Opinião

A disciplina do administrador judicial no PL nº 03/2024 (parte 1)

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9 de maio de 2024, 9h25

1. Introdução

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Está em curso, no Congresso, o Projeto de Lei nº 03/2024, que pretende reformar a Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Dentre as várias alterações propostas, boa parte delas concentra-se em diminuir a importância do administrador judicial, eleito como “bode expiatório” da ineficiência crônica das falências no país. Como solução, o projeto aposta na criação de uma nova figura — o gestor fiduciário —, escolhido pelos próprios credores para desincumbir-se dos atos de expropriação dos bens do devedor, verificação e pagamento dos créditos.

Com o propósito de contribuir para o debate legislativo, a intenção deste artigo é investigar se as novas regras propostas, sobretudo no que toca à atuação do administrador judicial e do gestor fiduciário, efetivamente serão capazes de aprimorar a falência. Além disso, pretende-se analisar se a nova disciplina é compatível com os pressupostos teóricos do direito falimentar e com as políticas públicas que a Lei nº 11.101/2005 pretende promover.

2. A função das normas processuais no Direito Falimentar

Importantes juristas do passado se ocuparam em tentar situar o Direito Falimentar dentro daquelas categorias tradicionais que são estabelecidas para facilitar a compreensão e o estudo do direito enquanto ciência [1]. Divisavam aqueles que defendiam que a falência estava sob o domínio do direito processual dos que sustentavam que ela pertencia ao direito material, havendo ainda os que advogavam sua inclusão numa terceira categoria, com características próprias [2].

Para os que situavam a falência no campo do direito processual, preponderavam as normas que disciplinam o procedimento de execução coletiva. Ao revés, para os partidários da corrente oposta, a tônica da falência estava no caráter material das normas que estabelecem os efeitos da quebra e elegem a ordem de prioridade entre os credores.

Muito dessa discussão tinha a ver com a ideia de apartar completamente o processo do direito substantivo, bem típica da fase autonomista do direito processual [3]. A estratégia, por sua vez, fazia parte de um plano maior, que propunha que o ordenamento jurídico poderia (e deveria) ser arranjado em conjuntos monumentais de estruturas abstratas, de caráter universal, destinados a realizar o dogma da completude do direito [4].

Segundo tal concepção, identificada no movimento de codificação do início do século 19, as normas processuais deveriam ser dispostas no Código de Processo, as de direito civil no Código Civil, as comerciais no Código Comercial e assim por diante [5]. No entanto, como a disciplina falimentar congregava disposições tanto de direito material quanto de direito processual, que se entremeavam nos campos do direito público e do direito privado, não se sabia bem onde situá-la, o que inquietava aqueles ocupados em estabelecer uma teoria pura ou unitária do direito (em especial, os integrantes da chamada Escola da Exegese, para a qual a lei deveria fornecer “uma solução para caso” [6], sem conceder espaço para a intervenção construtiva do intérprete).

A discussão foi perdendo relevância à medida que o próprio protagonismo dos códigos foi diminuindo, com o aumento da intervenção estatal na economia a partir do início do século 20. Num movimento conhecido como “dirigismo contratual”, a atividade legiferante se intensificou com a produção de diplomas legislativos que passaram a regular fenômenos sociais e econômicos que não se conformavam na realidade pressuposta pelos códigos nem cabiam nos seus limites [7].

Teve início a “era dos estatutos”, leis extracodificadas que regulam matérias inteiras, com disposições de direito substantivo e adjetivo. Além de disciplinar o exercício da autonomia privada, afeto aos campos do direito civil ou comercial, os estatutos também passaram a dispor sobre direito administrativo, tributário e até mesmo penal [8], regulando o fenômeno jurídico segundo as suas várias interfaces.

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Além disso, como estão conformados por uma realidade jurídica específica, os estatutos conseguem exprimir valores ou princípios particulares que os códigos, por conta da sua universalidade, não conseguiam promover. Mais do que isso, encarregam-se de estabelecer um sistema próprio, que inclui incentivos para a promoção de políticas públicas, correspondente aos objetivos de ordem econômica e social eleitos pelo povo, por meio dos seus representantes. Formam-se os chamados “microssistemas”, que realizam a função promocional do direito [9].

