Opinião

Exceções ao sigilo profissional envolvendo prontuários médicos

Autores

  • Julia Maria Siqueira

    é paralegal no escritório Pádua Faria Advogados e graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (FDF).

  • Djonata Donizeti de Souza

    é advogado no escritório Pádua Faria Advogados graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca e especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP Fadep).

26 de março de 2024, 20h57

Inicialmente, antes de esmiuçar as principais considerações sobre as exceções aplicadas ao sigilo profissional envolvendo prontuários médicos, é necessário conceituá-los. O histórico clínico, também conhecido como prontuário médico, é um documento essencial elaborado pelo profissional de saúde, desempenhando um papel fundamental em sua prática.

Este registro contém de maneira organizada e resumida todas as informações relevantes sobre o paciente, abrangendo desde antecedentes familiares até anamnese (registro de dados obtidos em uma conversa inicial detalhada com o paciente sobre todo o seu histórico médico), descrição e evolução dos sintomas, resultados de exames, e as orientações de tratamento e prescrições médicas.

Independentemente de ser elaborado no consultório ou em ambiente hospitalar, o prontuário se torna uma fonte valiosa tanto para o paciente quanto para o médico, buscando primordialmente facilitar a prestação de cuidados e assistência ao paciente.

Da força normativa do Código de Ética Médica

O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente, conforme dispõe o artigo 87, §2º do Código de Ética Médica, de modo que as informações compartilhadas com o médico e consignadas no prontuário médico são confidenciais, ostentando caráter exclusivo em relação ao paciente. Assim, a reprodução de cópias dos documentos contidos no prontuário médico sem a prévia autorização do paciente configura uma transgressão ao seu direito à intimidade.

Ademais, a preservação do sigilo médico figura como uma das expressões da inviolabilidade da esfera privada consagradas pela Constituição Federal. Essa proteção também é claramente delineada de maneira objetiva no Código de Ética Médica, cuja força normativa foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal, reconhecendo-a como norma jurídica de natureza especial sujeita a um regime jurídico análogo ao das normas e atos normativos federais (STJ, REsp. 159.527-RJ).

Freepik

Nesse sentido, descreve Miguel Kfouri Neto em seu livro Responsabilidade Civil Médica:

E, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “esse Código de Ética foi definido pelo E. Supremo Tribunal Federal como norma jurídica de caráter especial, submetida a regime jurídico semelhante ao das normas e atos normativos federais, sendo possível o controle da sua constitucionalidade através de ação direta” (STJ, REsp. 159.527-RJ, 4ª Turma, relator ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 29/6/1998, p. 206) (KFOURI, Miguel – Responsabilidade Civil do Médico p.181 (grifo do articulista).

O direito fundamental à intimidade e o sigilo está previsto na Constituição, em seu artigo 5º, inciso X, senão vejamos:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

XIV – e assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”

Nesse contexto, evidencia-se que a prerrogativa da intimidade está intrinsecamente ligada à esfera pessoal do paciente, haja vista que as informações de natureza pessoal contidas no prontuário circunscrevem-se exclusivamente a ele, carecendo de interesse para qualquer outro membro da sociedade.

Exceções ao sigilo profissional envolvendo prontuários médicos

A preservação do sigilo profissional na prática médica é fundamental para o estabelecimento de uma relação de confiança e respeito entre o médico e o paciente.

Assim, o capítulo IX do Código de Ética Médica é dedicado a essa questão, destacando-se como um alicerce essencial na interação entre médico e paciente, e está relacionado ao dever de confidencialidade de informações médicas relacionadas ao paciente. Logo, a regra geral é o sigilo médico.

Contudo, essa inviolabilidade a liberação de cópias do prontuário médico sem a autorização do paciente não é absoluta, cabendo algumas exceções no caso concreto. Conforme dispõe o artigo 89 do Código de Ética Médica, é vedado ao médico:

“Capítulo X

DOCUMENTOS MÉDICOS

É vedado ao médico:

[…]

Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente.

§1º Quando requisitado judicialmente, o prontuário será encaminhado ao juízo requisitante.

§2º Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.” (grifo do articulista)

 

