Opinião

A disciplina do administrador judicial no PL nº 03/2024 (parte 2)

Autores

10 de maio de 2024, 6h31

Continuação da parte 1

4. Críticas à disciplina proposta

Um dos grandes acertos da Lei nº 11.101/2005 foi estimular a profissionalização da figura do “síndico”, como era denominado o agente que desempenhava as funções correspondentes à do administrador judicial no regime do Decreto-Lei nº 7.661/1945.

Na vigência desse diploma, o posto de síndico deveria ser ocupado, preferencialmente, por um dos maiores credores. Por que era assim? Porque se pressupunha que os maiores credores seriam os mais interessados em promover a liquidação eficiente dos ativos do devedor.

A experiência demonstrou, contudo, que isso não funcionava. E não funcionava por vários motivos. Primeiro, pela própria falta de expertise do credor nomeado síndico. Segundo, por conta da assimetria entre os interesses de tal credor e o restante da coletividade de credores.

Reprodução

Ora, como o credor é um agente auto interessado, ele naturalmente atuará para a satisfação dos seus próprios interesses, mesmo quando isso contrarie os interesses da coletividade. Além disso, os interesses de quem era nomeado síndico variavam no tempo. Afinal, a ordem de prioridades individuais muda conforme as circunstâncias, o que explica por que vários síndicos abandonavam os processos. Isso sem contar os casos em que o síndico era “capturado” pelo próprio devedor, ou atuava para desviar bens da massa, algo especialmente facilitado pela dificuldade que os juízes tinham para monitorar a atuação de diversos síndicos diferentes.

Foi por isso que, mesmo na vigência do DL 7.661/1945, os juízes passaram a nomear, com cada vez mais frequência, síndicos dativos, que não tinham relação alguma com o devedor ou com os credores [1]. Ainda que não se adotasse esta terminologia, já se identificava um típico “problema de agência”, que tornava ineficiente o mecanismo ordinário de indicação do síndico previsto na lei.

E o que fez a Lei nº 11.101/2005 para lidar com esse problema? Primeiro, incorporou a experiência jurisprudencial de que o síndico deveria ser um agente imparcial (e, portanto, nomeado pelo juiz). Segundo, determinou que esse agente deveria ser profissional.

O fato de o administrador judicial ser um agente imparcial, que não está diretamente subordinado aos credores, logicamente favorece a promoção das normas de caráter distributivo contidas na lei falimentar. Vale dizer, favorece a tutela dos credores economicamente mais fracos e, portanto, menos capazes de influenciar a escolha do agente responsável pela condução do processo.

É justamente por isso que a figura do gestor fiduciário, sem a adoção de necessárias regras de governança, causa grande preocupação, porque ele tende a atender aos interesses daquela maioria que o tiver nomeado, e não o interesse da coletividade de credores. Logo, poderá ser utilizado como instrumento para que credores mais poderosos e sofisticados se aproprie de parte da riqueza que cabe aos demais.

Além disso, é simplesmente absurda a ideia de deixá-lo responsável por conduzir a verificação dos créditos, o que lhe daria poderes para assegurar a maioria necessária para manter-se no cargo e aos credores que o nomearam o poder de, por via oblíqua, influenciar na determinação dos créditos dos demais, ainda mais quando esses mesmos credores podem, a qualquer tempo, substitui-lo.

Spacca

Já a profissionalização da figura do administrador judicial não decorre, evidentemente, da mera exigência feita no artigo 21 da Lei nº 11.101/2005. Ela consiste, na verdade, num efeito diretamente resultante dos incentivos previstos na Lei nº 11.101/2005 para a criação de uma carreira.

Tais incentivos, por sua vez, consubstanciam-se nas regras que permitem que pessoas gabaritadas se dediquem à função de administrador judicial com habitualidade e que viabilizam uma remuneração que torna a atividade economicamente atrativa.

Tanto a estratégia legislativa funcionou que hoje nós temos diversos escritórios de profissionais altamente gabaritados, que se dedicam profissionalmente à função de administrador judicial. Os ganhos para o sistema falimentar são evidentes, sobretudo se comparada a experiência dos últimos vinte anos com aquela observada na vigência do Decreto-Lei nº 7.661/1945.

O exercício habitual da função de administrador judicial permite que a experiência adquirida em casos passados seja aproveitada nos futuros. Além disso, permite que os administradores judiciais sejam mais bem conhecidos pelo juiz, o que contribui para estabelece uma relação de confiança essencial à dinâmica do processo falimentar.

