Opinião

Cobrança do IPTU sobre áreas de proteção permanente

Autor

  • Denis Vieira Gomes

    é sócio do escritório Vieira Gomes Advogados. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Especialista em Direito Tributário e Contabilidade pelo Ibet e Fecap.

25 de março de 2024, 11h16

O dia a dia daqueles que trabalham com projetos de loteamentos e urbanização confirma que as discussões envolvendo o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU) podem representar uma parcela significativa dos recursos contingenciados nos registros contábeis das empresas, recursos estes que poderiam ser direcionados para a construção de outros empreendimentos visando o crescimento e desenvolvimento urbano em diversas regiões.

Dado que o Brasil é um país de dimensões continentais, dividido politicamente em União, 27 estados, Distrito Federal e ainda conta com 5.570 municípios conforme dados do IBGE, não é surpreendente que o IPTU seja o tributo que mais gera processos judiciais nos Tribunais de Justiça estaduais. É um fato.

Segundo concluiu a pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1] em 2022, o IPTU representou 62% do volume de demandas ativas nos Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal, demonstrando ser o IPTU um verdadeiro Titã quando comparado a outros tributos federais e estaduais, inclusive em comparação com processos cíveis de grande volume, como aqueles relacionados à alienação fiduciária.

Recentemente, o Anuário da Justiça Paulista 2024 [2] fez um levantamento sobre o volume de processos tributários em tramitação no tribunal. Concluiu-se que aproximadamente 21,8 milhões de ações aguardam julgamento pelo Judiciário (dados apurados até outubro de 2023), sendo que 12,8 milhões dessas causas são representadas por execuções fiscais. Ações de execução fiscal de IPTU correspondiam até o final de julho/2023 ao total de 4,1 milhões de casos pendentes de julgamento.

Principais causas

Observa-se, portanto, que o IPTU, tributo pertencente à competência tributária dos municípios, é o grande campeão no quesito de disputa judicial, sobretudo no que consiste em definir a sua materialidade. Contudo, sendo o IPTU um tributo cuja hipótese de incidência é relativamente simples (ser proprietário de imóvel em zona urbana do município), não haveria muitas discussões enviesadas acerca da sua cobrança, mas não é assim.

As maiores discussões sobre IPTU estão quase sempre relacionadas à atualização da planta genérica de valores (PGV) pelos municípios; à distinção entre localização urbana e rural, especialmente no que se refere ao critério espacial da hipótese de incidência tanto do IPTU quanto do ITR; à cobrança do IPTU antes da obtenção do “habite-se” ou do Termo de Verificação de Obra Final (TVOF) [3]; questionamentos complexos sobre os efeitos jurídicos da propriedade do imóvel em relação ao arranjo contratual estabelecido entre as partes; e, por fim, demandas relacionadas as restrições ao uso da propriedade, como as áreas de proteção permanente (APP).

Sabe-se que para a determinação da cobrança do IPTU, não é suficiente apenas possuir a propriedade do imóvel, mas é necessário que o proprietário tenha a capacidade de dispor do bem e exercer o seu domínio útil sem limitações. Eis aqui o ponto de inflexão que é capaz de mudar totalmente a materialidade do tributo.

Spacca

Isso porque o IPTU jamais deveria incidir sobre parte do imóvel que não está disponível ao proprietário, sob pena de ampliar a materialidade tributária do imposto. Afinal, são os poderes de uso e fruição que demonstram a capacidade contributiva do sujeito passivo na relação jurídico tributária do IPTU.

Neste sentido, o artigo 1.228, caput, do Código Civil, estabelece que o proprietário é aquele que possui a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, bem como o direito de recuperá-la do poder de quem quer que a possua ou detenha injustamente. Essas prerrogativas conferidas ao proprietário evidenciam seu direito pleno sobre o imóvel, incluindo a capacidade de explorá-lo em benefício próprio.

IPTU e as áreas de proteção permanente

No entanto, ainda que em alguns casos fique evidente a restrição do direito de propriedade com limitações ao direito de construir, os municípios lançam o IPTU sobre áreas de proteção permanente (APPs). Essas áreas obedecem a um rígido regime jurídico ambiental próprio.

Para resumir, nos termos do inciso III do artigo 3º da Lei 12.651/12, a APP refere-se à área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

Em sentido mais estrito, o artigo 4º da Lei 12.651/12 delimitou em 11 incisos as áreas de preservação permanente (APPs) em zonas urbanas e rurais, determinando as limitações e influências que exercem no potencial construtivo de um terreno, especialmente no que se refere ao parcelamento do solo urbano previsto na Lei 6.766/79. Em outras palavras, um loteamento que possua um bosque de mata nativa, por exemplo, está impedido de realizar qualquer tipo de beneficiamento de infraestrutura.

O problema é que o IPTU, para todos os efeitos, não deveria incidir sobre áreas de APPs, que, afinal, impedem a utilização plena para construção no local. Como consequência, o parcelamento do solo em loteamentos é gravemente prejudicado, pois os municípios lançam o tributo anualmente e os loteadores se veem envolvidos em contingências que nem mesmo deveriam ser uma preocupação.

Entendimento dos tribunais

Nesse ponto reside o foco da nossa pesquisa: demonstrar como alguns tribunais e o Superior Tribunal de Justiça têm se posicionado sobre essa questão. No entanto, continuamos a defender a nossa posição de que imóveis localizados em loteamentos que estão sujeitos a restrições ambientais, as quais limitam o exercício dos direitos de propriedade, mesmo que parcialmente, não devem ser obrigados a pagar o IPTU. Isso ocorre devido à clara afronta ao artigo 1.228 do Código Civil.