É interessante pensar que, dada a interação normativa que marca o direito falimentar (entre forma e substância, e entre público e privado), as leis falimentares podem ser identificadas como um dos primeiros estatutos, na acepção moderna do termo. A Lei nº 11.101/2005 é bom exemplo disso, pois contém normas de direito processual, civil, comercial, tributário, trabalhista, penal e administrativo, criando um diploma que poderia muito bem ser designado como o “estatuto da empresa em crise”.

Atualmente, já se tem relativamente clara a noção de que o direito falimentar  não está sob o domínio do direito material ou do direito adjetivo, já que ele nasce justamente da interação entre ambos, formando um microssistema jurídico próprio, subordinado a princípios particulares. O que ainda não é bem compreendida, no entanto, é a função que as regras processuais desempenham nesse microssistema.

Em geral, mesmo sob a perspectiva instrumental do processo, costuma-se pensar que elas servem apenas à promoção dos direitos subjetivos dos seus titulares, o que conduz à conclusão de que a alteração das regras processuais seria aceitável quando coerente com tais direitos.

Assim, estabelecida a prioridade material de certos credores, faria sentido alterar a regra processual vigente se a nova regra for mais apta a realizar essa prioridade. Da mesma forma, se os credores possuem direito subjetivo de decidir, por maioria, a solução para o conjunto de ativos e passivos do devedor, seriam justificáveis regras processuais que viabilizassem o exercício desse poder da forma mais eficiente ou vantajosa pare eles.

Ocorre que esse raciocínio — que parece informar boa parte das alterações propostas no PL nº 03/2024 — acaba ignorando que, no sistema falimentar, o processo não se presta apenas à efetivação da vontade da maioria. Na verdade, as normas processuais integram-se àquelas de direito substantivo para a promoção de políticas públicas, que vão muito além dos direitos subjetivos do devedor ou seus credores.

Logo, tanto mais adequada e coerente será a norma processual quanto mais alinhada ela estiver com essas políticas. Inversamente, quanto mais distante dessas políticas, mais incoerente e assistemática será a norma, dando causas a conflitos que precisão ser arbitrados no caso concreto. Noutras palavras, regras incoerentes com o sistema produzem tensões que operam contra a segurança jurídica e contra a distribuição da justiça [10], mesmo quando promovam eficiência econômica.

Embora tradicionalmente o direito processual fosse visto como algo apartado do direito material, modernamente se defende que o direito adjetivo integra o próprio direito substantivo. Isso porque o processo é um instrumento de poder, que é capaz, num sentido muito prático, de gerar ou destruir direitos substantivos [11].

Além disso, possui uma função transindividual, na medida em compõe o sistema de incentivos para a promoção de políticas públicas. Assim, da mesma forma que o processo pode fulminar direitos substantivos (se inviabilizar o seu exercício), também pode comprometer as próprias políticas relacionadas a tais direitos.

A mudança das regras processuais guiada apenas pelo critério de eficiência econômica não é algo estéril, ou indiferente à finalidade distributiva do direito, tampouco à sua função promocional. Pelo contrário: ela necessariamente carrega consigo opções políticas que podem se chocar com os propósitos declarados pelo legislador, como se vê no caso do PL 03/2024.

É justamente por isso que as alterações propostas no substitutivo aprovado na Câmara dos Deputados são motivo de tanta preocupação. A pretexto de tornar o processo economicamente mais eficiente (desiderato de realização incerta), abalam terrivelmente toda a estrutura de incentivos destinadas a promover as políticas públicas relacionadas ao microssistema de direito falimentar.

3. O administrador judicial no PL nº 03/2024

Sem investigação alguma das causas de ineficiência do processo falimentar, ou dos impactos (positivos) gerados pela recente alteração promovida pela Lei nº 14.112/2020, o PL nº 03/2024 pretende atacar esse problema alterando radicalmente a disciplina relativa à atuação do administrador judicial.

Para acabar com a suposta morosidade do administrador judicial, o legislador propõe uma limitação temporal e quantitativa à atuação do auxiliar do juízo, como forma de “incentivo” para que seu trabalho seja feito de forma mais expedita. A solução milagrosa seria sujeitar o administrador judicial a um mandato de três anos, sendo autorizada uma única recondução para um novo exercício por igual período se, antes do vencimento do primeiro lapso temporal, houver aprovação em assembleia de credores.