Todos os administradores judiciais sabem que o ativo mais valioso que possuem não é o escritório, a expertise, a estrutura nem o corpo de profissionais. Seu ativo mais valioso é a confiança neles depositada pelo juiz (e que, uma vez quebrada, é irrecuperável). E isso opera nos dois sentidos, porque o juiz também valoriza a confiança no administrador judicial, sobretudo na sua idoneidade.

Isso explica por que os casos acabam ficando concentrados em número relativamente enxuto administradores judiciais. Primeiro, porque é difícil e demorado estabelecer essa relação de confiança. Segundo, porque ainda são poucos os administradores judiciais que adquiriam nível satisfatório de profissionalização (embora esse número esteja aumentando paulatinamente). Terceiro, porque os prejuízos de uma nomeação equivocada são gigantescos (não apenas para os credores e devedores, mas para a própria reputação do juiz como para a credibilidade do sistema como um todo).

Sem contar que a nomeação dos mesmos profissionais facilita tremendamente a fiscalização do trabalho do administrador judicial pelo juiz. É muito mais fácil apurar eventuais desvios se o juiz examinar os atos de um mesmo administrador judicial em múltiplos processos (o que permite identificar padrões desviantes) do que se esse exame for esporádico ou eventual. Noutros termos, é muito mais fácil para o juiz identificar um agente mal-intencionado entre dez do que entre cem, ou entre mil.

Não é só isso. O fato de os mesmos profissionais (sejam eles administradores judiciais, juízes ou advogados) interagirem entre si com frequência, por conta da atuação em diversos casos diferentes, cria toda uma praxe que reduz custos de transação e favorece a eficiência do sistema [2].

A experiência mostra que os administradores judiciais acabaram aproximando os profissionais da área, contribuindo para a criação de uma comunidade de pessoas dedicadas a viabilizar e aperfeiçoar o nosso sistema falimentar. Sem dúvida, muito da evolução do pensamento jurídico relacionado ao direito falimentar decorreu justamente disso.

Logo, limitar a atuação dos administradores judiciais a um número reduzido de processos impede que eles acumulem a experiência necessária à profissionalização, ao passo em que a remuneração baixa inviabiliza que pessoas gabaritadas façam do exercício dessa função uma carreira. Consequentemente, impede-se o estabelecimento da confiança entre os administradores judiciais e o juiz, bem como a criação dessas redes de profissionais e da própria praxe que lubrifica as engrenagens do processo falimentar, tornando-o mais previsível e eficiente.

Por outro lado, a imposição de um auxiliar escolhido pelos credores – como se passa com o tal gestor fiduciário – opera contra a eficiência visada pelo PL nº 03/2024. Afinal, por tratar-se de um agente que não é da sua confiança, o magistrado precisará examinar todos os atos desse gestor com lupa, o que evidentemente consome tempo e recursos judiciários que poderiam ser mais bem empregados em outras tarefas. Sem contar os inúmeros conflitos potenciais que a parcialidade desse gestor irá suscitar, acirrando a litigiosidade dos processos falimentar, novamente em prejuízo da tão prometida eficiência [3].

Com relação ao mandato de três anos, o legislador parece desconhecer que o administrador judicial não é o senhor dos prazos nos processos de insolvência. Ainda que deva contribuir para a celeridade e para o breve encerramento do processo, inúmeras circunstâncias que afetam diretamente esse desiderato fogem do seu controle. O prazo concedido pelo juiz para que devedor e credores tentem a mediação, as suspensões de assembleias para formulação de ajustes ao plano proposto e o efeito suspensivo aos recursos são apenas alguns dos muitos exemplos de eventos que  afetam diretamente a conclusão do processo de recuperação judicial ou da falência e nada tem a ver com eventual inércia do administrador.

Além disso, em falências de maior porte, é corriqueiro que o administrador judicial represente a massa em ações de cobrança, indenizatórias, revocatórias e incidentes de desconsideração da personalidade jurídica, justamente para cumprir seu mister de reprimir fraudes e buscar ativos para o pagamento da coletividade de credores. Como essas demandas raramente terminam em menos de três anos, a substituição compulsória do administrador judicial depois desse prazo gera um desincentivo à sua  atuação diligente.

