Opinião

Neurodireitos: a urgência de proteção jurídica das neurotecnologias

Autor

  • Gisele Machado Figueiredo Boselli

    é advogada especialista em Direito Médico e da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da Comissão de Biodireito e Bioética da OAB/SP.

6 de fevereiro de 2024, 9h23

“Conhece-te a ti mesmo” era a sentença inscrita na entrada do Oráculo de Delfos, local de peregrinação na antiguidade, para onde nobres e comuns se deslocavam a fim de ouvir previsões das renomadas sacerdotisas. Esta epígrafe talvez sugerisse a influência do presente sobre os desdobramentos do futuro. Assim, aquele que possuísse a informação correta e a compreensão sobre sua realidade atual, poderia inferir seus desdobramentos.

Talvez pela dificuldade — ou impossibilidade — em se autoconhecer suficientemente, os seres humanos continuadamente buscaram de alguma forma a predição do futuro, seja por meio do místico ou, mais atualmente, pela ciência. Especialidades como a meteorologia, a economia, a genética e a neurociência buscam, por meio do estudo de dados existentes, antecipar prováveis desdobramentos ou adversidades e, em alguns casos, permitir que sejam realizadas ações para evitá-las ou mitigá-las.

A neurociência é a área da medicina que estuda detalhadamente o cérebro e o sistema nervoso, explorando e investigando seus mecanismos de funcionamento, sendo que o seu maior desafio sempre foi desvendar a complexidade desse sistema.

Mas, com as tecnologias desenvolvidas nos últimos anos, potencializadas pela inteligência artificial, as informações obtidas puderam ser melhor sistematizadas, permitindo um grande avanço nas pesquisas.

As ferramentas neurotecnológicas atuais propiciam a interação com o cérebro humano por meio de dispositivos que medem ou alteram a atividade cerebral. Tais dispositivos podem ser eletrônicos, ópticos, acústicos, magnéticos ou baseados em nanotecnologia e estão sendo largamente utilizados em pesquisa clínicas e em tratamentos médicos ou de saúde.

Como exemplo, a terapia de estimulação magnética transcraniana (EMT), já há alguns anos utilizada no Brasil e reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina [1], é uma técnica que aplica ondas eletromagnéticas no cérebro para o tratamento de depressões e alucinações auditivas nas esquizofrenias.

Também já é possível, por meio de uma interface cérebro-computador (Brain-Computer Interface, ou BCI), que a pessoa possa transferir comandos diretamente a um computador, sem necessidade de utilizar o teclado, mouse ou outro dispositivo de entrada, apenas pelas ondas cerebrais.

Tais ferramentas são bastante úteis para pacientes com paralisia cerebral ou lesão na medula espinhal, mas que têm a função cognitiva preservada, mas não conseguem comunicar-se verbalmente ou se locomover. Muitas outras neurotecnologias existentes e em desenvolvimento prometem não apenas revolucionar o tratamento de enfermidades neurológicas, mas também as evitar.

Para além do uso médico, percebe-se uma crescente oferta, em escala comercial, de produtos de monitoramento pessoal que pretendem promover melhoria da saúde e qualidade de vida, como é o caso de dispositivos que monitoram o sono e também os BCIs (Brain-Computer Interface), os quais reduzem o estresse e a agitação por meio da meditação.

Pensamentos, memórias, emoções…
Independentemente de quem se utiliza ou de qual o propósito de seu uso, o operador do dispositivo neurotecnológico passa a ter acesso a dados neurais personalíssimos do paciente, dentre os quais podem estar os pensamentos, as memórias, as emoções, os processos de tomada de decisões, os fatores que determinam o comportamento e inclusive o subconsciente. São informações que definem a identidade do ser humano e que devem, portanto, ser tratadas de forma cuidadosa e ética.

Torna-se necessária, portanto, uma regulação específica dos neurodireitos, que remeta à integridade física e psíquica do ser humano e, portanto, ultrapasse a preocupação com o tratamento dos dados pessoais. O direito, portanto, deve passar a atuar neste novo contexto, a fim de garantir especialmente a liberdade e a integridade mental dos seres humanos, evitando o uso danoso e a manipulação ilegal dos dados neurais.

