcela de cidadãos que, para serem felizes, não hesitam nem hesitarão em violar os direitos de os outros serem felizes. Ou seja, para satisfazerem seus desejos sexuais, estuprarão quem quer que seja sem medo de serem investigados, processados e punidos pelo Estado.

Surge, então, uma outra questão, a resposta dada pelo Estado é suficiente para reparar as consequências do crime de estupro sofrido pelas vítimas? O agressor sexual poderá perder a sua liberdade e sofrer os rigores do sistema penitenciário. É verdade.

Poderá também sofrer dura diminuição de seu patrimônio, se tiver algum(!), ao ser obrigado a indenizar a vítima por danos materiais e morais. Também é verdade. Mas é igualmente verdade que as consequências pós-traumáticas desses crimes causam imenso sofrimento às  vítimas pelo resto de suas vidas com depressão, quando não raro aumentam tristemente as estatísticas de suicídio país afora.

Em conclusão, a resposta à indagação “vale a pena correr o risco de exercer o direito de ser feliz” só pode ser respondida pelas vítimas ou potenciais vítimas dos crimes contra a dignidade sexual na sociedade.

 


1. https://www.conjur.com.br/2024-mar-22/5a-turma-do-stj-mantem-presuncao-de-estupro-de-vulneravel-em-986-dos-casos/

2. Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1 o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 3 o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 4 o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

3. Uso a expressão exercer o direito de ser feliz no sentido de que toda pessoa humana tem dignidade e tem direitos assegurados na Constituição Federal de 1988 e na legislação infraconstitucional de procurar ser feliz em sua plenitude, inclusive exercendo livremente sua sexualidade ao se relacionar com quem e como quiser, nos termos do artigo 1º, III da CF/88.

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