Nesse sentido, caminha o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“MEDIDA CAUTELAR – Exibição de Documentos – Autores que pretendem a obtenção do prontuário médico do genitor e marido falecido em hospital, visando obter o conhecimento de todos os procedimentos adotados para verificar eventual conduta culposa dos profissionais – É dever profissional médico tanto a elaboração do prontuário de forma adequada e correta, como o sigilo, de maneira a resguardar a intimidade do paciente (art. 5º, X, da Constituição Federal)- É vedado ao médico, consoante o Código de Ética Médica, permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade (art. 85) e está obrigado a propiciar o acesso ao prontuário, apenas aos próprios pacientes (art. 88), ou às pessoas por ele autorizadas por escrito, ou para para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa (art. 89) – Direitos/deveres que não podem ser ignorados pelos Hospitais, Clínicas e demais prestadores de serviços médicos que têm acesso a informações sigilosas – Existência de restrição ética de fornecimento da documentação extrajudicialmente aos parentes do falecido – Necessidade do ajuizamento de ação judicial – Cumprimento espontâneo da exibição com a contestação – Afastamento da condenação nas verbas da sucumbência por aplicação dos princípios da sucumbência e da causalidade – Recurso provido.” (TJ-SP – APL: 01485184020118260100 SP 0148518-40.2011.8.26.0100, relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, data de julgamento: 4/8/2015, 1ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 5/8/2015) – grifo nosso.

Ainda, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios é uníssono:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTO. PRONTUÁRIO MÉDICO. CÔNJUGE DE PACIENTE. SIGILO DAS INFORMAÇÕES. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. 1. O Código de Ética Médica proíbe o médico de liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa. 2. O requerimento feito pelo marido da paciente não autorizava a quebra do sigilo senão após o reconhecimento judicial de justa causa, uma vez que preservada a personalidade jurídica própria da paciente, não interditada para estabelecer a curadoria na pessoa de cônjuge, na forma do art. 1.775 do Código Civil. 3. Legítima a recusa em fornecer o documento administrativamente, resta ao autor-apelado a responsabilidade pelo pagamento das custas processuais e dos honorários devidos ao advogado da outra parte em vista do princípio da causalidade. 4. Apelação conhecida e provida.” (TJ-DF, Apelação Cível 0742221-84.2020.8.07.0001; relator(a): FÁBIO EDUARDO MARQUES; órgão julgador: 8ª Turma Cível; data do julgamento: 21/10/2021; data do registro: 18/11/2021) – grifo nosso.

Sendo assim, é permitida a quebra do sigilo médico no que tange aos prontuários médicos, desde que o caso concreto se enquadre em uma das possibilidades (exceções) expostas no artigo acima e jurisprudências colacionadas, qual seja: para atender a ordem judicial, para a sua própria defesa ou quando autorizado por escrito pelo paciente.

Além disso, o sigilo sobre o prontuário médico deve ser respeitado mesmo após o falecimento do paciente, somente podendo ser quebrado nas hipóteses de justa casa, dever legal e autorização expressa do paciente, evidenciada em documentos previamente elaborados e registrados, conforme preconiza o artigo 73 e 88 do Código de Ética Médica.

Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, a justa causa se configura quando a quebra do sigilo profissional se apresenta como a única medida capaz de afastar um perigo iminente e injusto tanto para o próprio profissional quanto para terceiros.

Já o dever legal deriva da condição profissional, são impostos aos profissionais em virtude do interesse geral e não dá vontade de quem o confia, como por exemplo leis penais – doenças infectocontagiosas de notificação compulsória, de declaração obrigatória (toxicomanias).

Portanto, usualmente, impõe-se ao médico a imperiosa responsabilidade de resguardar o caráter confidencial de qualquer informação derivada de suas atividades na área da saúde, englobando consultas, exames, procedimentos ou tratamentos.

No tocante aos prontuários médicos, o sigilo médico, como um dos fundamentos da Medicina, configura-se como um direito inalienável do paciente, acompanhado da obrigação ética do médico.

Todavia, a inviolabilidade dos prontuários médicos não é absoluta, cedendo espaço a exceções quando há a devida autorização do paciente ou de seu representante legal, mediante ordem judicial ou para a própria defesa do médico.

Assim, a quebra do sigilo médico deve ser conduzida com extrema cautela, respaldada por fundamentação jurídica, ao ponderar os valores envolvidos e a imprescindibilidade da divulgação, visando a resguardar as informações compartilhadas conforme a proteção legal. Essa abordagem meticulosa visa mitigar possíveis riscos jurídicos nos âmbitos administrativo, civil e criminal, inerentes ao exercício da medicina.

 


Referências:

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM – Brasil). Código de Ética Médica. Resolução CFM 2.217/2018. Disponível em: https://cem.cfm.org.br/. Acesso em 07/03/2024.

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO (CREMESP – Brasil).  Quebra de sigilo por “motivo justo” causa grandes dilemas aos médicos. 2012. Disponível em: <https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1550> Acesso em 07/03/2024.

FARINA, Aguiar. Prontuário Médico. 1999. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/artigos/prontuario-medico/. Acesso em: 08/03/2024.

FRANÇA, Daniel. O segredo profissional, o sigilo e a cópia do prontuário médico. 2013. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-segredo-profissional-o-sigilo-e-a-copia-do-prontuario-medico/111756943>. Acesso em 07/03/2024.

KFOURI, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 2019. 10ª edição. Thomson Reuters Revistas dos Tribunais.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!