O início do movimento regulatório em relação aos neurodireitos e às neurotecnologias se estabeleceu em 2017, quando um grupo de cientistas, liderados por Rafael Yuste, publicou um relevante artigo na prestigiada revista Nature. A publicação destacou as crescentes preocupações com o caminho que o desenvolvimento tecnológico conduziria, inevitavelmente levando à decodificação dos processos mentais das pessoas e a manipulação direta dos mecanismos cerebrais subjacentes às suas intenções, emoções e decisões [2].

Desde então, já era possível prever que o desenvolvimento destas tecnologias seria potencializado com o uso da inteligência artificial em larga escala. À época, os cientistas alertaram para os dilemas éticos a serem enfrentados, uma vez que as mesmas pesquisas que revolucionariam o tratamento de muitas doenças poderiam oferecer elevados riscos relacionados à privacidade, proteção da identidade, vieses, preconceitos e ameaças à liberdade ou livre arbítrio dos indivíduos.

Considerando o perigo real envolvido no compartilhamento de dados neurais de forma inadvertida, o grupo de pesquisadores enfatizou a necessidade de implementação de rigorosa regulação, especialmente nas transferências de dados neurais, sejam pela venda, transação comercial ou simples uso.

Posteriormente, em 2019, foi criada a Neurorights Foundation[3],organização para proteção dos direitos neurais, com objetivo de envolver organizações, governos, cientistas, empreendedores e o público em geral para aumentar a conscientização global sobre os riscos envolvidos nos avanços neurotecnológicos.

Recomendações para uso das neurotecnologias
As mobilizações iniciais foram importantes para disseminar a informação e a preocupação que inicialmente estava restrita apenas aos agentes desta transformação tecnológica. Frente aos riscos expostos, entendeu-se que as normas e tratados internacionais até então existentes não seriam capazes de proteger de forma eficaz os neurodireitos, devendo ser oferecida uma proteção jurídica mais específica, que contemple as situações fáticas específicas surgidas neste contexto [4].

Dando seguimento ao movimento neuro-regulatório, despontaram outras inúmeras recomendações (soft laws) para o uso das neurotecnologias, dentre as quais destacam-se, em 2019, a “Recomendação sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia”, da OCDE; em 2020 uma “resolução com recomendações sobre o regime relativo aos aspetos éticos da inteligência artificial, da robótica e das tecnologias conexas”, do Parlamento Europeu; em 2021, um documento do Conselho da Europa tratou do impacto da inteligência artificial e das tecnologias em Biomedicina e na relação médico paciente; em 2022, o Blueprint for an AI Bill of Rights foi editado pelos Estados Unidos, por meio do qual traçaram diretrizes para promover uma inteligência artificial segura e resguardar o sigilo e a proteção de dados, evitar a discriminação algorítmicas, promover informação e explicação em relação aos sistemas e determinar a existência de alternativas humanas às máquinas; e, em março de 2023, surgiu a “Declaração de Princípios Interamericanos em Matéria de Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos”, da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em âmbito jurídico nacional e de caráter cogente (hard law), houve, em julho de 2021, a “Carta de Direitos Digitais”, da Espanha, contemplando as neurotecnologias e, em outubro de 2021, uma inédita alteração da Constituição do Chile, contemplando o direito à neuroproteção. Em janeiro de 2024, estava em fase final de tramitação no Parlamento Europeu o IA Act, que também dispõe sobre a limitação de sistemas capazes de prejudicar ou manipular indivíduos, ou que explorem suas eventuais vulnerabilidades.

Nos Estados Unidos, foi expedida pelo presidente Joe Biden, em 30 de novembro de 2023, a Executive Order on Safe, Secure, and Trustworthy Artificial Intelligence, que tem força de lei e pretende promover a segurança e estabelecer a responsabilização pelo uso da inteligência artificial nos cuidados com a saúde e no desenvolvimento de tratamentos médicos.

No Brasil, existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 29/2023) que pretende alterar o texto da Constituição para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica [5].