A pesquisa foi conduzida com base no critério de identificação dos cinco Tribunais de Justiça que possuem o maior número de execuções fiscais no Brasil, conforme relatado pelo Conselho Nacional de Justiça [4] (no relatório Justiça em Números de 2023). Foi estabelecida uma delimitação específica por meio de uma busca avançada, utilizando a chave “área de preservação permanente” na ementa, com foco no “assunto” relacionado ao IPTU. Vejamos:

  1. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foram encontrados quinze acórdãos. A maioria dos julgamentos foi desfavorável aos contribuintes que aplicou o entendimento de que o IPTU deve ser lançado em razão da inexistência de normas impondo vedação, como isenção. Os acórdãos favoráveis reconheceram a ilegitimidade do IPTU incidente sobre APPs com base nas provas fornecidas pelos contribuintes.

Nesse aspecto, a perícia é quase sempre solicitada e o resultado é favorável quando se comprova que não existe a possibilidade de construir uma infraestrutura no local, como, asfaltamento, guias, calçadas, água e esgoto, iluminação pública e energia domiciliar.

  1. A pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro retornou com o total de 168 ementas. Esse número significativo pode ser atribuído, em parte, à geografia específica do Rio de Janeiro, que inclui muitas áreas de preservação permanente.

No entanto, a maioria das decisões converge para a aplicação da norma do IPTU que impõe a tributação. De acordo com os precedentes desfavoráveis, é irrelevante que o contribuinte seja impedido de construir, bastando que o imóvel esteja localizado na zona urbana. As decisões favoráveis ao contribuinte decidiram no sentido diametralmente oposto, argumentando que as áreas de preservação permanente limitam sobremaneira o pleno exercício do direito de propriedade.

  1. No Tribunal de Justiça do Paraná, foram encontrados três acórdãos. São duas decisões que afastam a incidência do imposto e outra que mantém a cobrança do IPTU incidente sobre a parcela respectiva à área de preservação permanente.
  2. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul possui quatro acórdãos contendo os critérios pesquisados, dos quais apenas um é favorável ao contribuinte, mantendo-se a legitimidade passiva. Percebemos que nos acórdãos desfavoráveis, o elemento de prova foi crucial para a manutenção da cobrança, de forma que o contribuinte deveria ter produzido laudos de engenharia para fortalecer a sua defesa.
  3. Por fim, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais foram encontrados três acórdãos, sendo apenas um favorável ao contribuinte. A razão de decidir teve como elemento principal o entendimento de que o fato do imóvel possuir uma parcela de área de preservação permanente (APP) não desconfiguraria o fato gerador do IPTU, que, segundo os acórdãos, é a propriedade localizada na zona urbana do município.

A pesquisa realizada pelo Superior Tribunal de Justiça teve como critério específico a obtenção de informações das duas Turmas de Julgamento (1ª e 2ª), e da 1ª Seção, responsável por uniformizar a jurisprudência tributária. O resultado revela uma tendência desfavorável ao contribuinte, uma vez que as Turmas têm decidido pela incidência do IPTU sobre imóveis urbanos declarados parcialmente como área de preservação permanente.

Vale mencionar que os precedentes colhidos tratam de julgamentos ocorridos, na maioria dos acórdãos, há pelo menos dez anos (exceto AgInt no AREsp 1.723.597 / SP, julgado em 29/3/2021), e não há nenhum entendimento majoritário consolidado em súmula do tribunal ou julgamento de recurso repetitivo. Isso significa dizer que o STJ possivelmente deverá se debruçar para julgar definitivamente a incidência do IPTU sobre áreas de proteção permanente.

É relevante destacar, ainda, que o próprio STJ reconhece o direito à indenização em casos de esvaziamento econômico da propriedade decorrente da criação de área de preservação permanente para atividades extrativistas. Esse entendimento poderá ser aprimorado para fortalecer a argumentação contra a incidência do imposto.

A pesquisa proposta não é exaustiva, mas destaca a amplitude da discussão sobre a incidência do IPTU em áreas de preservação permanente. Ela também oferece insights, ou aponta o comportamento dos principais Tribunais de Justiça em relação a essa questão.

Por fim, a partir dessa análise, entendemos que é importante os loteadores considerarem uma discussão judicial da cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) por meio de uma ação declaratória.

Para tanto, torna-se crucial e mandatório preparar um conjunto de documentos que evidenciem que o loteamento, o qual inclui áreas de preservação permanente, está proibido de construir qualquer infraestrutura no local, sendo o imposto indevido quando lançado sobre parte indisponível da propriedade.

Em razão das considerações acima, a tributação do IPTU incidente sobre as áreas de preservação permanente não urbanizáveis dos loteamentos viola frontalmente o direito constitucional de propriedade.

 


[1] Disponível em < relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf (cnj.jus.br) >

[2] Disponível em < https://anuario.conjur.com.br/pt-BR/profiles/78592e4622f1-anuario-da-justica/editions/anuario-da-justica-sao-paulo-2023-2024-2/pages/page/11 >

[3] A Lei 14.620/2023 alterou o art. 22 da Lei 6766/79 e mitigou as cobranças de IPTU de lotes não individualizados.

Art. 22 […]

§ 3º. Somente a partir da emissão do Termo de Verificação e Execução de Obras (TVEO), o município promoverá a individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal em nome do adquirente ou compromissário comprador no caso dos lotes comercializados e, em nome do proprietário da gleba, no caso dos lotes não comercializados. (Incluído pela Lei nº 14.620, de 2023)

[4] Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/02/justica-em-numeros-2023-16022024.pdf >

Autores

  • é sócio do escritório Vieira Gomes Advogados, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e especialista em Direito Tributário e Contabilidade pelo Ibet e Fecap.

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