Trata-se, pois, de mais um exemplo de como o projeto contraria a lógica de incentivos à profissionalização que governa a Lei nº 11.101 e a própria consecução dos objetivos do processo falimentar, já que, desalinhando os interesses dos seus agentes, opera contra a recuperação dos créditos.

É evidente que profissionais ineficientes devem ser substituídos ou até impedidos de atuar em outros casos (como já ocorre nos casos de destituição). Todavia, não é possível medir a eficiência de um administrador judicial única e exclusivamente por conta do prazo de duração do processo, sendo absolutamente injustificável determinar-se uma substituição compulsória apenas pelo decurso do tempo.

Outro ponto a ser destacado é que os administradores judiciais resolvem um grande problema prático das falências em geral, correspondente ao financiamento dos atos necessários à guarda e liquidação dos ativos do devedor e ao próprio impulsionamento do processo. Com muita frequência, os administradores judiciais adiantam do próprio bolso despesas necessárias a realizar os atos de liquidação, na expectativa, por óbvio, de que perceberem a correspondente remuneração.

A conclusão é óbvia: se a remuneração tornar-se irrisória ou de recebimento incerto, nenhum administrador arriscará colocar o dinheiro do próprio bolso para viabilizar a falência; serão os próprios credores que precisarão se organizar para bancar esses custos, o que se sabe, por experiência, tratar-se de tarefa especialmente complicada quando não impossível.

Tudo isso serve para demonstrar a infelicidade das novas regras, que inviabilizam a profissionalização do administrador, em prejuízo das políticas públicas que a lei deveria promover. Além disso, ao desestimular profissionais qualificados a exercerem a função de administrador judicial, o PL nº 03/2024 acaba criando um problema de “seleção adversa”, na expressão cunhada por Akerlof, prêmio Nobel de economia. Ou seja, selecionaremos os piores.

5. Conclusão

A disciplina trazida pelo PL nº 03/2024 cria uma série de obstáculos à atuação do administrador judicial, que acabam desincentivando aqueles que pretendam exercer essa função.

Contudo, essa diminuição do administrador judicial é incoerente com as políticas públicas previstas na Lei nº 11.101/2005 porque compromete o sistema de incentivos que realizam a função promocional do nosso direito falimentar.

As mudanças legislativas, ademais, partem da pressuposição de que a ineficiência crônica da falência decorreria da atuação do administrador judicial. Além de não estar amparada por evidências concretas, a conclusão em si é ilógica, dado que a própria remuneração do administrador judicial depende diretamente da conclusão e do sucesso da falência.

É evidente, portanto, que esse agente não possui nenhum interesse em retardar ou atrapalhar o andamento do feito, porque da sua solução depende o seu proveito econômico (salvo, é claro, se agir imbuído de má-fé, caso excepcional e sujeito às reprimendas civis e penais dispostas na lei).

Assim, ao atribuir a responsabilidade da ineficiência da falência ao administrador judicial — o que nos parece um diagnóstico equivocado —, o legislador não apenas perde a oportunidade de ministrar o remédio adequado para verdadeiras causas da doença, como ainda por cima gera efeitos colaterais, que agravam ainda mais a saúde debilitada do direito falimentar brasileiro.

 


Referências

BAIRD, Douglas. The Unwritten Law of Corporate Reorganization. Cambridge University, 2020.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes  2010.

______. Da estrutura à função. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

MAIN, Thomas O. The procedural foundation of substantive law. Washington University Law Review, v. 87, n. 4.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1980.

SALOMÃO FILHO, Calixto. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro; e PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2005.

TEPEDINO Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei das Falências: Decreto-lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. 4 ed. rev. e atualizada por J. A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999, v. 1.

[1] Até hoje se recorre a técnica semelhante nos inventários litigiosos, cuja solução depende da nomeação de um inventariante imparcial, desvinculado dos interesses dos sucessores.

[2] Essa temática é particularmente explorada por Douglas Baird, uma das maiores autoridades em matéria falimentar, que destaca a importância do relacionamento interpessoal para a própria construção do sistema de insolvência norte-americano (The Unwritten Law of Corporate Reorganization. Cambridge University, 2020).

[3] Curiosamente, ainda que seja patente o conflito de interesses decorrente da submissão do gestor fiduciário à maioria dos credores, especialmente em relação à verificação dos créditos, o legislador não previu  hipótese de responsabilização criminal desse agente em casos de desvios.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!