Além disso, o projeto proíbe que o administrador judicial assuma cumulativamente a administração de outra recuperação judicial ou falência cuja dívida seja igual ou superior a 100.000 (cem mil) salários mínimos, em prazo inferior a dois anos do término do mandato perante o mesmo juízo ou sob jurisdição do mesmo juiz, exceto se os processos forem encerrados nos três primeiros anos de mandato, o que seria um “prêmio” pela sua rápida atuação

Vai ainda mais longe: com o propósito de estabelecer “critério equitativo de nomeações”, impede que o mesmo profissional seja nomeado em mais de quatro recuperações judiciais e falências. Porém, não estipula um lapso temporal para tal vedação, aplicando-a, indistintamente, para casos envolvendo pequenas empresas e grandes grupos econômicos, independentemente do valor dos passivos.

Por fim, veda o administrador judicial que tiver atuado na recuperação judicial de prosseguir exercendo suas funções no mesmo processo, em caso de decretação de falência.

O projeto ainda propõe que, ao decretar a falência, o juiz nomeará um administrador judicial provisório para exercer as atribuições previstas em lei até que um novo profissional eleito em assembleia de credores — o gestor fiduciário — assuma a condução dos processos. Apenas nas hipóteses em que não houver interesse dos credores na nomeação de um gestor é que o administrador judicial (até então provisório) seria mantido nas suas funções, observado o limite temporal de três anos.

De acordo com o PL nº 03/2024, competirá ao administrador judicial provisório a elaboração da lista de credores, nos termos do artigo 7, § 2º, da Lei 11.101/05, bem como a realização dos “demais atos considerados urgentes”, os quais, contudo, não foram definidos.

Dessa forma, além de examinar todos os créditos listados e/ou habilitados para a apresentação de sua relação de credores, caberia ao auxiliar provisório arrecadar, inventariar, precificar e guardar todos os bens arrecadados, atender todos os credores da massa e terceiros interessados, providenciar a baixa na carteira de todos os funcionários, representar a massa falida em juízo ou fora dele, incluindo os processos arbitrais, praticar os atos conservatórios de direitos e ações, decidir sobre a manutenção de contratos firmados pelo falido, dentre outros atos que venham a ser reputados “urgentes”.

O administrador judicial provisório também deverá, mesmo sem saber se permanecerá no encargo, apresentar plano de falência com proposta detalhada de realização de ativos, no prazo (inexequível) de 60 dias, contado da data da assinatura do termo de compromisso [12]. Em contrapartida, receberá uma remuneração mensal fixa, “sem que lhe seja devida participação na remuneração variável, independentemente dos atos praticados”. Seu valor será arbitrado pelo juiz, mas poderá ser revisto pela assembleia de credores. O projeto, contudo, não prevê um único critério objetivo para o arbitramento dessa remuneração, nem para a sua revisão.

Noutras palavras, competirá ao administrador judicial provisório o encargo de praticar a maior parte dos atos necessários ao desenvolvimento da falência (pelos quais responde civil e criminalmente) sem que possa estimar o valor da sua remuneração, ou quando a receberá.

Com a eleição do gestor fiduciário, serão transferidas automaticamente a ele as funções até então exercidas pelo auxiliar do juízo. Isso significa que o agente fiduciário dos credores ficará responsável pela verificação dos créditos na sua fase judicial e confecção do quadro de credores, além da execução do plano de falências elaborado por ele ou pelo administrador judicial provisório.

Continua amanhã na parte 2

 


[1] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 341.

[2] Para detalhamento das principais correntes, confira-se Rubens Requião (Curso de Direito Falimentar. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1980, v. 1, p. 21-33).

[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 19-21.

[4] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 276-277.

[5] TEPEDINO Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 4.

[6] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. cit.,  p. 275-277.

[7] TEPEDINO Gustavo, cit., p. 3-4.

[8] TEPEDINO Gustavo, cit., p. 4.

[9] Temática explorada por Norberto Bobbio na obra que é considerada o ápice da sua produção intelectual. (Da estrutura à função. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007. p. XII).

[10] A propósito do texto original de Lei nº 11.101/2005, Calixto Salomão Filho já identificava certa incoerência entre os seus aspectos materiais e instrumentais (In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro (coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 48).

[11] MAIN, Thomas O. The procedural foundation of substantive law. Washington University Law Review, v. 87, n. 4, p. 802, 2010.

[12] Salta aos olhos a incoerência desse prazo em relação à dinâmica do processo falimentar. O projeto determina a apresentação de um plano de falências no exíguo prazo 60 dias, contendo como anexo obrigatório a relação de credores elaborada pelo administrador judicial. Ocorre que referida relação é apresentada em prazo superior a 60 dias, tornando impossível o cumprimento da previsão.

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