Opinião

Anatomia de uma queda de vítimas de violência sexual nos discursos jurídicos

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13 de março de 2024, 6h01

O que o longa “Anatomia de uma Queda”, indicado a cinco categorias no Oscar 2024, tem em comum com os casos Daniel Alves e Mariana Ferrer? A diretora Justine Triet não coloca na tela mais um filme de júri. Ela nos introduz a uma gama de discursos produzidos no espaço júri. É nesse lugar que a atriz principal é acusada de ter matado o seu marido.

Para além da polarização da acusação, que sustenta o homicídio, e da defesa, que trabalha com a dúvida do suicídio, muitos discursos são oferecidos ao grande público. Ali estão presentes os discursos da vítima, da ré, do policial civil, do psiquiatra e do filho do casal. A prova técnica do homicídio passa a ser confrontada com os fatos íntimos da vida do casal e as posturas pessoais da ré.

A história ficcional do homicídio e os dois julgamentos de estupro dos casos Daniel Alves e Mariana Ferrer têm em comum, justamente, os discursos que reproduzem no julgamento os estereótipos de gênero, ou seja, os específicos papéis atribuídos às mulheres, seja na condição de rés ou de vítimas.

Não importa, conforme explicam Rebecca Cook e Simone Cusack [1], quais sejam as características individuais de meninas e mulheres.

Todas as dimensões de sua personalidade serão filtradas conforme a visão generalizada acerca do grupo ao qual são identificadas. Por meio do estereótipo, presume-se que todos os membros daquele grupo possuem idênticos atributos.

Para além disso, não podemos ignorar que em muitas culturas o gênero e a idade surgem como aspectos normalmente relevantes na produção e compreensão de diferentes formas de discurso, como observa Teun A. van Dijk. Logo, devemos considerar quais as formas do discurso (estilo, retórica etc.) são influenciadas pelas características do contexto [2].

Diferentemente dos discursos do júri, tornados públicos, nos delitos de estupro dificilmente sabemos qual o tratamento dispensado às vítimas. Nas audiências dos crimes sexuais estão normalmente presentes apenas a/o juíza/juiz, promotora/promotor, advogada/advogado, réu e a pessoa que será ouvida, vítima ou testemunha.

Divulgação

No julgamento do ex-jogador da seleção brasileira, a imprensa não teve acesso aos depoimentos. Embora desconhecido o conteúdo do processo, e se foram ou não repelidos discursos socialmente estigmatizantes da vítima, a condenação de Daniel Alves nos leva a crer que prevaleceu a palavra da vítima.

Para que a perspectiva da vítima fosse a escolhida, em um delito que ocorre longe de testemunhas, foi decisiva a contribuição do protocolo No Callen (Não se Calem). Baseado no acolhimento e respeito à pessoa agredida, o protocolo ao qual aderiu a casa noturna de Barcelona imprimiu maior credibilidade à versão da vítima.

No Brasil, discurso da vítima é questionado

Em terras brasileiras, os discursos culpabilizadores da vítima começaram a ser publicamente questionados em data recente. Os constrangimentos sofridos por Mariana Ferrer, na audiência de instrução do processo de estupro do qual foi vítima, foram divulgados na mídia e resultaram na alteração da legislação processual penal.

A escabrosa situação vivida por Ferrer na referida audiência apenas confirma o que estudos crítico-discursivos há muito demonstram: que a dominação masculina não se limita às situações informais (como o convívio no lar, por exemplo), mas surgem igualmente em contextos públicos e institucionais, conforme refere van Dijk [3].

A Lei nº 14.245/2021 passou a coibir atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas durante as audiências, em especial naquelas que apuram crimes contra a dignidade sexual. O artigo 474-A, na sua nova redação, atribui ao juiz a responsabilidade de impedir qualquer manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração no processo. O uso de linguagem, informações ou material ofensivo à dignidade da vítima ou testemunha poderá resultar, inclusive, na responsabilização civil, penal e administrativa.

Reprodução

Apesar de bem-vinda, a mudança da lei não implica na automática receptividade por parte dos operadores do direito. As práticas jurídicas, que se baseiam na linguagem, falada e escrita, reproduzem discursos estruturados segundo o “contexto, instituição e estrutura social que o emoldura” [4].

O Direito e as instituições jurídicas, igualmente inseridos no meio social que regulam, acabam, muitas vezes, por manter o status quo de subordinação de meninas e mulheres. Em outras palavras, os enunciados proferidos por juízes, promotores, defensores e advogados são manifestações de estruturas sociais mais globais [5].

Por esse motivo, tais produções discursivas podem trazer, no nível oculto, concepções e estereótipos que se fazem na intersecção entre a categoria gênero com outros marcadores sociais e de identidade, tais como raça, orientação sexual, idade, origem regional, deficiência, dentre outros. No caso das vítimas de violência sexual, as construções discursivas realizadas no contexto jurídico acabam por inverter o papel do réu e da vítima.

A esta, restará, na maior parte das vezes, a tarefa de autojustificar-se. Para afastar-se do estereótipo de um tipo específico de mulher, caberá à vítima de violência sexual argumentar que não era promíscua e que não deu causa ao assédio que resultou no estupro, tal como ocorreu com Mariana Ferrer [6].