Tais direitos e garantias deverão ser regulados por lei específica, cujo objetivo será a prevenção do uso de dados neurais para fins ilegítimos ou maliciosos que possam danificar ou afetar a atividade cerebral ou que impactem no exercício dos direitos humanos, tais como a liberdade de pensamento e consciência e a integridade e intimidade neurocognitiva.

E, na vanguarda do país, o estado do Rio Grande do Sul aprovou, em dezembro de 2023, uma Proposta à Emenda à Constituição do Estado, alterando o parágrafo único de seu artigo 235 para incluir a “integridade mental do ser humano” como uma das bases da política de pesquisa científica e tecnológica promovidas pelo governo.

Avanço na neurotecnologia
Portanto, quase sete anos após os primeiros trabalhos alertando para os riscos das neurotecnologias, podemos vislumbrar avanços na conscientização mundial frente ao assunto, embora ainda incipientes e incapazes de garantir plenamente a privacidade, identidade, autonomia e igualdade dos seus usuários.

Como anunciado no artigo de Rafael Yuste de 2017 [6], ainda podem levar anos até que as interfaces cérebro-computador (BCI) e outras neurotecnologias façam parte do nosso dia a dia, mas é certo que estamos no caminho para um mundo no qual será possível decodificar os processos mentais das pessoas e manipular diretamente os mecanismos cerebrais subjacentes às suas intenções, emoções e decisões.

A partir de então, o conhecimento obtido por meio das neurotecnologias poderão trazer possibilidades de exploração e manipulação das pessoas, e a chance alterar características fundamentais do ser humano. Sendo assim, sua utilização deverá ser rigorosamente regulada, no sentido de inibir condutas ilegais e de proteger os direitos humanos fundamentais.

Retomando o passado distante, existem relatos históricos de que, na Grécia antiga, os governantes consultavam o Oráculo de Delfos para conhecer os desígnios divinos antes de tomarem decisões importantes. Muitas guerras tiveram desfechos decorrentes das previsões das profetizas — pítias — que eram as intermediárias da comunicação entre deuses e homens e que, portanto, impactaram o destino das cidades-estados e seus habitantes.

Atualmente, podemos finalmente desprezar o místico e nos apegar aos prognósticos baseados na ciência. Graças à evolução do trabalho científico e das neurotecnologias, atingimos o ponto mais próximo de verdadeiramente desvendarmos os mistérios do cérebro, antes impenetrável.

Será possível mapear as habilidades e fraquezas, valorizar as potências ou administrar os infortúnios da loteria genética que envolve nossa existência. O domínio dessas informações poderá ser útil tanto para nosso desejado autoconhecimento como para cuidados com a saúde e melhoria da qualidade de vida.

Mas fica o temor em relação a como e por quem essas informações serão tratadas e a que fim serão destinadas. Se não podemos mais confiar aos deuses ou à sorte o nosso destino, devemos delegar à sociedade, aos legisladores e aos operadores do direito o encargo de produzirem leis que garantam efetivamente que tais tecnologias serão utilizadas para o bem da humanidade e não como ferramenta para seu domínio ou manipulação.

 


[1] CFM, Resolução 1.986/12, Reconhece a Estimulação Magnética Transcraniana (EMT) .

[2] Yuste, R., Goering, S., Arcas, B. et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and al. Nature 551, 159–163 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1038/551159a, acesso em 29.nov.2023.

[3] Disponível em: https://neurorightsfoundation.org/mission

[4] GENSER, J.; HERRMANN, S.; YUSTE, R. (2022) International Human Rights Protection Gaps in the Age of Neurotechnology. Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/60e5c0c4c4f37276f4d458cf/t/6275130256dd5e2e11d4bd1b/1651839747023/Neurorights+Foundation+PUBLIC+Analysis+5.6.22.pdf, acesso em 29 de novembro de 2023.

[5] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/158095, acesso em 29 de novembro de 2023.

[6] Yuste, R., Goering, S., Arcas, B. et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and aI. Nature 551, 159–163 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1038/551159a, acesso em 29.nov.2023.

Autores

  • é advogada, especialista em Direito Médico e da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da Comissão de Biodireito e Bioética da OAB/SP.

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