Desse modelo de inquirição estereotipado nem mesmo escapam meninas de pouca idade, instadas a responder perguntas em audiência sobre práticas sexuais anteriores com outros homens. Não importa a idade da vítima e tampouco se o estuprador foi um desconhecido ou um familiar próximo. A violência sexual, dentro dessa moldura discursiva, será sempre o resultado do desvio de comportamento da menina ou da mulher.

Diane Ponteroto chama a atenção para a armadilha discursiva criada para a vítima de violência sexual, da qual são exigidos comportamentos antagônicos. O tipo socialmente convencionado da vítima de violência sexual requer discrição e comedimento, características associadas à mulher “recatada, educada, de fala mansa e passiva”.

Ao mesmo tempo, espera-se que essa mesma mulher exerça um comportamento antagônico para repelir o agressor de forma enérgica e até mesmo a lutar contra ele no caso de uma investida de cunho sexual [7].

Trabalho para romper com discursos condicionados

O rompimento com esses discursos socialmente condicionados não se faz da noite para o dia. Como operadores do direito, inseridos no mesmo contexto social trazido para o julgamento, podemos dar alguns passos significativos para “sair da cegueira das nossas condições privadas subjetivas” [8].

Primeiramente, é importante reconhecer que não existe neutralidade na aplicação da lei e que esta é um produto político-cultural. Transposta essa etapa, será possível superar posicionamentos reprodutores de estereótipos para levar em consideração outras perspectivas que observem as diferentes vulnerabilidades de meninas e mulheres.

Nesse sentido, o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero é instrumento valioso para a reconfiguração dos discursos jurídicos opressivos de meninas e mulheres [9]. Por meio da Resolução nº 492, de 17 de março de 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a obrigatoriedade de capacitação de juízas e juízes em questões de direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional.

A adesão de outras instituições do sistema de justiça às medidas de sensibilização para atuação sob a perspectiva interseccional de gênero também é aguardada para que os padrões discursivos no ambiente judiciário sejam reconfigurados.

A experiência espanhola nos mostrou que é possível divisar novas perspectivas para as vítimas de violência sexual. A recente decisão judicial que condenou Daniel Alves desafogou angústias não somente da vítima, mas de muitas outras meninas e mulheres que experienciaram situação semelhante. O discurso que mantinha suas dores silenciadas foi substituído por outro, que revelou uma versão habitualmente encoberta no Judiciário.

Assim como ocorreu na ficção, em que o destino da personagem principal de “Anatomia de uma Queda” foi selado por meio da escolha de um discurso, dentre muitos, na vida real a sina das vítimas de violência sexual exige que abandonemos a perspectiva única de nossas mentes.

Abrir-se a múltiplas perspectivas é um esforço árduo e permanente. Inseridos no contexto reprodutor de padrões de condutas, nós, juristas, precisamos romper com os nossos próprios condicionamentos sociais e culturais. Somente por meio desse embate substituiremos uma visão estereotipada de diferentes seres humanos por um julgamento autônomo e imparcial.

 


[1] COOK, Rebecca J.; CUSACK, Simone. Gender stereotyping: transnational legal perspectives. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2010.

[2] DIJK, Teun A. Discourse, Ideology and Context. In:  Journal of Asian Economics, 35 (1-2), 11-40, January 2002, p. 24.

[3] DIJK, Teun A. van. Discourse and Power. New York: Palgrave MacMillan, 2008, pp. 44-46.

[4] WODAK, Ruth. Introduction: some important issues in the research of gender and discourse. In: WODAK, Ruth (ed.). Gender and discourse. London: Sage, 1997, p. 6. Disponível em: https://doi.org/10.4135/9781446250204. Acesso em: 20 fev. 2024.

[5] MENNA BARRETO, Ricardo de Macedo. Estudos Críticos do Discurso Jurídico. Campinas: Pontes Editores, 2021.

[6] MELO, Daniele Mendes de. Direitos do réu vs. deveres da vítima: uma análise crítica feminista do discurso “das garantias processuais” na audiência de Mariana Ferrer. [S.l.]: 2024. No prelo.

[7] PONTEROTTO, Diane. The Repertoire of Complicity vs. Coercion: the Discursive Trap of the Rape Trial Protocol. In: COTTERILL, Jane (ed.). The Language of Sexual Crime. Hampshire; New York: Palgrave Macmillan, 2007, p. 104-125.

[8] COOK, Rebecca J.; CUSACK, Simone. Gender stereotyping: transnational legal perspectives, op. cit.

[9] CNJ. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021. Brasília: CNJ; ENFAM, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf. Acesso em: 22 fev. 2024.

Autores

  • é juíza criminal, coordenadora do Anexo da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Bauru/SP, mestra em Direito pela USP e doutoranda em Direito pela Universidade do Minho, Portugal.

  • é doutor em Direito, professor auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho, investigador Integrado doutorado do Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov), com sede na Escola de Direito da Universidade do Minho, Portugal.

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